Morro do Moreno: Desde 1535
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A Colonização do solo Espírito-Santense - Por: Yvone Amorim

Vasco Fernandes Coutinho - Primeiro Donatário da Capitania do ES

O século do descobrimento inaugurou no Brasil um ciclo de civilização. E o Espírito Santo quinhentista com Vasco Fernandes Coutinho, em 1535, assinala a sua idade agrícola dentro do Brasil Colônia.

"O donatário concedeu terras de sesmaria aos seus companheiros e, obtido o concurso do gentio, iniciou-se a cultura". Válido é transcrever na íntegra o registro histórico de Gabriel Soares de Souza: "Vasco Fernandes Coutinho chegou a salvamento à sua Capitania, na qual desembarcou e povoou a Vila de Vitória a que agora chamam de Vila Velha, onde logo se fortificou a qual, em breve tempo, se fez nobre Vila para aquelas partes. Derredor desta Vila se fizeram logo engenhos de açúcar como tiveram canas para isso, que se na terra deram muito bem".

Vasco Fernandes Coutinho, figura lendária e contraditória, era filho de Jorge de Melo - o Lágio - e de D. Branca Coutinho. Do seu casamento com D. Maria de Campo nasceram os filhos Jorge de Melo e Martim Afonso de Melo. E de sua ligação com D. Ana Vaz nasceu Vasco Fernandes Coutinho Filho, por ele legitimado.

Com Afonso de Albuquerque, o famoso "Leão dos Mares", mostrou-se notável homem de guerra, prestando excelentes serviços à Coroa portuguesa em jornadas de lutas, glórias e conquistas, na África e na Índia nos idos dos séculos XV e XVI, alcançando o posto de Capitão e Alcaide-Mór de Ormuz. Naqueles tempos, fazia-se das praças de África a escola de guerra dos moços fidalgos portugueses, tradição ininterrupta das famílias, pois "desde o pai ao bisavô, todos terçavam armas" e se fizeram os mais experimentados e valentes guerreiros.

Regressando a Portugal em 1522, Vasco Fernandes Coutinho foi residir na famosa Praia do Restelo, em sua propriedade - o Solar de Alenquer. Por serviços militares prestados a Portugal, fez jus aos seguintes rendimentos: uma tença de moradia na matrícula de 1449, três mil reais como fidalgo na matrícula de 1450, além de uma tença concedida por D. João III, por missões de guerra junto à causa de Portugal.

Gabriel Soares de Souza defende o conceito adotado por Coutinho, "de se contentar com os heróicos feitos", no que gastou o melhor de sua idade nas partes da Índia, nos primeiros tempos de conquista. E em busca de

"maior fama de seus trabalhos, pediu a El-Rei que lhe concedesse oportunidade para entrar em outros maiores, fazendo-lhe mercê de uma Capitania na costa do Brasil", desejoso que se sentia de povoá-la e dela conquistar o sertão. Ao dito requerimento, decidiu D. João III conceder-lhe "cinquenta léguas de terra ao longo da costa do Espírito Santo, com toda a terra para o sertão, começando onde terminasse Pero de Campo, Capitão de Porto Seguro".

Iniciados os preparativos de viagem "mui provida de moradores e das munições de guerra necessárias", Coutinho vendeu as suas propriedades em Portugal, renunciando, inclusive, à tença de trinta mil reais, para permuta com a Coroa de uma caravela e compra de outras provisões. Além disso, contraiu alguns empréstimos, a fim de financiar e ultimar as condições necessárias à posse da Capitania.

Decorridos quase quinhentos anos, ainda é contraditória a informação de que Vasco Fernandes Coutinho, "para satisfazer a grandeza de seus pensamentos", teria adquirido à sua custa uma frota de navios. O mais provável é que a sua expedição tenha se resumido a uma única caravela - a "Grorya" (ou Glória, como pronunciamos), nela embarcando com cerca de sessenta colonos entre criados e fidalgos. A caravela era equipada com quatro mastros e tinha capacidade de 150 a 200 toneladas.

As doações das capitanias que incluíram a do Espírito Santo foram feitas em 1532 e as respectivas Cartas Régias datam de 1534. A Carta Régia do Espírito Santo com data de 1º de junho de 1534 foi assinada em Évora e a décima primeira assinada pelo Rei de Portugal. Entretanto, somente a 7 de outubro do mesmo ano, foi assinado em ato solene o Foral, que fixou os direitos e deveres dos colonos, bem como as regalias devidas a Vasco Fernandes Coutinho, como Grande Senhor, além de outras exigências inseridas na Carta Régia e no Foral.

