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Meus silêncios na beira do cais - Por Antônio Carlos Neves

Bar Barcaça e ao fundo o Bar Scandinave

O tempo, às vezes, tem o aspecto de um artista plástico, de um maquiador ou mesmo de um cirurgião — em qualquer das hipóteses, parece nos desafiar a descobrir a verdadeira face do que ficou para trás.

Mas a memória não é detetive: quando muito, é somente ilusionista.

Tudo começou num tempo diferente. Eu estacionava a Kombi de papai na Jerônimo Monteiro, durante as festas da FAFI, e jamais precisei me preocupar com uma vaga ou com os raros carros que passavam; mais tarde, na madrugada, sabíamos percorrer a cidade — eu, Claudio, Milson, Zélia, Carmélia e Gusmão Neto, dependendo da noite — em busca de bares e de um amanhecer sobre as areias de alguma praia, porque o tempo era diferente: as crianças ainda tinham suas casas onde dormir, as prostitutas faziam do centro de Vitória uma festa multicolorida e sadia, a polícia preocupava-se apenas com as amostras grátis de remédios que meu pai, médico, esquecia no banco traseiro da Kombi.

Claro, as noites de Vitória tinham o sabor de aventura, mas de uma aventura sem perigos ou maledicências, onde os riscos maiores ficavam por conta do receio de pisar na tartaruga fosforescente que Coracy soltava em seu apê na Duque de Caxias, quando curtíamos na escuridão lasciva nossa fossa sem limites, ou de encontrarmos alguma pessoa chata no Mar e Terra, obrigando nosso caminho a se desviar para algum barzinho mais mixuruca, onde a veia artística de Milson nem sempre desencantava.

Foi exatamente o que ocorreu naquela noite de verão. Havíamos deixado Gusmão Neto do outro lado da baía, junto à estrada de ferro, e juro que já cambaleava de sono ao volante, porque os ensaios de Arena Conta Zumbi levavam-me à loucura. Mas não havia noite para Milson e Zélia que não fosse uma criança e insistiram numa última paradinha no Mar e Terra, como sempre mortos de fome e parecendo levar no bolso um eterno copo pedindo para ser enchido. Bem, era um tempo em que eu ainda não sabia dizer não aos amigos e lá fomos nós, como sempre terminava acontecendo, para mais uma aventura.

Irônico, Milson costumava dizer que o Mar e Terra era o melhor caminho para o cemitério de Santo Antônio, mas isto era apenas um jogo de palavras: na verdade, era o melhor restaurante de Vitória naquela época, principalmente porque ficava próximo ao Clube Náutico Brasil e mais especificamente depois da meia-noite, quando todos os gatos são pardos.

Bichas enrustidas (estávamos nos dourados anos 60, embora não soubéssemos quão dourados eram), caixeiros-viajantes, boêmios, artistas, intelectuais-de-sovaco, prostitutas, pescadores, policiais, bicheiros e, graças a Deus por aqueles tempos, garçons que tomavam a noite um fascinante ensinamento — eis os frequentadores do Mar e Terra. Naquela noite, porém, o restaurante estava meio vazio, como que desanimado com o começo dos tempos rudes que chegavam com o bater das botas militares, e, entre tantos para estarem ali, apenas um grupo de intelectuais-de-sovaco deliciava-se com uma moqueca de badejo.

— Ah, não, com esses chatos eu não fico — disse logo Claudio, mal tendo colocado aquele queixo avantajado dentro do restaurante. — Meia volta, volver!

— Droga, não usa essa gíria de milico ou me estraga a noite! — irritou-se Zélia, aprofundando as eternas olheiras.

— Puxa, nem um marinheiro para me deixar sonhando com viagens! — lastimou-se Milson, naquela sua maneira eufemística de extravasar a alma.

De fato, não havia como ficar: naquela época também havia os chatos, mas em tempo algum jamais houve chato maior que o intelectual-de-sovaco.

— Pelo jeito, vamos ter de ir para casa — lastimou-se Claudio, desanimado.

— Ah, não, minha geladeira só tem teia de aranha! — contrapôs logo Milson.

— Deixa de onda, que você nem geladeira tem Milson não era de se irritar com ninguém, muito menos com Zélia:

— Estou falando da minha parte na sua geladeira, ora!

