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A Menina e o Desembargador - Por: Marilena Soneghet

Parque Moscoso - Foto: Otávio Paes, 1936

A menina era solitária.

Não. Não era bem assim. A menina gostava de solidão. Contemplar a vida do alto do galho mais alto da mangueira, aconchegada num ninho de pardal. Empoleirar-se como um galo cata-vento na ponta da cumeeira do telhado do casarão. Gostava da vista. De ver a vida de outro ponto. Tudo mudava visto assim do alto; tudo se reduzia. O bonde - um brinquedo. O pai severo, um homem cansado arfando nos degraus da escada. Os meninos que lhe mostravam a língua, uns pobres molequinhos de pernas finas. As ruas - ruazinhas. As casas - Casinhas. Só o Carmo continuava grande, imponente; até maior porque se lhe via, de cima, além da fachada, os vastos telhados do internato, da creche, das árvores do outro lado, no pátio. A escadaria, se lhe abrissem as comportas, uma Iguaçu - a enxurrada de meninas, findas as aulas, sempre a evocar o rolar das águas e seu contínuo murmurinho.

Dentro de casa havia sempre alguém a lhe mandar ter modos, havia sempre um mandado a fazer, um teorema a estudar, haviam as empregadas às risotas e cochichos na cozinha que literalmente a expulsavam do seu reino. Havia o "ninho de lagartas" como suas irmãs chamavam os momentos de confraternização com a mãe - todas - mãe e quatro moças - acomodadas em posições diversas na grande cama, entre travesseiros, a contar em detalhes o último baile e mais uma porção de conversas que - quase todas - não eram conversas para crianças. Sobrava o quê?

Da grande varanda, um salto no muro. Do muro ao galho amigo que lhe estendia os braços. A copa verde que a envolvia, a forquilha nas grimpas, a oito metros do chão. Mais um salto, o telhado - céu aberto - o vôo. A menina voava. Ninguém nunca soube (nem acreditaria se contasse).

A menina só, também gostava de passeios solitários - é bom ter o pé no chão de vez em quando. Sentar na amurada do cais - a ver navios... Passear de barco com o amigo catraieiro, escalar os morros do outro lado da baía (e os de cá também).

O Parque Moscoso era bonito. Lagos, pontezinhas cujas laterais imitavam troncos de árvores, cisnes, gansos, patos alvoroçados pelas migalhas de pão que as crianças jogavam, românticos, recônditos cercados de sebe viva, com banquinhos para se namorar. Esses caramanchões verdes a faziam, não sei por que, viajar às Tulherias (sim; que a menina gostava de ler - era outra de suas viagens - outro vôo).

A certa altura ela pegou gosto pelas "palavras cruzadas". Sempre que lhe davam uns trocados em troco de mandados, era certo: corria a comprar uma revistinha de palavras cruzadas. Gostava de decifrá-las nas tardes tranquilas do Parque Moscoso.

Vai que um dia estava a menina absorta e presa a uma palavra que não lhe ocorria: seis letras, vertical sete. Preenchidas as horizontais 6 e 8, já achara duas letras; um "i" na quarta casa e um "d" na quinta - "antigo sacerdote entre os gauleses e os bretões". Ah sim. Era plural. "S" na última casa. Ela sabia que sabia. Preenchera quase tudo rapidamente e agora empacava naquela. "Cabidos"? Não; não era. Cabido tinha a ver com sacerdotes, mas nada a ver com gauleses. Embatucara feio. Ouviu uma voz dizer baixinho: "Não será Druidas?" Druidas! Claro! Com rapidez eufórica a menina completou todas as palavras que faltavam e olhou triunfante para a voz ao lado. Só então caiu em si. Um senhor de terno claro, bengala de castão lavrado, olhar macio e cãs (cabelos brancos - três letras), a contemplava sorridente. Um pouco acanhada, ela sorriu também.

Tornou-se hábito. Acordo tácito. Ela chegava, ele chegava. O que ela não conhecia, ele lhe soprava - assim discreto, como se de dentro de sua própria cabeça viera a voz. Ficaram amigos - sem nome. Ele a chamava de "minha amiguinha" - E como está hoje a minha amiguinha? - Vou bem, e o senhor? Olha, hoje eu trouxe uma mais difícil. Às vezes ele também embatucava - e ficava uma palavra impossível, com seu olho sarcástico aberto, desafiando a memória dos dois.

Um dia, ele tirou do bolso um pedaço de pão velho, e, foram juntos alimentar os cisnes. Falaram de livros; ele já lera 'Tom Sawyer', 'Oliver Twist', 'Os três mosqueteiros'. Falou-lhe sobre 'O Ateneu' e riram juntos quando ela citou o personagem Aristarco - "as condecorações gritavam-lhe no peito como uma couraça de grilos."

Embora ela sempre o chamasse de "Senhor", de repente, às vezes, ele era apenas um menino de cabelos brancos.

Não falara em casa de sua amizade. Gostava de ter seus segredos. Além disso, não queria responder a "Quem é?", "Como?", "Você não perguntou o nome dele?"... Afinal, ele também não perguntara o nome dela. Identificavam-se pelo coração.

O Parque Moscoso se revestira de novo encanto, novo atrativo.

O Parque Moscoso era belo porque tinha um amigo silencioso que a esperava sempre no mesmo banco e com ela compartilhava do silêncio das palavras. Das palavras não ditas.

Seu pai, depois do almoço, costumava ler jornal (palitando os dentes), sentado na "pata choca" - espécie de poltrona de madeira com espaldar alto e inclinado e braços largos - na grande e arejada varanda que dava para o quintal. Metade do jornal estava caída no chão. Um retrato em destaque chamou-lhe a atenção. Sob o retrato - "Vítima de um derrame, Sua Excelência o Desembargador... faleceu nessa madrug..."

A menina, lívida, foi correndo ao quarto, pegou seu livrinho novo de palavras cruzadas e, sem dizer nada a ninguém, saiu em disparada para o Parque Moscoso.

O copado "fícus" abrigava o banquinho vazio.

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nº 50, ano 1998
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2013 

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