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Campanha da Legalidade – Por Vitor Amorim de Angelo

João Goulart discursando em Pequim, China

João Goulart estava em Cingapura — onde já era madrugada do dia 26 — quando recebeu a notícia de que Jânio havia renunciado. O vice-presidente tinha saído do país no mês anterior para fazer um giro pela Europa Oriental, União Soviética e China, seguindo a nova orientação da política externa brasileira. Não poderia existir pior coincidência que aquela: um líder esquerdista, herdeiro de Vargas, em viagem ao bloco socialista (isso em plena Guerra Fria), tornava-se o primeiro na linha de sucessão à Presidência, num cenário internacional politicamente radicalizado. Jango sabia que, internamente, a correlação de forças não lhe era favorável.

Poucas horas depois da renúncia, o Congresso Nacional, reunido em sessão extraordinária, aprovou o nome do deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara, como presidente da República em exercício. Pela lei, bastava apenas Jango retornar ao Brasil para tomar posse. Porém, nesse meio tempo, os três ministros militares — da Aeronáutica, Marinha e Guerra — divulgaram uma nota oficial em que declaravam a "absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso ao país do vice-presidente da República". Estava formada a crise. Enquanto isso, do exterior, João Goulart articulava uma saída negociada para o impasse. Com o veto militar, que colocou em xeque a legalidade constitucional, o então governador gaúcho, Leonel Brizola (cunhado de Jango), convocou a população para resistir à tentativa de golpe. Do Rio Grande do Sul, Brizola comandou a Rede da Legalidade, reunindo mais de cem emissoras de rádio que transmitiam manifestações em favor da ordem constitucional — incluindo a leitura de notas em outros idiomas. Diante da ofensiva, os ministros militares decidiram atacar o Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. Mas, àquela altura, as Forças Armadas já tinham se dividido: o general Machado Lopes, comandante do III Exército, observando o amplo apoio popular à Campanha da Legalidade, decidiu romper com o ministro da Guerra.

Calcula-se que só em Porto Alegre cerca de 45 mil pessoas se inscreveram no Comitê Central do Movimento de Resistência, sendo que boa parte recebeu do governo gaúcho revólveres, fuzis e treinamento de tiro. Dentro do Congresso Nacional, também surgiram manifestações a favor da legalidade. Até mesmo a UDN declarou-se contrária ao veto militar. Assim, em poucos dias, o movimento capitaneado por Brizola conquistou adeptos à direita, preocupados com um golpe de alto custo, e à esquerda, incluindo nacionalistas e setores progressistas da sociedade. Enquanto isso, os militares ficavam cada vez mais isolados, assim como os civis que defendiam o golpe.

No dia 02 de setembro, a saída para o impasse foi finalmente encontrada. O Congresso, que, pressionado pela Campanha da Legalidade, tinha rejeitado o impedimento de Jango, aprovou a mudança do regime de governo: do presidencialismo para o parlamentarismo. A alternativa já havia sido acertada previamente com Jango, que, dessa forma, garantia sua posse. Para os que conspiravam contra Goulart, a mudança de regime foi o meio encontrado para esvaziar os poderes do novo presidente. Porém, a emenda constitucional aprovada pelo Congresso tinha uma brecha: a realização de um plebiscito, em abril de 1965, para que a população decidisse sobre a continuação ou não do parlamentarismo.

A posse de João Goulart, no sugestivo 07 de setembro de 1961, trouxe novo ânimo à esquerda e às forças nacionalistas. Afinal, a vitória da legalidade parecia indicar que o caminho das reformas era mesmo inevitável. O tema imediatamente dominou o debate político, já acirrado em virtude dos acontecimentos anteriores. Aos olhos de muitos, Jango encarnava o ideário nacional-estatista do qual Getúlio tinha sido o principal artífice. Mas em contraste com Vargas, que sempre jogou pela conciliação, o novo presidente deparou-se com um componente novo: a radicalização política resultante da ampla participação popular no movimento pelas reformas de base.

