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Motins e desatinos no ES, anos 20 do século XIX

José Marcelino Pereira de Vasconcelos - Fonte: Livro História do Estado do Espírito Santo, de José Teixeira de Oliveira

Já em 1820, Sousa Botelho teve de enfrentar um motim da Tropa de Linha aquartelada na capital. “Questões de nacionalidade” deram origem ao incidente, que teve o concurso do povo.(5)

Ao ser divulgado, em Vitória, o decreto de vinte e quatro de fevereiro de 1821,(6) novas manifestações de rebeldia agitaram o burgo. O padre Francisco Ribeiro Pinto – capelão da tropa – foi acusado, pelo governador, como um dos cabeças das liberdades.(7)

Noutros tempos, abrir-se-iam severas devassas a propósito de qualquer desses tumultos. Agora, o governo local sentia-se impotente para punir os agitadores. Limitava-se a comunicar, para o Rio de Janeiro, as desordens que se amiudavam. E, como ninguém sofria punição, alastrava-se a onda dos rebeldes, cada vez mais temerários nas suas exigências.

Foi assim em julho (catorze) de 1821, quando o governador, clero, nobreza, povo e tropa prestaram, na igreja-matriz de Vitória, “solene juramento de guardar e cumprir a Constituição portuguesa, tal qual foi deliberada, feita e acordada pelas Cortes nacionais convocadas em Lisboa”.(8) Amotinou-se o Corpo de Tropa de Linha, exigindo fosse substituído seu comandante efetivo – o sargento-mor Francisco Bernardo de Assis e Castro – por José Marcelino de Vasconcelos,(9) sargento-mor de artilharia. Alguns civis juntaram-se à soldadesca e  entregaram-se a desatinos, atacando estabelecimentos comerciais e disparando suas armas pelas ruas da Vila. O governador não teve forças para dominar os insubordinados e curvou-se à exigência, entregando o comando daquela tropa a José Marcelino.(10)

Na mesma ocasião, elementos do povo pediram se instalasse, na província,(11) um governo provisório.(12) Sousa Botelho, prudentemente, reclamou a assinatura dos que apresentavam tal alvitre. Apenas “um caixeiro da praia e um boticário” se acusaram e “todo o mais povo, clero e nobreza clamou (sic) que não”. (I)

 

NOTAS

(5) - DAEMON, Prov ES, 252.

(6) - Aprovava a Constituição que se estava fazendo em Portugal.

(7) - Ofício do governador dirigido ao Conde dos Arcos, secretário dos Negócios do Reino. Vitória, três de abril de 1821 (Gov ES, II)

(8) - Ofício do governador a Pedro Álvares Dinís, secretário dos Negócios do Reino. Vitória, catorze de julho de 1821 (Gov ES, II).

(9) - José Marcelino de Vasconcelos – Sargento-mor de Artilharia de Linha, servia no Espírito Santo como oficial de Engenharia, em comissão. DAEMON que nos fornece as informações refere-se a levantamento de plantas topográficas, orçamentos e estatísticas feitos por José Marcelino (Prov ES, 252).

(10) - Ofício do governador a Pedro Álvares Diniz. Vitória, catorze de julho de 1821 (Gov ES, II).

– DAEMON, Prov. ES, 253. O efemeredista diz que a “tropa [fez] junção com alguns paisanos contra a oficialidade portuguesa” (Op. cit. 253).

O motim da Tropa de Linha trouxe ao ES o então coronel Luís Pereira da Nóbrega de Sousa Coutinho (ver Nota I deste capítulo) para fazer um inquérito (Gov ES, II) cujos resultados não se conhecem. O oficial fez parte da loja maçônica denominada Distintiva, da qual diz OLIVEIRA LIMA que “era antes republicana e revolucionária do que simplesmente liberal” (O Movimento, 51-2). Seu nome figura com destaque entre os grandes vultos da Independência.

(11) - Por decreto de vinte e oito de fevereiro de 1821, as capitanias receberam o titulo de províncias.

(12) - Ofício dirigido pelo governador a Pedro Álvares Diniz: “Tendo a honra de participar a V. Excia, que acontecendo no dia catorze de julho do corrente, na igreja matriz desta Vila, no ato de jurar-se a Constituição, e suas bases, gritaram, um taberneiro, um boticário e mais três ou quatro homens em tudo semelhantes, a estes, que queriam se instalasse governo provisório, chamei o dito taberneiro, e boticário, únicos que apareceram perante mim, e as corporações que ali se achavam, quais a Câmara, e todas as pessoas principais do país, e pelas mesmas corporações, e mais povo, que estava presente foi nominalmente decidido que o governo se conservasse da mesma forma em que se achava estabelecido, até que as Cortes Nacionais, ou S.A.R. determinasse o contrário, de que se lavrou um termo no livro da Câmara.