Basílio Daemon defende a tese de que o desembarque do Donatário com sua gente, antecedido de investigações preliminares,

"deu-se num domingo de 23 de maio de 1535, em terras que ficam à margem esquerda da entrada da baía, próximo ao Monte Moreno, em uma enseada que ele julgou ser a foz de um rio, e à qual deu o nome de Espírito Santo, por ser o dia dedicado pela Igreja à terceira pessoa da Santíssima Trindade".

A historiadora Maria Stela de Novais diverge ao informar que o desembarque se deu "entre o Monte Moreno ou João Moreno e a Ponta do Tubarão ou Piraém. Instalando-se perto do Moreno, no lugar conhecido por Sítio do Ribeiro". A exemplo de Pedro Álvares Cabral, cujo local de desembarque com os seus comandados é tese analisada e contestada por historiadores, o mesmo acontece com o lugar onde Coutinho e seus colonos desembarcaram. São muitas as divergências sobre esse assunto.

A primeira povoação onde o braço colonizador iniciou a cultura da cana-de-açúcar denominou-se Vila do Espírito Santo. A afirmativa é de Basílio Daemon, contestada por Gabriel Soares de Souza. Frei Vicente de Salvador e Maria de Novais. Para eles, a povoação tomou o nome de Vila Nossa Senhora da Vitória, depois chamada de Vila Velha, "onde logo à entrada do rio, da banda do sul, começou a edificar a Vila de Vitória, que agora se chama de Vila Velha". Maria Stela reforça a sua tese com a informação contida nas provisões passadas a vigários da Vila de Vitória ou Vila Nossa Senhora da Vitória, antes de 1551, transcrevendo em 'História do Espírito Santo', a que foi expedida por Antônio Cardoso de Barros, Provedor-Mór da fazenda de El-Rei nestas partes do Brasil: "Faço saber aos que essa virem, que por nesta Vila de Vitória, Província do Espírito Santo, Capitania de Vasco Fernandes Coutinho...", a data é de 3 de março de 1550, antes da fundação da Vila Nova de Vitória, em 8 de setembro de 1551. Informa José Teixeira de Oliveira que "ao rio e à Vila logo iniciada, foi dado o nome do Espírito Santo e depois estendido por toda a Capitania". De forma conclusiva, Gabriel Soares de Souza esclarece que o donatário tratou de povoar a Vila do Espírito Santo em 1535, como sede da Capitania, mas depois de fundada a Vila Nova de Vitória em 1551, passou a chamar-se de Vila Velha.

Os indígenas apelidaram a antiga povoação de "Moub ou Mboab" - terra habitada por emboabas, pejorativo no tupi-guarani, do colono português. Armado de arcos e flechas, em grupos pela praia, os índios tentaram impedir o desembarque dos colonizadores, mas, repelidos por disparo de bordo da caravela "Grorya", ficaram assustados, refugiando-se nas matas. Com essa atitude, pelo menos foi possível a conquista da terra dando-se início ao povoamento, com assentamentos de cabanas e o plantio das sementes trazidas de Portugal. O donatário incluiu nessas providências a montagem de um engenho e aberturas de caminhos, instalando sua residência na fazenda da Costa, no locaI denominado Sítio do Ribeiro, onde mais tarde residiu e faleceu seu filho e herdeiro, Vasco Fernandes Coutinho Filho, este casado com D. Luíza Grinalda, que o sucedeu como donatária da capitania do Espírito Santo após a sua morte.

Foram muito árduas as lutas enfrentadas sempre em confronto com as tribos Indígenas. As Investidas dos aimorés, goitacases e tamoios e de outras tribos guerreiras, tomaram bem difícil viver em paz naquele início de colonização, acrescidas pela ambição desmedida dos colonos, esta sim, a grande inimiga de Coutinho. Varnhagem, em sua Crônica primitiva das seis capitanias, cuja colonização vingou, informa que o gentio resistiu, foi vencido, apaziguou-se e passou a colaborar para os trabalhos da Colônia. Introduzida a cultura da cana-de-açúcar, construiu-se um engenho, enquan­to os colonos lavravam suas terras para mantimentos. As Informações, colhidas no livro 711, p. 13-15, nos anais da Biblioteca Nacional, dão conta do arrendamento do dízimo de açúcar "a la mala", até janeiro de 1546, a 200 réis a arroba, por carta de Ambrósio de Meira, enviada a El-Rel e datada de 26 de setembro de 1545. A produção açucareira, segundo mostravam os engenhos, estava prevista em dízimos até 300 arrobas. Opinando sobre o tipo de açúcar "não de todo bom porque os oficiais não conheciam bem as terras e o tempo delas", Ambrósio de Meira elogiou o tipo de açúcar que saía bom, classificando-o de igual ao que era produzido na Ilha da Madeira.

