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Jogo da vida - Por Maurício Ribeiro de Souza

Esplanada Capixaba e os terrenos baldios de PELADA, 1961

Sempre me surpreendo quando passo pela Beira-Mar, na altura da Esplanada Capixaba, e vejo como as coisas mudaram. Sei que há uma contradição neste sempre-me-surpreendo, porque, bem sabe o leitor, a repetição mata a surpresa. Mas vou me explicar. E creio que depois da revelação terei o consentimento, quando pouco a compreensão do leitor, para contrariar a lógica do espanto, da surpresa.

Quem me viu menino driblando caneladas no território baldio da esplanada, jamais poderia imaginar que ali corria um futuro meia-armador do vasto time do esporte amador capixaba. Não que eu fosse o talento maior da perna-de-pau. Era um jogador regular, jogava impelindo a anarquia tática da pelada, dividindo e me esforçando nos quatro cantos e onde houvesse bola. Não posso cantar de galo como o saudoso João Saldanha, em texto de Os subterrâneos do futebol, e testemunhar com orgulho: "No time da minha rua eu sou meia-armador". Que nada! Fui um valente na disputa e um bom companheiro de jogo. Nunca me defini quanto à posição, e, muito menos, quanto ao esporte predileto. Corria de um esporte para outro e não fui craque em nenhum deles. É por isso, agora revelo, que tanto e continuadamente me surpreendo ao passar pela Esplanada e contemplar os espigões que sombreiam o antigo terreno de peladas, enquanto eu, adulto dono dessas memórias, ocupo a posição definida de meia-armador do esporte da minha cidade. Vejam se não era difícil adivinhar os prédios chutando para escanteio os terrenos de pelada e um de seus frequentadores, não dos melhores, hoje secretário municipal de Esportes de Vitória? Rolou muita bola antes que o desenvolvimento da cidade e o menino, que ainda preservo, construíssem tais caminhos. Espero que, agora, o leitor me deixe em paz com minha continuada surpresa.

Com o orgulho de João Saldanha, hoje me sinto meia-armador. E me explico. Talvez a aptidão para vivenciar e coordenar diversas modalidades esportivas tenha nascido, em primeiro lugar, da minha indefinição pela posição preferencial, e, depois disso, da minha falta de vocação para uma única modalidade. Como um beija-flor, voava de uma para outra, ora remando, ora correndo, porque energia de infância e adolescência acaba sempre em suor. Mas posso recolher na lembrança algumas bandeiras decisivas que me largaram para a profissão de esportista. E tudo aconteceu naquele tempo em que era estranho alguém dizer que estava escolhendo ser um profissional do esporte. O imaginário da época carimbava o esporte tão somente como desocupação, no máximo atividade paralela para quem era senhor de grande talento. A exceção era o futebol, que já calçara chuteiras no país inteiro desde os tempos de Friedenreich, tido e havido como o primeiro grande craque brasileiro, tempos de Charles Miller, Belfort Duarte e outros mitos sagrados.

Talvez o caminho fosse outro, ou mais longo, se não cruzasse o meu caminho o remador Cobra D'Água. Deseja o leitor saber o nome batizado do Cobra D'Água? Diga não e me entenda: para que esvanecer a magia? Certos atletas, os deuses olímpicos batizaram-nos com chamamentos especiais, invocações tão poderosas a ponto de arrancá-los do nome de registro civil, dissociando-os da vida oficial. Coisa assim de Garrincha, que quase deixou de ser pessoa para tornar-se apenas nome de um drible que atormentava os zagueiros. Coisa assim de Pelé, ministro que atende pelo apelido. O maior atleta deste século e ministro dos Esportes nunca foi o Edson Arantes do Nascimento. Feita a justificativa, remo novamente o bote da lembrança rumo ao mestre Cobra D'Água. E aqui faço uma pausa: nela escrevo e mando o meu abraço ao grande ídolo. Pois bem, ali na Escola de Educação Física, onde hoje é o Deares, escreveu-se outra parte dos mandamentos do meu destino profissional. A influência do ídolo e o encanto da escola — os saltos, o ritmo, a sincronia, a exaustão do ensaio, a jogada perfeita ou beirando — convenceram-me a cursar Educação Física.