— Ei, podíamos ir até o Barcaça — sugeriu Claudio, novamente animado, e eu quase o fuzilei.

E foi assim que fomos parar naquela espelunca de palha e madeira, terraço de um imóvel no lugar onde hoje fica o cais das barcas.

O Barcaça, na verdade, fora uma invenção de Milson, encampada há algum tempo por Claudio, que não tinha a menor ideia do motivo real da preferência de nosso ator-cantor pelas proximidades do porto. Mas eu e Zélia sabíamos muito bem. Às vezes eu me espantava com nosso grupo noturno, tentando imaginar o que nos unia tanto, além do teatro que fazíamos na época. Naquela turma mais chegada havia de tudo: eu, Claudio, Zélia e Gusmão Neto éramos comunistas; Carmélia apenas amava as pessoas e o que elas traziam; já Milson, bem, Milson era o que nos encantava e era o amigo que me acompanhava no choro pela amada que não me amava. Tempos de amizade descompromissada e, sem que soubéssemos como era importante, tempos sem rancores e rivalidades. Gostávamos das pessoas e pronto, amávamos o que elas faziam, mesmo quando fazíamos a mesma coisa, só que de maneira diferente. Claro, também gozávamos com a cara de nossos amigos e nunca perdíamos a chance.

Foi por isso que Zélia riu de Claudio, quando descemos da Kombi e olhamos o Barcaça:

— Qual foi o argumento de Milson para que você gostasse tanto desse lugar, hein, Claudio?

Ele era, obviamente, muito inocente, apesar daquela cara de veterano do Partidão, e respondeu, entusiasmado:

— Tem as melhores batidas de Vitória!

— Qual a melhor batida: de marinheiro ou de piranha?

Para certas coisas, ele não sabia rir muito bem, e fechou a cara.

— Certamente você vai se empanturrar com a de piranha! — disse.

— Xiiii! Olha a apelação, cara!

— Deixa, deixa — disse Zélia, magnânima. Mas não podia deixar de completar: — Sua vontade seja feita, Claudio. Pode ficar com as de marinheiro!...

Subimos as escadas do Barcaça às gargalhadas, principalmente por causa da cara do coitado. Ele já chegou lá em cima de ovo virado e foi logo puxando a cadeira de sob a mesa com um forte pontapé.

— Olha aqui, eles não ligam para brigas, mas gostam de boa educação — avisou Milson, tentando sorrir para o baita negão que nos olhava do outro lado do balcão.

O cara parecia um armário de legítimo jacarandá, mas quando deixou o balcão e veio nos atender ficou logo claro que estaria melhor como camareiro de zona, segunda-opção de puteiro.

— Vão querer o quê?

Havia tanta insinuação naquela pergunta e na maneira como devorou Claudio com os olhos, que Zélia não aguentou:

— Ah, claro, puxa, mas é lógico, este foi o argumento de Milson, não foi, Claudio?

Desta vez ele estava desconcertado demais para engrossar e a saída foi levantar e dizer que precisava ir ao banheiro.

— Sabe onde fica, querido? — indagou o armário, todo solícito.

Mesmo se não soubesse, estava claro que Claudio preferia descobrir sozinho. Enquanto ele se demorava lá nos fundos, pedimos cerveja, batida e alguns peixes fritos.

Batia uma brisa fresca de verão e a baía de Vitória parecia um largo espelho refletindo a atividade noturna do porto. Havia um navio japonês ancorado bem diante do bar e ficamos observando o movimento dos guindastes, o vai-e-vem dos tripulantes subindo e descendo as escadas, ouvindo o rumor das máquinas funcionando e, pelo menos para mim, deixando uma amarga sensação de saudade por lugares distantes e ainda não visitados.

— Sempre sonhei viajar de navio — disse Zélia, surpreendendo-me com o mesmo tom nostálgico que aqueles ruídos do porto me causavam.

Pareceu-me, naquele instante, que estávamos todos um pouco tristes, como se a visão do cais, dos navios e dos marinheiros provocasse nosso lado solitário da alma.

Foi então que nossa atenção foi desviada pela chegada de dois homens. Não era tanto curiosidade: o bar estava vazio, nos sentíamos tristes, e aqueles dois traziam a mesma escolha que havíamos feito para passar os primeiros momentos de uma madrugada de verão.