Mas apesar de tudo, rogo a S.A.R., em primeiro lugar, perdão da minha reiteração, e em segundo que me conceda licença para retirar-me, pois as minhas moléstias e meu espírito cansado não permitirão que viva muito tempo.

O que tudo queira V. Excia. por sua muita bondade levar ao conhecimento do mesmo augusto senhor. Deus guarde a V. Excia. muitos anos. Vitória, três de agosto de 1821. Ao Exmo. Sr. Pedro Álvares Diniz. (a) Baltazar de Sousa Botelho de Vasconcelos.”

– Ao alto do ofício retro, lê-se o seguinte: “Responda-se que S.A.R. quer conservá-lo pelos seus bons serviços” (Gov ES, II).

 

(I) Depoimento do padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, no processo mandado instaurar por José Bonifácio de Andrada e Silva contra Domingos Alves Branco Muniz Barreto e outros (apud MELO MORAES, Brasil Histórico, III, 13-4). Além do padre Ribeiro Duarte, foram ouvidas no processo outras pessoas de prol da província do Espírito Santo. Suas declarações contêm trechos que permitem evocar o ambiento psicológico daqueles dias memoráveis. Ressaltese, apenas, a significação do trabalho de aliciamento que o então coronel Luís Pereira da Nóbrega teria feito junto à elite da província. A impressão é que sua viagem a Vitória teve finalidade especificamente política. O inquérito teria sido mero pretexto para uma excursão de propaganda.

“Processo dos cidadãos, Domingos Alves Branco Moniz Barreto, J. da Rocha Pinto ... mandado fazer por José Bonifácio de Andrada e Silva.

Assentada de doze de novembro à fl. 65.

Testemunha 11 – O padre Manuel de Freitas Magalhães, natural da Província do Espírito Santo, morador nesta corte, na rua do Cano, em casa do Exmo. José Mariano, etc.

Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e referimento que nele se fez a testemunha número um, disse que ele testemunha só dissera que Luís Pereira da Nóbrega não era afeto à família real de Bragança, e que isso conheceu ele testemunha quando o dito Nóbrega foi à Capitania, porque indo nessa ocasião visitá-lo, lhe disse este na conversação que tivera com o mesmo Nóbrega sobre os negócios da Capitania, que dois homens na ocasião de jurarem a Constituição requereram um governo provisório, e que todo o resto do povo se opôs a isso, ao que ele Nóbrega respondeu que não tinham feito bem, pois que se devia instalar o governo provisório ao exemplo das mais Províncias, visto que essa era vontade do povo; e porque ele testemunha lhe replicasse que dois homens somente não constituíam o povo, tornou ele: ‘Não importa; esses mesmos se deviam atender, porque assim tem acontecido nas mais Províncias, e demais o povo já está muito farto de sofrer despotismos, e a mim consta-me que o governador desta Província admite em sua casa, da meia noite para o dia, certos realistas e corcundas, que lhe vêm dar conselhos para o mal’, ao que ele testemunha respondeu que era muita falta de lógica dizer S. S. como tinha acabado de dizer, que o governador era bom, e que ao mesmo tempo ouvia realistas e corcundas que o aconselhavam para o mal, que todavia ele não praticava.

Testemunha 16 – O Rev. Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, natural da Capitania do Espírito Santo, morador nesta corte, em casa do Exmo. José Mariano, etc.

E perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e pelo referimento que nela fez a primeira testemunha, disse que quando ele viu que S. M. aqui tratava bem a Luís Pereira da Nóbrega, se admirou, e muito mais quando o viu nomeado interinamente ministro da Guerra, porque tendo o mesmo Nóbrega sido mandado à capitania conhecer de uma facção ali sucedida, e fazer lançar fora os perturbadores do sossego público, combinando-se com o governador Baltasar de Sousa Botelho, se mostrou todo partidarista dos facciosos, maltratando ao dito governador e à melhor parte do bom povo daquela Província porque determinando o dito governador (o que melhor ali apareceu: Deus lhe fale n’alma!) que se jurasse proclamasse a Constituição, se fez a ata na câmara, e indo todos para o Te Deum, apareceu um grito pedindo governo provisório, e como quer que o prudente governador pedisse as assinaturas dos que o exigiam para sua salvaguarda, somente apareceram como amotinadores um caixeiro da praia e um boticário, e todo o mais povo, clero e nobreza, clamou que não.