O desenvolvimento econômico registrado a partir dos anos 1950 — especialmente no governo JK — foi decisivo para formar uma sociedade ainda mais complexa e contraditória. De um lado, o avanço do capitalismo, tanto no campo como nas cidades, forjou um ideário de ascensão social que se difundiu rapidamente. De outro, trouxe consigo as contradições que lhe eram próprias, limitando a perspectiva de mobilidade que ele mesmo difundia. Lentamente, o clima de contestação à ordem alcançou os trabalhadores rurais e urbanos, o movimento estudantil, os graduados das Forças Armadas, além de parte da classe média formada no curso daquele processo, numa politização crescente que desembocaria no movimento pelas reformas.

Falava-se em reforma agrária, urbana, universitária, bancária, tributária, eleitoral, entre outras. O objetivo de todas elas era um só: transformar as estruturas econômicas, políticas e sociais, garantindo um desenvolvimento econômico autônomo com justiça social. Num país tão cheio de contrastes como era o Brasil daquele início dos anos 1960 e num cenário de intensa radicalização política, tanto interna quanto externamente, o tema das reformas logo conquistou muitos adeptos, mas também ferrenhos inimigos. A população saía às ruas para protestar em favor das mudanças. No campo, as pressões se intensificavam, desenhando um quadro de extrema radicalização.

Embora heterogênea, formou-se, à esquerda, uma espécie de frente pró-reformas, reunindo partidários do governador Leonel Brizola (principal nome da Campanha da Legalidade), parlamentares nacionalistas, movimentos sindicais, militares de baixa patente, estudantes, além do Partido Comunista Brasileiro (PCB), das Ligas Camponesas e de um pequeno agrupamento trotskista. Todos pressionando o presidente para que levasse adiante as mudanças — na lei ou na marra. Mas o parlamentarismo tinha diminuído consideravelmente os poderes de Jango. Com efeito, o caminho das reformas passava necessariamente pelo retorno ao presidencialismo.

Não por acaso, até setembro de 1962, cada passo de João Goulart visou a sabotagem do regime em vigor. O parlamentarismo, e não Jango, deveria aparecer como verdadeiro empecilho às reformas. A partir de então, todos os movimentos do presidente foram no sentido de tentar estabelecer um diálogo direto com os movimentos sociais, contornando as instituições políticas, para jogar a população contra o Congresso, acusado de ser o responsável por criar e manter a ordem vigente. Se no futuro Jango se mostraria vacilante, naquele momento o presidente assumiu uma postura politicamente habilidosa: com a benção dos militares, costurou um acordo envolvendo políticos governistas e de oposição para antecipar o plebiscito.

Naquele mês, por larga margem de votos, o Congresso Nacional aprovou sua realização em janeiro de 1963, cerca de dois meses antes do previsto pela emenda que instituíra o parlamentarismo. Em um ano, era a segunda vitória da esquerda. Numa avaliação equivocada, parte dela chegaria até mesmo a acreditar que, com o acúmulo de forças, a hora da revolução se aproximava. Não percebeu que a antecipação do plebiscito tinha sido possível, em parte, pelo apoio de políticos da própria oposição — alguns, candidatos à sucessão presidencial de 1965, como JK. Nenhum deles, afinal, queria arriscar ser eleito sob um regime que não garantisse plenos poderes ao próximo presidente da República.

 

Sobre o autor

Vitor Amorim de Angelo nasceu em Vitória (ES) em 1982. É historiador formado pela Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente, é pesquisador do Centre d’Histoire do Institut d’Études Politiques de Paris, onde desenvolve trabalho sobre o tema deste livro. Autor de A Trajetória da Democracia Socialista: da fundação ao PT (EdUFSCar, 2008).

 

Fonte: Luta Armada no Brasil, 2009
Autor: Vitor Amorim de Angelo
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2018

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