Pareciam estivadores, ainda suados, de camisetas e bermudas justas, os músculos deixando o negão do bar bastante estimulado a ser ainda mais solícito do que fora com Claudio, que, por sinal, voltava naquele instante de sua demorada visita ao banheiro.

— Puxa, cara, já perdeu três copos de cerveja — disse Milson, o mais interessado em toda aquela demora.

— Sua batida está aí — disse Zélia, apontando para o copo. Depois completou, lançando-lhe um olhar de extremada ironia: — Mas vai ter de se contentar com uma de goiaba, pois hoje a de marinheiro está em falta...

Claudio a fuzilou com os olhos, mas Milson indagou:

— O que foi? Dor de barriga?

Finalmente Claudio deu uma risadinha.

— Estava lendo todas aquelas coisas nas paredes e na porta do banheiro. Meu Deus, o povo brasileiro tem a maior imaginação do mundo quando resolve lavar a alma!

Ele parecia genuinamente entusiasmado e Milson disse:

— Cada brasileiro tem um pouco de treinador, médico e escritor. Aliás, a Academia Brasileira de Letras devia ser restrita apenas aos fraseadores de banheiro e de pára-lamas.

— E você, meu caro Milson, nomeado Filósofo Honorário deste país. Milson ergueu seu copo de cerveja para Claudio, agradecido.

— Vou fazer um abaixo-assinado para que seja escolhido como Comunista-Padrão — disse.

— Oh, não, ele merece ser o Cantor-Padrão das Artes Cênicas Brasileiras! — complementou Zélia.

Caímos na risada, claro, Claudio não conseguia sequer assobiar duas notas afinadas e era meu terror todas as noites de ensaio, quando me deixava imaginando como seria no dia da estréia. Não havia jeito de cantar nenhuma das músicas de Edu Lobo na peça Arena Conta Zumbi, que estávamos ensaiando, e tive de sair pela tangente: pedi que apenas abrisse a boca, sem cantar, contando com isto enganar o público. Até que era uma solução bem razoável, mas o problema era que ele, segundo me garantia, precisava de um subtexto para superar todos os momentos de mutismo durante as músicas e resolveu à sua própria maneira — xingando. E xingando. Enquanto o elenco suava para criar uma harmonia entre si, ele xingava os milicos, a ditadura, os revisionistas e os maoístas, todos os trotskistas, os dedos-duros que havia na FAFI e outras tantas coisas que estavam em desgraça. E eu rezava para que não desse um branco no elenco durante as apresentações e, naquele silêncio que certamente haveria no teatro, só fossem ouvidos seus xingamentos. Afinal, era uma época em que os censores não perdiam uma noite de teatro.

— Podia ter um violão por aqui — disse Zélia, começando inesperadamente, como convinha naquele tempo, a entrar na fossa.

— Milson podia cantar o Vandré — sugeriu Claudio, animado.

— Não, Vandré não — reclamou Zélia. — A noite está mais para Dolores Duran.

— Pronto, nossa musa entrou no espírito de Coracy. Puxa, o Cora devia estar aqui.

— Ou a gente lá.

— Ninguém me ama!.. Ninguém me que-eeer! — trovejou Claudio, com aquela voz infame de fazer cachorro uivar sem lua cheia. Tapamos os ouvidos, sentindo a canção arranhar nossos tímpanos, e um dos estivadores gritou da outra mesa:

— Ei, cara, com uma voz dessas, quem é que pode te amar? Só se for alguma surda!

Claudio tinha plena consciência de não cantar nem mesmo durante o banho, até se gabava disto, só Deus sabia por quê, mas não admitia que ninguém menos que um amigo jogasse uma coisa dessas em sua cara. Na hora em que ele se levantou, ficou evidenciada sua condição de carcamano, pois Claudio era um perfeito italianão caipira na aparência, embora com a alma sensitiva de um poeta. Quer dizer, quando ninguém o provocava. Nestas horas é que esquecia suas citações preferidas de Drummond e tornava-se um brechtiano de língua ferina.

— Maoísta dos infernos! — exclamou.

Os dois homens se entreolharam, sem entender absolutamente nada.

— Acho que esse cara está te xingando, Onivaldo — disse o de camiseta vermelha.

— Revisionista maldito! — continuou Claudio.

— Viu? Ele disse maldito, Onivaldo — voltou a expli-car o de camiseta vermelha.