Disse mais que ele testemunha, tendo recitado uma oração em que claramente mostrava que o governo provisório, pedido tumultuariamente, não convinha àquela Província ... foi por isso maltratado, principalmente depois que ali chegou Nóbrega, que fez espalhar pelo povo que todos os que assim pensavam, e que mostravam afetos à casa real, eram chamados corcundas e anticonstitucionais o que obrigou a ele testemunha a se retirar daquela Província com licença.

Disse mais que o dito Nóbrega dizia, publicamente naquela Capitania, que o governo provisório devia instalar-se logo que houvesse aquela voz que o pediu, a exemplo de outras Províncias que tinham feito o mesmo, porque os povos estavam cansados de sofrer despotismos. [Anotou Melo Morais: “Esta testemunha mostra pelo seu depoimento que é um corcunda refinado: é por isso que atribuiu a crime em Nóbrega as expressões que diz lhe ouvira contra o despotismo”.]

Testemunha 30 – Luís Bartolomeu da Silva e Oliveira, natural de Lisboa, capitão do corpo da primeira linha da Capitania do Espírito Santo, etc.

Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e referimento que nele fez a testemunha número onze, disse que o referimento é verdadeiro, pois que o ex ministro Nóbrega, quando foi à Capitania do Espírito Santo, não fez cousa alguma por destruir a facção, antes a aumentou, protegendo e louvando os facciosos; que ele testemunha tivera na Capitania uma longa conferência com Nóbrega, na qual expondo ele testemunha os seus sentimentos acerca dos malvados autores da facção, ele dissera a ele testemunha que se calasse, porque aliás o havia trazer à presença do imperador, então príncipe regente, e que cá haviam chamar a ele testemunha corcunda.

Assentada de vinte e dois de novembro a fls. 93

Testemunha 32 – O tenente-coronel Inácio Pereira Duarte Carneiro, natural da Capitania do Espírito Santo, morador na Rua de S. José, etc.

Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e referimento da testemunha número onze, disse que indo o ex-ministro Nóbrega à Capitania sindicar sobre o procedimento do dito major (José Marcelino) acima referido, e indo ele testemunha cumprimentá-lo, e tendo-lhe feito ver por uma larga conversação quanto fica referido lhe tomou o dito Nóbrega que ele testemunha tinha obrado muito mal em se opor às pretensões do dito major José Marcelino, porque mostrava ele testemunha intenções de querer derramar o sangue de sua pátria, que no Rio de Janeiro seria tratado por um corcunda, e que até ficaria arriscado a pagar tal procedimento com a sua cabeça.

Disse mais que o dito Nóbrega falava com pouco respeito da pessoa de S. M. o Sr. D. João VI, dizendo que já não éramos mais seus vassalos, que éramos cidadãos livres, e repreendendo igualmente aos que mostravam sentimentos de moderação, chamando-os corcundas.

Testemunha número 33 – Jerônimo de Castanhese Vasconcelos Pimentel, natural da Bahia, tenente do corpo de primeira linha da Província do Espírito Santo, morador nesta corte, etc.

Perguntado pelo conteúdo no auto da devassa e referimento da testemunha número onze, disse que era verdadeiro o referimento, porquanto a facção promovida naquela Província tomou maior calor depois que lá chegou o ex-ministro Nóbrega, que publicamente protegeu a facção e seus autores, e a ele testemunha disse o dito Nóbrega, por ocasião de ir depor, que o tempo do despotismo já se havia acabado; que aqueles homens (os facciosos) deviam ser ouvidos e atendidos, e que ele testemunha e outros haviam responder por serem seus acusadores; e não foi chamada testemunha alguma das que ele testemunha referiu, antes foram, bem como o governador, apelidados pelo dito Nóbrega com o nome de corcunda, nome que ele levou à Capitania” (Melo Moraes, Brasil Histórico, III, 13-4).

 

Fonte: História do Estado do Espírito Santo, 3ª edição, Vitória (APEES) - Arquivo Público do Estado do Espírito Santo – Secretaria de Cultura, 2008
Autor: José Teixeira de Oliveira
Compilação: Walter Aguiar Filho, dezembro/2017

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