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Identidade e Expressão Cultural

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Já tive oportunidade de me manifestar, em outros trabalhos de resgate da cultura, não ser literato de ofício e não pretender aparecer como tal.

Sou, isso sim, um apaixonado pela recuperação e manutenção da nossa História, o que me levou a produzir alguns trabalhos sobre esse assunto, escrevendo e editando livros que, menos por mérito do autor e certamente mais pelo interesse do tema, obtiveram larga aceitação e são motivo de consulta por parte de estudiosos e interessados.

Convidado agora a prestar mais um testemunho sobre as dificuldades que se apresentam na busca, resgate e manutenção do nosso passado, sinto-me à vontade, porque esses episódios são recorrentes a quem se dedica a essa sensível tarefa.

É preciso reconhecer que a ação política desenvolvida no campo da cultura, quase sempre, está vinculada à idéia equivocada de que a cultura é investimento de segundo plano. Foram inúmeras as ocasiões em que ouvi essa afirmativa. Ainda recentemente pesquisando a história de um município da região serrana Estado, deparei-me com um depósito de atos, jornais e o documentos ligados à vida da comuna, amontoados em canto de sala e os mais recentes mal arquivados em pastas, contaminadas por brocas e cupins. Partindo do natural pressuposto de saber a autoridade daquele descalabro, procurei-o, alertando-o e lhe indicando, como conhecedor do assunto, a necessidade de se proceder a adequado tratamento dos documentos e que encontrada outra área física propícia ao trabalho de resgate do arquivo. Sua Excelência ouviu, pensou e disparou:

"Você acha que vou perder tempo com isso, além de ocupar espaço onde posso instalar outra repartição municipal?”

Se essa postura me causou maior negativo, não chegou no entanto a ser grande surpresa. Não me desanimo facilmente diante de resistências ao meu trabalho, e sempre foi assim. Continuei insistindo, principalmente depois de descobrir que a parte do arquivo registrando a história do município, após sua emancipação, estava abandonado em outro cômodo, também ele em local impróprio, com insalubridade de alto grau.

De tanto insistir, consegui finalmente ser ouvido e todo esse material foi levado para outro local. Foram quatorze viagens em uma caminhonete. O primeiro passo foi espalhar todas as peças umedecidas num terreiro cimentado para secar. Depois o tratamento contra insetos. Ato seguinte, a catalogação dos documentos por ano e mês.

A grande e boa surpresa foi encontrar os principais atos administrativos como ata de instalação do município, primeiros decretos e outros documentos relevantes naquele amontoado. Esses documentos ainda se encontram sob a minha guarda, esperando a transferência e reorganização do arquivo municipal, que se encontram em curso.

Se esse exemplo teve lugar em município serrano, não foi diferente quando fizemos o primeiro trabalho de reconstituição da História de um município sulino. Todo o arquivo do município-mãe fora transferido para o recém-criado e, não se avaliando a importância daquele acervo, foi ele colocado num ambiente externo e inadequado do antigo prédio, submetidos às intempéries. Lamentavelmente, todo esse tesouro se perdeu.

Outro registro que muito me inquietou foi quando procurei resgatar parte da história da minha família. Por mais que possa causar espanto, encontrei situações em que netos não sabiam quem eram seus avós e, em algumas ocasiões, o próprio pai não se lembrava do nome do filho.

Mas o prazer de falar com parentes que nunca víramos foi o oxigênio e o empurrão para não desanimar da árdua tarefa a que me propunha.

- Estudar, interpretar fatos, coletar dados estatísticos e pesquisar à exaustão os acontecimentos dispersos nos fragmentados arquivos existentes foi outra tarefa difícil, pois, infelizmente não se dá atenção e valor aos elementos históricos. Alguns já perdidos por algum motivo e os existentes paulatinamente, sendo destruídos pelas intempéries, por traças, pelo mau uso e pela despreocupação com a sua manutenção e guarda.

A obrigatoriedade dos registros em cartório só teve início a partir de 1891. Os registros anteriores só são possíveis de serem encontrados nos arquivos de igrejas, nem sempre disponibilizados nos locais de nascimentos, batizados, casamentos ou falecimentos. A situação desses arquivos não é diferente das outras situações, ora perdidos, ora faltando páginas e igualmente sendo destruídos por cupins e traças.

Douglas Puppim, prefaciando um dos meus livros, escreveu e eu concordo com ele:

"Quem não enxergar os valores do passado não poderá construir um bom futuro. A alma de um povo são suas tradições, suas virtudes."

Lendo Carl Jung, confirma-se:

"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia. Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas. Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo que mutilá-lo."

Para se enveredar por esse caminho, porém, é preciso muita coragem, perseverança, amor e humildade.