Àquela altura, o de camiseta azul já estava parecendo perder a paciência e levantou-se também, ficando quase dez centímetros acima de Claudio. Todos percebemos que ia haver problema. Só Claudio não se dava conta de nada, parecendo feliz com todas aquelas ofensas, que considerava as piores de seu vocabulário:

— Trotskista safado! Cachorro reaça!

— Ei, cara!

Ninguém mais duvidava que nosso companheiro estava prestes a levar um bofetão. Foi então que Milson levantou-se e foi até o estivador de camiseta azul e contemporizou de uma maneira que nos obrigou a conter o riso:

— Acho que não está entendendo, camarada — disse.

— Ele está cantando uma música comunista, só para lhe mostrar duas coisas: que está do lado dos oprimidos e que parece ofender os outros quando canta, de tão ruim que é. Mas a música é muito bonita, quer ouvir? — e entoou, com sua maravilhosa voz, ao ritmo da Bandiera Bossa: — Maoísta dos infeeernos, revisionista maldiiito, trotskista safa-doo, cachorro rea-ça!

O tal de Onivaldo ficou confuso e olhou o companheiro, que parecia ainda mais despreparado para aquela explicação absurda.

— Comunista? — indagou finalmente Onivaldo. — Esse cara aí?!

— Ora, não repare na aparência, camarada — disse Milson, começando a levar o outro, disfarçadamente, de volta à mesa. — Lênin tinha cara de contador e Marx parecia um burguês!

Claudio sentou-se inesperadamente ao lado de Zélia e confidenciou:

— Zélia, meu amor, esse artista alienado está ofendendo nossos deuses.

— Ora, cala a boca, ele está apenas livrando sua cara.

Claudio olhou para Milson, que conseguira fazer o estivador sentar novamente, depois insistiu:

— Ainda assim acho que está ofendendo nossos deuses.

Não sei se foi porque já estavam prontos ou se o garçom simplesmente entrou na dança para evitar maiores problemas, mas o fato é que ele surgiu trazendo nossos peixes fritos e as coisas esfriaram. Claudio estava com mais fome do que disposição de brigar, como sempre ocorria, e tratou de atacar sua porção. Por vários minutos nos dedicamos com toda eficiência aos peixes e à cerveja, enquanto os dois na outra mesa continuavam a encher a cara.

Lá fora, o porto continuava sua vida noturna: os guindastes pareciam amestrados dinossauros metálicos e as putas riam e conversavam alto do outro lado da rua ou no Bar Scandinávia. Podíamos sentir a brisa de verão entrando pelas janelas abertas e as buzinas, que só em mais alguns anos se tornariam um inferno, faziam a vida mais real.

Quando Zélia, mais tarde, começou a cantar, com sua voz delicada e melancólica por natureza, tudo nos pareceu então absolutamente natural.

A gente briga,

diz tanta coisa que não quer dizer...

briga pensando que não vai sofrer...

que não faz mal se tudo termi-naaar!

 

Logo, todos cantávamos, até mesmo Claudio. Eu o conhecia bem e sabia que chegara a hora da madrugada em que ele sentia falta de alguma coisa na vida, alguma coisa que nem mesmo ele sabia muito bem o que era, mas que o levava invariavelmente às citações de seus poetas mais amados, logo ele que era tão bom poeta e estranhamente necessitava das rimas alheias para abrir sua própria alma. Nossas músicas na madrugada eram assim, o caminho mais rápido — e talvez não o mais fácil — para escancarar o coração. E cada um cantava à sua maneira, como se alguma saudade, uma dor ou um segredo ainda impróprio para ser contado ditasse o tom e o volume das interpretações: Milson erguia a voz como se pretendesse que todo o porto o escutasse, Claudio esquecia-se de que não tinha voz e soprava roucamente os trechos de menor importância e apaixonadamente aqueles que o emocionavam, Zélia apenas sussurrava e tinha os olhos fundos perdidos em algum lugar, enquanto eu mal abria os lábios, porque quase sempre conhecia apenas a melodia e, à minha maneira, não precisava de voz para sofrer a dor de uma paixão não correspondida.

Milson — e hoje acho que somente ele seria capaz — foi quem percebeu o que se passava na outra mesa.