O primeiro carregamento de açúcar da Capitania do Espírito Santo foi transportado em um navio da Armação Brás Teles, em 1545.

Como resultado da pacificação entre indígenas e portugueses, flores­cia a Capitania, com os trabalhos dos colonos sob a direção do donatário. A marcha da colonização, com serviços e plantio de parceria, sob contrato, prosseguia em desenvolvimento. E o contrato cumpria as suas regras, indo do cultivo à produção mediante o pagamento de cotas. Tudo isso foi possível enquanto perdurou o acordo de boa convivência entre índios e portugueses. Plantou-se cana, cultivaram-se cereais e engenhos foram ins­talados. Para Francisco Adolphe Varnhagem, era aparente a prosperidade da Capitania, pois, à medida que se acelerava o seu desenvolvimento, ganhavam espaço os elementos de discórdia, como por exemplo, o cativeiro do índio imposto pelos colonos contra a vontade do donatário. Para Varnhagem, "a invocação do Espírito Santo estava nos lábios, procedera do hábito, não nascera do coração”. Na verdade, o entendimento só foi possível com o fortalecimento, a partir de 1558, do trabalho irradiador de catequese dos jesuítas, iniciado na Capitania em 1551.

Vasco Fernandes Coutinho empregou a sua fortuna e vendeu todo o seu patrimônio para atender às necessidades de sua Capitania. Regressando em agosto de 1560 de uma de suas várias viagens à Corte portuguesa, velho e doente, entregou pessoalmente a Mem de Sá, Governador Geral do Brasil, a sua carta de renúncia. Carlos Malheiros Dias, referindo-se à personalidade de Coutinho, diz que

“Ele confiou em excesso no seu prestígio e dotes militares. Acontece que o Brasil não era as Índias. Era exagerado e até prejudicial o otimismo com que pretendia enfrentar as dificuldades a que não estava preparado, tratando-se das contingências que envolviam uma região desconhecida”.

Luiz Derenzi classifica de “aventura de doido para um homem já encanecido. Ele é, sem dúvida, uma das mais interessantes figuras da dramática história do feudalismo brasileiro”.

Vasco Fernandes Coutinho faleceu a 16 de janeiro de 1561, em Vila Velha, onde residia. Acreditamos, em um futuro bem próximo, que se possa resgatar a importância da figura do donatário, como a melhor forma de cultivar a sua memória, esclarecendo para as novas gerações as contradições e informações de certa forma um tanto injustas e vexatórias para o homem valente como sempre soube ser o primeiro Donatário da então Capitania do Espírito Santo.

Referenciando o dia 23 de maio de 1535, prestamos nossas homenagens aos colonizadores que iniciaram os trabalhos de amanho da terra, tão pouco explorada naquela época. Havia também os tupiniquins, os goitacases, os aimorés, os tamoios, os puris, os temiminós e os temíveis botocudos, nações de muitas guerras entre si e de muitas investidas ao colonizador, que souberam ser resistentes ao cativeiro imposto pelos colonos portugueses. Homenageando toda essa gente que faz parte do curriculum histórico do Espírito Santo, saudamos a mãe-terra, mãe de todos nós, que nos alimenta há 456 anos, sempre generosa e dadivosa.

É preciso, mais do que nunca, falar das coisas da terra, conscientizar a preservação do solo e da natureza, lembrando que a ciência agrícola, através do plantio e colheita, conserva, intacta, a sua essência moralizadora. A luta do homem pelos bens da terra é, historicamente, universal, presente em todas as épocas, nos mais diferentes ciclos, a partir dos povos que o subjugaram nas guerras e conquistas. O homem “é o elemento de consolidação de conquistas territoriais”. E o milagre do solo somente se realiza através do convívio que une esses dois elementos – o homem e a terra – oferecendo à sociedade, através da agricultura, as matérias essenciais à sobrevivência dos povos. Repetindo as palavras com que se expressou Pereira Barreto, no Primeiro Congresso Agrícola no Brasil, em 1911:

“Tudo quanto somos, tudo quanto possuímos, devemos à agricultura. Todas as riquezas, todas as nossas ciências e artes, todas as maravilhas da indústria, todas as elegâncias da vida moderna não seriam possíveis sem o trabalho da terra. É do seio da terra que saem todas as matérias com que a humanidade elabora a civilização”.

O solo espírito-santense é fértil. “É esta a terra onde ao presente restou a melhor e a mais fértil do Brasil”, profetizou, em 1551, o Padre Afonso Brás. Para nós e todos aqueles que a amam, a sua pequena extensão territorial é uma sábia inspiração da natureza que, a curta distância, permitiu o abraço do colonizador à fecundidade do solo.

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nº 42, ano 1992/1993
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2013 

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