Com a permissão do leitor, antes que o texto leve a memória a passear pelo campus universitário, escrevo uma observação sobre a vida esportiva nesta minha cidade-ilha de Vitória. O morador de uma ilha tem comportamento anfíbio. Tem uma vida praieira, com regatas e regada a moqueca como só o capixaba sabe fazer. Dá para imaginar a nossa cidade sem o mar? A nossa vida sem o mar? É coisa de se dizer impossível. Aprendemos a espichar o olhar para os navios desde tempos imemoriais, para adivinhar os piratas e as boas novas vindas do mar. Do mirante do meu antigo campo de peladas, anteontem e hoje, os olhares observam a solene entrada dos navios. Também corri atrás de bola no Clube Saldanha da Gama, numa quadra ora inundada pela piscina do clube, e fui companheiro daqueles canhões olhando para o mar. Peças de defesa da baía, plantadas no antigo Forte São João, que virou Clube Saldanha, os canhões atualmente só fazem assistir à chegada das regatas. Os capixabas sempre prestigiam as regatas, famílias inteiras comparecem acampando o fervor de torcedores na Avenida Beira-Mar. Do outro lado, o Penedo. Vitória é um jogo entre a pedra e o mar. Que outra cidade poderia ter — até quando teve — um restaurante chamado Mar e Terra? Qualquer uma que tem mar, diria o apressado. Mas Vitória fez do comportamento anfíbio toda sua existência: seja no sabor, na tonalidade da pele das pessoas, nas tardes que esperam a brisa marinha. E fez também atletas de mar e terra. Quem não se lembra do ex-prefeito Adelpho Poli Monjardim, que, entre as tantas modalidades de sua vida atlética, fez remo e boxe, futebol e natação, levantamento de peso e "water polo"? E de Jayme Navarro de Carvalho — de quem voltaremos a falar nesta crônica —, maior multiatleta do Espírito Santo, também do remo e do basquete, do "water polo" e do atletismo, da natação e do vôlei? Vitória tem essa peculiaridade: a vida esportiva sempre forneceu atletas tipo secos-e-molhados.

Em 1972, saí do campus universitário. Mas recuo o texto para dizer o que andei fazendo por lá. Logo no início do curso, integrei-me ao movimento estudantil, virando vice-presidente do Diretório Acadêmico. Confesso que, ao contrário de outros diretórios acadêmicos, o nosso esforço estava mais centrado nas atividades esportivas, essência do curso, do que na politização. Mas não deixamos também de contribuir na vasta contestação que empolgava o Brasil, exigindo a redemocratização. Pois bem: o diretório acadêmico foi o meu primeiro laboratório de gerenciamento de projetos e eventos esportivos. E guardo uma recordação muito particular, que me emociona passo a passo quando a percorro, por conta da participação do transporte do Fogo Simbólico, do município da Serra até Vila Velha, em 1971. Saí do campus em 1972, como já disse antes.

Então a minha vida iniciou uma maratona de cursos. De técnico de voleibol e técnico de futebol de campo, curso de preparação nos desportos, de ginástica básica escolar e olímpica, de condicionamento físico, curso internacional de ginástica geral, curso de extensão universitária de handebol, curso de basquetebol, curso de atletismo e uma infinidade de cursos de reciclagem e atualização. Bem, logo estava eu arbitrando ou atuando como técnico de vôlei, basquete, handebol, futebol de campo e também futebol de salão, tênis de mesa, atletismo, natação e até corrida de karts. Fora do campus e dos cursos, tive o aprendizado das competições e da prática nas escolas onde lecionei. Fui professor da Escola do 1ºe 2º Graus Manoel Lemos da Luz, professor e técnico de vôlei e basquete da Escola Polivalente de Itacibá, professor e técnico de handebol da Escola Polivalente de Maruípe, técnico de handebol masculino e feminino do Colégio Americano Batista de Vitória, iniciando-me em todas essas atividades após ter ingressado como professor e técnico desportivo da Escola Integrada Moacyr Avidos, em 1973. Sou professor da Escola Moacyr Avidos até hoje e tenho um relacionamento afetivo com a escola e sua comunidade. A Escola Moacyr Avidos fica na Ilha do Príncipe, e, na década de 70, o mar ainda rondava pelas proximidades, embora a ilha já estivesse ligada à ilha de Vitória. Os treinos e as aulas aconteciam no aterro e numa quadra que pertencia ao Clube Álvares Cabral, construída onde hoje tem o posto de gasolina Ouro Negro, no exato local da antiga garagem de remo do clube. Depois toda a área foi aterrada, ficando impraticável para o esporte. Carregamos o basquete para o Saldanha da Gama e ocupamos o horário de limpeza do Ginásio Wilson Freitas, das 12:00 às 13:00 horas. A escola e a comunidade da Ilha do Príncipe me ensinaram a vencer um desafio a cada dia. Mas nos oito anos em que efetivamente fui professor e técnico desportivo da Escola Moacyr Avidos, conseguimos o título de escola tricampeã dos Jogos Estudantis Municipais de Vitória. Lembro-me que a maior pedreira foi preparar uma equipe de vôlei: era um tempo em que jogar com as mãos era considerado coisa de mariquinhas. Vencemos o preconceito e formamos o atleta Manoel Bandeira para os quadros da seleção capixaba de vôlei. Contudo, talvez nada tivesse sido possível sem o apoio apaixonado da torcida-comunidade da Ilha do Príncipe. A chefe da torcida chamava-se Nega — coisa assim de Cobra D'Água, Garrincha, Pelé — e buzinava uma trombeta que arrancava ânimo e injetava energia em nossos atletas...