Como explicar, sem medo de ser piegas ou mal compreendido, o que pode ocorrer com o coração de um homem? Rude e claramente macho, aquele estivador de camiseta azul chorava.

— É constrangedor — disse Claudio, o comunista.

— Não é — revidou Zélia, a comunista.

— Um homem só chora por amor — filosofou Milson, olhando para mim.

E eu, bem, eu que conhecia doloridamente o que era aquilo, estava fascinado pelo personagem: ossos do ofício. Ele cantava, porque não deixamos que a música parasse, e chorava, cantava e dizia alguma coisa ao companheiro, chorava. Atrás do balcão, o armário de jacarandá sofria e mordia os lábios, provavelmente louco para consolar aquele brutamontes e certamente achando que ainda não era a hora. Existem bichas que sabem o momento certo de apaziguar seus homens e aquela era uma delas, bendita seja.

Triste-eza

por favor vai embo-ora

minha alma é que cho-ora

está vendo o meu fim...

A música era para mim, mas Onivaldo é quem se desesperava. Ele começou a falar mais alto com o companheiro de camiseta vermelha, extravasando aos gritos a dor que lhe ia na alma, deixando o armário de jacarandá com uma cara de sofrimento que dava dó. Mas também ele estava mais próximo e devia estar entendendo o que o pobre homem dizia — quanto a nós, apesar da evidente curiosidade de alguns, aquela era uma música para ser cantada a plenos pulmões, o que de fato ocorria, e não conseguíamos ouvir nada. Foi então que ocorreu um daqueles brancos, que eu tanto temia que ocorresse durante uma apresentação da peça, e pudemos escutar nitidamente Claudio gritar:

— Corja de milicos safados!

Olhamos para Claudio, meio chocados, e Milson abaixou-se para apanhar um garfo que Zélia deixara cair, com o susto. No momento em que levantava a cabeça, a bala passou entre nós dois, a poucos centímetros de sua testa, e foi alojar-se na parede de madeira do Barcaça. Em seguida, ouvimos o tiro.

Foi como se uma seta tivesse sido soprada de uma zarabatana, tão fora de hora nos pareceu aquele disparo.

E foi uma confusão dos diabos.

Milson e Claudio começaram a rir como dois idiotas, enquanto Zélia jogava-se debaixo da mesa e eu dava um pulo para o lado. O negão, por outro lado, foi rápido e eficiente, agarrando Onivaldo por trás e imobilizando-lhe os braços. O outro estivador continuou sentado de costas para nós, provavelmente em estado de choque, sem mover um músculo. Não sei o que o negão disse ao pé do ouvido de Onivaldo, mas ele acalmou-se quase que imediatamente, recomeçando a chorar. Nunca vi tamanha facilidade para se tomar de alguém uma arma que ainda tinha fumaça escapando do revólver, mas o negão conseguiu. Inclusive, levá-lo mansamente para os fundos do bar, sustentando-o para não cair, com a mesma solicitude de um amante consolando seu amor repleto de dúvidas e culpas.

— Rapaz, essa foi por pouco! — exclamou Milson, com um suspiro do tamanho do mundo.

Enquanto ele examinava a bala encravada na madeira, com sua típica admiração por novas experiências de vida, nos dirigimos para o outro estivador. O coitado continuava na mesma posição, branco como um fantasma dos velhos filmes de matinê.

— Ei, camarada, você está bem? — indagou Claudio, sentando ao lado dele.

O homem olhou para ele, completamente confuso. Depois para mim e, finalmente, Zélia.

— A-acho... que sim — disse.

Não era bem o que nos parecia e Zélia também sentou-se, tocando-lhe o braço suavemente.

— O que houve? — perguntou, baixinho. — Ele queria lhe matar, é? Não são amigos?

Aquela pergunta pareceu deixá-lo ainda mais confuso.

— Somos! Somos compadres!

— E por que ele atirou em você?

Ele ficou olhando para Zélia por um longo tempo, como se avaliasse o ocorrido, sem saber explicar muito bem a atitude do compadre. Neste meio tempo, Milson também se aproximou, sem perder de vista a porta dos fundos do bar, curioso com o silêncio lá dentro.

— Ele acha que tenho um caso com a mulher dele — disse finalmente o estivador.

— Ele acha isso, é? — interessou-se subitamente Milson, olhando para ele. — E você, o que acha?

