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Formatura desalinhada - Por Adilson Vilaça

Capa do Livro: UFES: 65 anos – Escritos de Vitória, 33 – Secretaria de Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 2019

Se tenho boas lembranças da Ufes? Um baú completo! Aliás, um contêiner inteiro. Comecei a minha relação com a Universidade Federal do Espírito Santo em 1977, no curso de Jornalismo. O curso engatinhava, eu dava passadas ágeis. Éramos jovens, agora somos esses moços saudosistas que parecem ter caído de algum caminhão de mudança. Recordar é um bom esporte, até porque não exige aptidão física. A memória tem o dom de correr léguas atemporais enquanto divagamos por detrás de um sorrisinho maroto, desses com que a Mona Lisa hipnotizou Da Vinci para sempre.

Depois do Jornalismo, cursei na Ufes uma Especialização em História Política e o Mestrado em Letras/Literatura. Na lida profissional, fui editor da revista Você, a convite do amigo escritor Reinaldo dos Santos Neves e do Secretário de Cultura da Ufes, Francisco Aurélio Ribeiro, nosso ilustre presidente da Academia Espírito-santense de Letras. A Revista Você foi importante periódico cultural, desses que marcam época - e, portanto, como agora faz falta! Em seguida, a convite do sequente Secretário de Cultura da Ufes, Sebastião Pimentel Franco, tornei-me o editor inaugural da Edufes - Editora da Universidade Federal do Espírito Santo. Bons tempos, hein?!

Porém essa significativa experiência profissional perde de longe para o brilho daqueles inesquecíveis dias de estudante. Durante dois anos fui o presidente do Diretório Acadêmico do Centro de Estudos Gerais: Comunicação Social, História, Ciências Biológicas, Física, Geografia, Matemática e Letras. Que salada, não é mesmo?! Era truque da Ditadura Militar - o maior diretório do movimento estudantil estava fadado a ser Torre de Babel. Os energúmenos de plantão apostavam que a diversidade de interesses impediria que aquele Centro Universitário rendesse qualquer liga. Erraram feio! E o que parecia improvável, com ares de impossível, se manifestou como potente núcleo de combate ao autoritarismo escroque que pisoteava a democracia brasileira!

Em 1978, desbancamos a diretoria nomeada pela ditadura militar. O Diretório Estudantil do CEG reuniu em sua aguerrida composição lendárias lideranças de todos os seus cursos. São muitas as vozes que ecoam nessa evocação... Uma delas será realçada, em homenagem às demais: Paulo César Vinha, do curso de Ciências Biológicas, covardemente assassinado na época em que denunciava agressão ao meio ambiente no município de Vila Velha. Paulo era um jovem profissional comprometido, hoje dá nome ao parque que ele ajudou a salvar. Minha perene saudação ao valoroso amigo!

Paulo, com outros tantos bons camaradas, esteve presente à minha formatura. Honravam-me, num dia de fiasco! Eu era o orador da turma, personagem de destaque na laureada noite. Por que, então, o vexame? Perdi o discurso? Engasguei-me? Compareci de porre? Nada disso. O problema é que não compareci às reuniões convocadas pela Comissão de Formatura. Tirante uma delas, a primeira: nela fui escolhido orador, dei palpites sobre o convite (semelhante a páginas de jornal, com manchetes e tudo mais) e perdi a paciência contra o acalorado debate sobre usar ou não usar beca. Como as posições equilibravam-se e o desequilíbrio começou a ditar o abocabaque - com augusta licença de Guimarães Rosa! -, eu sugeri que se decidisse a questão no par ou ímpar. A sugestão não foi bem recebida, cheirou a desdém, mandaram--me para casa. Aconselhou-me Terezinha Calixte, uma das organizadoras: "Vá para casa, vá fazer seu discurso, a solução será encontrada". Fui. A concórdia brotou, não sei quantas reuniões depois. Nunca soube. Nem soube o que se havia decidido - até o dia da formatura.