A maioria dos cartórios já informatizou os seus arquivos, facilitando e simplificando o trabalho de pesquisa, e como conseqüência, de preservar o que restou da história genealógica.

As igrejas católicas também se situam no mesmo contexto. Ainda há dificuldades de convencimento, quando a pesquisa necessária se encontra registrada nos arquivos, por exemplo, nos livros de "tombos".

Selecionei quatro casos para serem apresentados neste Seminário, capazes de ilustrar o que ocorre, na maioria das vezes, quando da elaboração de algum trabalho de recuperação cultural:

1. Ao descobrir que a origem da minha avó paterna era a cidade de Visconde do Rio Branco-MG, realizei pelo menos umas trinta ligações telefônicas para a secretária da igreja católica daquela cidade. Quando julguei que já detinha informações suficientes para fazer a pesquisa "in loco", agendei com a secretária um encontro e me desloquei, de carro, para lá.

Saí de Vitória às 5 horas, chegando a Visconde do Rio Branco às 11 e meia, com tempo suficiente para almoçar num dos restaurantes da cidade.

Na hora aprazada para o encontro, me dirigi à igreja onde um imprevisto me aguardava. A gentil secretária se esquecera do compromisso e trabalhara pela manhã, para só retornar no dia seguinte.

Passada a decepção, expliquei à sua substituta do que se tratava, mas ela foi irredutível: somente a secretária titular poderia me autorizar o acesso aos arquivos. Com isso, teríamos que pernoitar na cidade. Não me abalei, o que não aconteceu com o cunhado que me acompanhava. Irritado, queria "chutar o pau da barraca". Mais paciente e calejado, pedi-lhe que mantivesse a calma, que tudo afinal daria certo. É que, esperto, fiquei de pé próximo ao balcão de atendimento, esperando a hora de "dar o bote": ao abrir o armário para atender a outra pessoa, verifiquei que os livros catalogados com o número 01 encontravam-se ali arquivados em série crescente.

Bastou um cochilo da secretária que havia se ausentado temporariamente do local, no tempo suficiente para que recolhesse o livro n° 01 e o colocasse sobre o balcão para "subtrair" a pesquisa.

Ao retornar, a funcionária ficou possessa com a minha ousadia, mas acabou aceitando minhas convincentes ponderações. Foi ai que, de repente, chegou o pároco da igreja, causando-me algum frisson. Educado, porém, me cumprimentou, indagando o motivo de minha visita. Falei ao sacerdote da pesquisa e de seus motivos, mostrando-lhe a "boneca" do livro. Interessado e curioso, convidou-me a sentar à mesa para tornar mais confortável a pesquisa e os respectivos apontamentos. E até me auxiliou a fazer o restante da pesquisa. Encontrei todos os registros que procurava. Ao perguntar-lhe se seria possível conseguir uma cópia xerox dos documentos, determinou à secretária "rebelde" para nos acompanhar até a loja. Ao lhe perguntar quanto devíamos, respondeu:

"Nenhum centavo. Que todos fizessem o que estávamos fazendo e que Deus nos acompanhasse na viagem de regresso."

Ah! Se todos fossem como o esclarecido vigário da Igreja de Visconde do Rio Branco.

Saímos de lá com a alma lavada!

2. Ainda sobre a origem do meu avô paterno, obtive informações ser ele natural de Pirapetinga-MG, próximo das cidades de Além Paraíba, Leopoldina e Santo Antônio de Pádua. Visitei a cidade várias vezes e, numa delas, ao procurar pelos registros, fui informado de que boa parte dos livros (tombos) fora seriamente danificada, quando ocorreu ali a enchente de 1949, o que destruiu praticamente este acervo histórico. Isso sem falar que dos remanescentes, boa parte estava sendo corroída por cupins e traças. O manuseio também era outra série ameaça, pois não se tinha nenhuma cautela para efetuar as pesquisas.

3. Precisei de outra feita, de me deslocar até o Rio de Janeiro, acompanhado por um primo, para fotografar uma sepultura em um dos cinco cemitérios que compõem o conjunto do Caju.

Explicados à encarregada os motivos da pesquisa (procurávamos por fotos de parentes em uma sepultura) não consegui a colaboração desejada, sob a alegação de não dispor de tempo para me atender. Não me desanimo facilmente e fiquei aguardando o momento em que a atendente, diante de minha insistente argumentação, "entregasse os pontos". Depois de várias horas de espera, ela apanhou o livro de referência, colocou-o sobre o balcão, não sem antes esbravejar para quem quisesse ouvir:

"O senhor sabe quantos sepultamentos nós fazemos em média, por dia, nesse cemitério? De 40 ou mais e hoje são 42". Como aluno rebelde, ouvi, balançando a cabeça como que concordando com a sua espinafração, achei o que procurava. Ato contínuo, perguntou-nos se iríamos ao local. Ao responder que sim, mais uma vez disparou a sua verborragia: "Eu garanto a sua ida, mas não garanto o seu retorno ainda mais com uma máquina fotográfica pendurada no pescoço".