O homem ficou ofendido.

— Está brincando? Eu jamais faria uma coisa dessas com meu compadre!... — ele nos olhou, meio sem graça, mas disse: — Além do mais, ela é um tremendo bucho!

Novamente Milson e Claudio começaram a rir como dois idiotas, mas desta vez eu podia compreendê-los. Zélia foi quem não gostou daquela maneira de tratar uma mulher e esbravejou:

— Vocês são todos uns machistas! A beleza de uma mulher está em seu coração, na sua maneira de ser, é uma beleza interior!

O estivador de camiseta vermelha avaliou-a inteirinha e disse:

— Olha, dona, se me perguntasse onde está sua beleza, eu diria que está bem à vista!...

Zélia era mesmo estranha e imprevisível, sempre fora assim. Não usava sutiã, e isto numa época em que os biquínis tinham o tamanho dos maiôs de hoje, adorava zombar dos tímidos e divertia-se a valer com os olhares sobre seus decotes, mas quando tratava um assunto a sério era capaz de corar com uma cantada. E foi o que aconteceu: Zélia ficou vermelha como suas ideias políticas e levantou-se, sem aprumo.

Estávamos espantados demais para rir, mas, de qualquer forma, o negão estava de volta, e sozinho. Pela cara não tínhamos nem ideia do que acontecera lá dentro, mas fizemos logo uma suposição do que aconteceria mais tarde, porca que era nossa mente, quando avisou:

— Hora de fechar, pessoal.

Pensei que Claudio fosse protestar, mas ele apenas me contrariou, dizendo:

— Está certo.

Lógico, eu havia esquecido que ele, mais do que ninguém apaixonado por Drummond, conhecia muito bem que havia uma hora para tudo.

Ainda sentado a seu lado, o estivador estava desconfiado.

— E meu amigo?

Foi varado por um olhar fulminante.

— Não tem vergonha de perguntar? — indagou o negão. Deu então um passo sobre o homem e quase arranhou seu nariz com aquela unha comprida na ponta do dedo em riste. — Pena que aquela bala não lhe pegou, cara! No lugar dele, eu teria mirado entre as pernas!

Camiseta Vermelha estava chocado demais para protestar e se deixou arrastar por Claudio até a porta.

— Não ligue, camarada — disse nosso poeta comunista, com ares de cúmplice. — A classe trabalhadora tem preocupações mais sérias!...

Só então o homem revoltou-se:

— À merda com a classe trabalhadora! Além do mais, sou chefe daquele borra-botas e detesto comunista!

Levou no ato um empurrão e desapareceu escada abaixo, perseguido por Claudio.

— Que filho-da-puta! — exclamou Zélia. — É por essas que o Brasil não faz uma revolução!

Pagamos ao negão, enquanto Milson comentava, azedo:

— Revolução!... Que revolução, se os comunistas sempre dão um jeito de sumirem na hora de pagar a conta?!

Era hora, finalmente, de ir embora. E já estava com um pé no primeiro degrau, quando olhei pela janela do Barcaça.

Lá fora, a manhã estava começando. Por trás do Penedo, como uma vela sendo acesa, surgia a primeira claridade do dia. Eu sabia, claro, que era apenas mais um dia entre tantos e que terminaria de forma parecida, quando após o ensaio sairíamos pela noite em busca de alguma nova aventura, nos aguardando em alguma praia, em algum restaurante ou em qualquer esquina da cidade, provavelmente em outro bar, até que nos cansássemos ou fôssemos expulsos, mas não ligaríamos, porque a vida era ainda, e apenas, uma criança. Era uma época, sim, em que a vida seria sempre uma criança, até que os bares se fechassem. Sabíamos disso muito bem, porque tínhamos, inclusive, nossa própria despedida.

E, na ausência de Claudio, lá embaixo resolvendo suas desavenças políticas, foi Milson quem despediu-se da noite por nós, repetindo nosso trecho preferido de Drummond:

— Há uma hora em que até os bares se fecham...

 

Fonte: Escritos de Vitória, 5 - Porto, 1994
Autor: Antonio Carlos Neves
Nascido em Vitória (ES).
Formado em Direção de Cinema e Televisão.
Jornalista e Escritor.
Autor de Outra vez a Esperança, Terror nas Sombras e Um lugar sem importância.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2020

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