O carinho da comunidade e os resultados que alcançamos me nomearam para a Prefeitura de Vitória. Foi em 1981, para o cargo de Chefe do Serviço de Desporto Escolar, na Divisão de Orientação e Supervisão Escolar do Departamento de Ensino da Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Um pouco antes e nesse período iniciei um relacionamento sem fim com as federações do esporte amador capixaba. Fui diretor de voleibol da Federação Universitária Capixaba (1977), vice-presidente da Federação Espírito-santense de Voleibol (1980/82), e, a seguir, presidente (1983/85), para depois ser vice-presidente da Federação de Remo do Espírito Santo (1986/88). Beija-flor de um esporte a outro; ou melhor, de terra e mar como é o esporte capixaba. Transitei de um lado a outro na atividade de gerenciar o esporte amador na Prefeitura de Vitória. Em 1985, fui convidado para conduzir o Departamento de Esporte, então ligado à Secretaria Municipal de Cultura e Esporte. Foi no Departamento de Esporte, em 11 de setembro de 1991, que contribuí para o nascimento da Lei Jayme Navarro de Carvalho.

A Lei Jayme Navarro, que homenageia o nosso maior multiatletá, mudou a história do esporte amador de Vitória. E tem contribuído, pelo seu aspecto de referência, para mudar a história do esporte em todo o Espírito Santo e, também, em várias outras cidades brasileiras. A Lei consta de dois programas: a execução dos calendários esportivos e o programa Adote um atleta. Trabalhamos com as federações, obedecendo aos critérios e às cotas previstas, e temos o prazer de dizer que em Vitória o esporte amador joga, corre, nada, salta, compete, vence dentro da lei. Essa é toda minha alegria: tudo o que pude fazer pelo esporte amador. E tenho a energia de quem quer fazer muito mais.

Talvez seja por isso, esse tudo e um pouco mais, que veio do apoio das federações, que o prefeito Paulo Hartung tenha criado, em 10 de junho de 1995, a Secretaria Municipal de Esportes. Fui nomeado o primeiro secretário de uma Secretaria que já nasceu cheia de história para contar. São muitos os capítulos que estamos escrevendo. É a força do que estamos construindo que me convenceu a aceitar o convite para escrever o depoimento que ora vou encerrando. Não sou escritor, esse não é o meu ramo. Mas fiquei muito feliz com a ideia do projeto Escritos de Vitória escolher o esporte como tema de um dos livros dessa série, que tão bem documenta a vida da nossa cidade.

As cidades e as pessoas crescem, tomam rumos por vezes inesperados. Vitória semeou prédios nos canteiros onde joguei as peladas da infância. Mas Vitória não perdeu seu ar de Cidade Presépio, que abençoa o nascimento de todos os meninos. E, quanto a mim, espero jamais perder a energia de menino, que corria os quatro cantos e onde houvesse bola, para compartilhar no esporte a emoção do jogo da vida.

 

ESCRITOS DE VITÓRIA — Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar
Diretor do Departamento de Cultura - Rogerio Borges De Oliveira
Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici
Conselho Editorial - Álvaro Jose Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Bibliotecárias - Lígia Maria Mello Nagato, Elizete Terezinha Caser Rocha, Lourdes Badke Ferreira
Revisão - Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla
Capa - Remadores do barco Oito do Álvares Cabral, comemorando a vitória Baía de Vitória - 1992 Foto: Chico Guedes
Editoração - Eletrônica Edson Malfez Heringer
Impressão - Gráfica Ita
Fonte: Escritos de Vitória, nº 13 – Esportes- Prefeitura Municipal de Vitória e Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1996
Autor: Maurício Ribeiro de Souza
Nascido em Vitória (ES). Secretário Municipal de Esportes.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2020

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