Já estávamos nos contentando de somente levarmos para Vitória a certidão de óbito, cuja copia teríamos que obter na Santa Casa de Misericórdia, que fica no centro da cidade, quando ela nos chamou e disse: "Um momento. Hoje às 16:00 horas haverá um sepultamento próximo ao local que o senhor está procurando. É só o senhor acompanhar o féretro". Assim, concluímos mais uma etapa da pesquisa.

4. A última experiência que selecionei se deu na cidade de Mariana - MG.

Sai de Vitória de madrugada, chegando por volta do meio-dia à cidade barroca tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade. Logo depois do almoço, iniciei a pesquisa na secretaria da igreja. Também ali fui, mais uma vez, ajudado por um padre que se mostrou aberto, ao verificar o nosso propósito. Com a sua colaboração concluí mais cedo o trabalho, retornando a Vitória no mesmo dia.

Pode-se perceber, com esses exemplos, como é árdua a tarefa de historiadores e pesquisadores para levantar os poucos dados coletáveis, esporádicos e incompletos. Os relatos obtidos em entrevistas pessoais são igualmente pouco fiéis pois nem sempre são confiáveis. A maioria delas perdeu no tempo o enredo da história original e completa.

Até recentemente, esta também era a situação do Arquivo Público Estadual, hoje modernizado, capaz de recuperar os dados e disciplinar a sua utilização, assegurando aos futuros pesquisadores e interessados a preservação da nossa História.

A desconfiança de pessoas em dar informações ou na cessão temporária de documentos e fotos são outros fatores que implicam dificuldades no desenvolvimento das pesquisas.

O que fazer diante desse quadro?

Recentemente, sugeri à direção do Colendo Tribunal de Contas do Estado tornar obrigatório o registro da posição dos arquivos municipais, quando da prestação de contas anuais e sua fiscalização pelos auditores técnicos. Já foi assim, há alguns anos, e à época os resultados obtidos foram amplamente satisfatórios.

Outra situação é o envolvimento do Estado, através das secretarias estadual e municipais de Educação, tornando obrigatória a inserção da recuperação do histórico familiar, aí incluída a ascendência de cada aluno nas suas comunidades.

Partindo desse princípio, pode-se afirmar que o "binômio educação e cultura, é importantíssimo no capítulo dos deveres do Estado, mesmo correspondendo a campos diferentes, nunca será demais afirmar ser a cultura a matéria-prima da educação. A educação seria rotina não fosse patente a contribuição renovadora da cultura. A cultura é seletiva e revisionista. Só ela assegura, em meio a monotonia dos séculos, o sopro da criação e da renovação"

Embora para alguns possa parecer secundária e irrelevante a questão cultural, em contrapartida, é necessário que os governos estadual e municipal se mostrem sensíveis ao seu alcance e procurem criar mecanismos estáveis para a sua recuperação e para a sua manutenção.

Cultura, antes de mais nada, é uma realidade humana. Usar o termo sem implicar a presença do homem é conduzir para o incompreensível. Não se pode negar, e é quase axiomática, a definição de ser a cultura a soma de todas as produções de um povo.

Na medida em que se compreenda que toda expressão do povo é expressão cultural, a conceituação antropológica e sociológica da cultura se aproxima como irmãos siameses.

Coerente com essa crença, que não é de agora, quando da minha última passagem pela administração da educação estadual, fiz realizar três seminários regionais com os servidores do segmento, ativos e inativos, com a distribuição de um documento intitulado "A educação é um direito - uma política educacional para o Espírito Santo", alicerçado em três pilares: ciência, cultura e trabalho.

Ao final do seminário, aberta a palavra a todos que desejassem se manifestar, oferecendo o testemunho de como viam a educação naquele momento, uma das sugestões foi a inclusão nos currículos escolares do assunto cultura, onde cada aluno, na sua idade apropriada, teria orientação para resgatar e conhecer as suas origens e manter tradições culturais.

Infelizmente, quando há troca de administração no poder público, abandona-se tudo que foi construído à custa de recursos financeiros e do tempo das pessoas que se predispuseram a participar do momento histórico.

Sinto-me seguro e com autoridade bastante para levantar e defender a tese de ser a cultura um programa de Estado e não um projeto de governo.

Mas isso é área do Poder Legislativo.

 

Fonte: Espírito Santo - Um painel da nossa história II, ano 2012
Autor (organizadores): Gabriel Bittencourt, Luiz Cláudio M. Ribeiro
Autor deste texto: José Eugênio Vieira
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2015

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