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Aconteceu no Café Moderno - Por Delano Câmara

Praça Costa Pereira - década de 1940

Bem - aventurados esses sonhos da puberdade em que posso, embora com certa dose de melancolia, rever por um logo tempo a mulher amada e me deixar embriagar por esta forte impressão que eles ainda me trazem de que posso esta vivendo o mesmo tempo de mais de trinta anos atrás. Era no bar do Português, aquele ali da Costa Pereira, o lugar onde diariamente nos encontrávamos à tarde e sempre depois das aulas da Escola Normal, onde ela estudava: tínhamos, então, a sensação que o bar podia nos ocultar do mundo, a despeito dos olhares curiosos dos motoristas de táxis que se encostavam por ali quando enjoavam de lustrar seus Oldsmobiles que se punham pachorrentos e pesados ao longo do meio-fio.

Ela e eu morávamos na Rua Duque de Caxias, mas o namoro era secreto e o bar, assim, parecia o nosso refúgio: não que o pai dela, um judeu nada ortodoxo, tivesse um dia se preocupado com as companhias da filha, mas sim, porque de certa feita ele e meu pai discutiram violentamente na rua por causa de um arranhão que ele plantou na lataria do carro do velho em uma manobra desastrada para encostar o seu. Foi um Deus nos acuda – e aí achamos que seria melhor ocultar aquilo que já nos vinha rasgado por dentro – e tanto é que nos prendíamos um ao outro e nos beijávamos e nos dávamos fortemente as mãos – e que se danassem os olhares curiosos dos motoristas de táxis.

O Português nunca reclamou dos arroubos da nossa juventude. Dos seus já cabelos brancos podíamos entender que talvez tivesse sido um homem que amou muito também – e coisas assim, hoje eu sei, cobrem logo de prata as madeixas negras da juventude – e daí chegava a nos olhar com uma certa graça e uma sutil cumplicidade. Entre um e outro pedido de xícaras de leite com café e pão com manteiga passado na chapa quente – a especialidade da casa até que inventaram o misto quente – ele vinha até à mesa de pés góticos e tampo de mármore que ocupávamos e, com o meio- sorriso de quem estava entendendo aquela tola criancice que era então afagar os cabelos um do outro e nada muito mais além disso – perguntar se queríamos mais dois cafezinhos.

Essas coisas me vieram em sonho e nele cheguei a sentir o hálito quente da amada a passear pelo meu pescoço – em pura e torpe imaginação – porque ela, na verdade, nunca ousou tanto no bar do Português. Não digo ai que não tenhamos ido além, porque um dia, atrás da Catedral, até arrebentei as presilhas do seu sutiã para livrar o peito que arfava. Mas dentro do bar, e mesmo porque tudo nos levava a uma serena quietude, nós nos limitávamos ao entontecimento de olhar um para o outro, atravessar as camadas do que entendíamos moral e dar a nós mesmos todo o desejo que então se esparramava pelos nossos corpos.

Hoje eu não sei ao certo como anda exatamente o bar, se as mesas ainda possuem as pernas curvas e o peito frio dos tampões de mármore, além do fato de que se chama “Café Moderno”. O nome antigo eu não sei, mas pode então ser o mesmo. Helena talvez se lembre, mas eu não sei ao certo se ela ainda vive – e se vive, meu Deus – não me ocorre tenha ela uma dia levantado os olhos pra enxergar mais do que um lugar onde eu deveria estar silencioso e quieto como um religioso à espera do seu Deus. Era tamanha a ansiedade que eu também nunca, e já de longe, despreguei os olhos do lugar onde ela deveria estar sentada, e se o bar tinha alguma placa que o indicava eu não posso, por um pecado inconfessável assim, hoje saber.

Mas há alguns anos estava tudo igual e num dia em que eu, atordoado por um sonho assim – e sem ainda sofrer deste mal do desterro voluntário da terra natal – ali até me embriaguei. Fechei os olhos e por um longo tempo revi Helena e senti suas mãos pequenas passeando pelo meu rosto. O Português já não era o mesmo, e nem mesmo sei se aquele homem grande que estava atrás do caixa era mesmo português. Mas quando um outro veio ao meu encontro para saber o que eu queria, não pedi café. Porque a lembrança dela era tão boa e tão amiga e estava tão presente naquela mesa colocada no lugar onde costumávamos ficar, que achei que o café não teria o torpor suficiente para que eu fechasse os olhos, por longo tempo a revisse e logo depois sonhasse com ela.

E nesta embriaguez ela me veio e no dia em que me deu um retrato em preto e branco, o mesmo que trazia em sua carteira de normalista. O que havia escrito atrás eu não me lembro – mas com certeza terminava... da eternamente sua Helena. Ah, eterna Helena, onde quer que você esteja, eu gostaria outra vez de descansar minha cabeça nos seus ombros e aqui mesmo nesta mesa onde então tomávamos café e juntos enlouquecíamos. O Português já não é o mesmo – com certeza – e já não veremos Oldsmobiles e Nashes reluzentes ao longo do meio – fio e nem mesmo tomaremos mais café, e nem mesmo nos embriagaremos com o ópio do nosso amor e na nossa juventude.

Mas venha ao mesmo bar – o endereço você sabe – em que espírito ou com o fogo da sua carne – e  que ainda me queima, talvez porque foi a primeira. E com a sua boca úmida pelo meu beijo, ou mesmo com um gesto de mãos talvez trêmulas e recém-saídas dos meus cabelos então brancos, chame o mesmo português e peça um conhaque bem forte que seja capaz de nos abater na mesma mesa, ainda que por um breve instante: adormecidos assim, prometo no mesmo sonho tomar as suas mãos e, com o mesmo fervor de antigamente, sem voltar mesmo atrás da Catedral, e ali mesmo, no bar do Português, aliviar o que hoje possa ser talvez a saudade e talvez a dor do seu peito.

 

Fontes: escritores de Vitória, 1995
Autor: Delano Câmara
Compilação Walter de Aguiar Filho, janeiro de 2014

 

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