Comunicar-se era bem difícil. Redes sociais? Ficção científica. Celular? Futurismo. E telefone fixo custava uma fortuna, a ponto de linha telefônica ser declarada no Imposto de Renda. Somente soube na noite de gala, quando me aproximei das imediações do auditório.

Alguém havia me descrito para um mensageiro. Ele estava à espreita, com a minha beca, enfiada numa dessas sacolas de plástico de supermercado. Grato pela atenção, eu fui me vestir. A coitada da beca parecia ter sido mastigada por uma vaca. Ou por um rebanho inteiro! Como estava amarrotada a pobre alma daquele cetim... Que fazer? O jeito foi me enfiar na beca inteiriça e juntar-me aos engomados. Para meu alívio, vislumbrei um ou dois outros formandos igualmente amarfanhados. Mas o pesadelo havia apenas começado.

Na coxia do auditório, a mestra de cerimônias preparava a entrada dos formandos. Como devia ser do hábito, convocou os menores para frente. Lá fui eu, empoleirado na grandeza de meu 1,58m. A diligente senhora, com ar circunspecto, mediu-me dos pés à cabeça. Não foi longa medição. Entredentes, ela me segredou o escandalosamente sabido: "Você está muito amarrotado!" Arrematou: "Vá para trás". Constrangido - não por minha altura, com a qual eu me conciliei após a adolescência -, eu me esquivei entre os gigantes. A cerimonialista emitiu outro comando geral: "Vamos entrar por ordem alfabética!"

Novo confronto, o olhar de etiqueta da agradável senhora fuzilando-me. "Mas o que você faz aqui?". Respirei fundo: "Adilson. Eu me chamo Adilson. Quase sempre o primeiro nas listas de chamada." A mulher contou até dez. Até cem? Duzentos? Mil? Com feição de maus bofes, ordenou: "Vá para trás!". Arrastei-me entre as botas dos gigantes, perdi-me nos confins. Todavia, minhas orelhas quentes ouviram o terceiro comando, quase um berro: "Vamos entrar assim mesmo, como vocês estão!" - ela se conformou. E deu o retoque final: "O orador venha para frente!".

A arte de cerimoniar não é fácil como se pensa... A outrora simpática senhora quase enfartou quando me viu novamente! "Você é o orador?" - perguntou com um guincho de desespero. Acho que sua vontade era mandar aquele gnomo amarrotado ir assombrar algum bosque de trevos lá em Lilliput. Confirmei com cabeça, sacudindo-a três vezes. Como a cerimonialista ainda parecia duvidar, balbuciei: "Sou". A doce criatura enunciou com amargor: "Pois entrem como vocês bem quiserem!". Rodopiou nos saltos, saiu de cena tão contrariada quanto ator que perde a deixa. É melancólico sair sem entrar.

Puxei a fila. Diante do microfone, eu tive de levantar a beca amarfanhada para resgatar o discurso, esquecido no bolso da camisa. As gargalhadas sacudiram o auditório. Houve quem propalasse que o ato cênico era em desabono às formaturas burguesas. Houve quem discordasse de meus camaradas de movimento estudantil - esta maioria achou que foi mesmo uma grande patetada. Agora, olhando assim de longe, nas frinchas em desalinho da memória, eu também morro de rir!

 

Fonte: UFES: 65 anos – Escritos de Vitória, 33 – Secretaria de Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 2019
Conselho Editorial: Adilson Vilaça, Ester Abreu Vieira de Oliveira, Francisco Aurélio Ribeiro, Elizete Terezinha Caser Rocha, Getúlio Marcos Pereira Neves
Organização e Revisão: Francisco Aurélio Ribeiro
Capa e Editoração: Douglas Ramalho
Impressão: Gráfica e Editora Formar
Foto Capa: David Protti
Foto contracapa: Acervo UFES
Imagens: Arquivos pessoais
Autor: Adilson Vilaça
Escritor, mais de 40 títulos publicados. Jornalista. Da Academia de Letras ES, do Instituto Histórico e Geográfico ES, da Comissão de Folclore ES. Criador do Projeto "Escritos de Vitória".
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2020

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