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O Fim da Escravidão – Por Cleber Maciel

O fim da escravidão - Do livro de Cleber Maciel

O processo que levou ao fim da escravidão foi muito lento. Pode-se dizer que ele começou com as lutas dos primeiros escravos e foi acelerado pelas revoltas, fugas e formações de quilombos. Entretanto, deve-se considerar também a legislação que põe fim ao tráfico, a ação dos abolicionistas e a aprovação e aplicação das leis libertadoras, como a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário e a Lei Áurea.

 

5.1. Os últimos tempos do tráfico

Cachoeiro de Itapemirim, Piúma, Guarapari, Vitória, Santa Cruz e São Mateus eram regiões onde o comércio era intenso, com constantes desembarques de escravos. Na região de Vitória, eram muito conhecidos os mercados de compra e venda de escravos da fortaleza de São João, onde é hoje o Clube Saldanha da Gama; o mercado de Campinho, o atual Parque Moscoso, e o mercado de Porto Velho. Nesses locais, em 1845, um escravo poderia ser comprado por 250 mil réis.

Mesmo com as pressões feitas pela Inglaterra para pôr fim ao tráfico internacional de escravos e com a Lei que já o proibia, o Espírito Santo ainda era muito visitado pelos navios negreiros e o contrabando continuava, apesar da vigilância, nada eficiente e até, por vezes, conivente do governo brasileiro.

Assim, depois de 1850, muitos navios negreiros ainda desembarcaram escravos tanto nas proximidades de São Mateus, no norte, quanto próximo às plantações de café do sul, na região de Cachoeiro de Itapemirim, ambas consideradas as principais áreas de contrabando e desembarque clandestino de escravos. Muitos escravos também foram comercializados nas proximidades de Vitória. Em março de 1851, foi aprisionado um navio que fazia o desembarque de 120 escravos, vindos da África, nos portos de Itabapoana e Piúma. Ao mesmo tempo, os traficantes se vangloriavam de não temerem a justiça. Já em 20 de janeiro de 1856, foi aprisionado o navio Mary Smith, com 350 escravos africanos que iam ser vendidos em São Mateus.

Pouco antes, contrabandistas já tinham sido surpreendidos tentando desembarcar outros africanos no litoral de Guarapari. O contrabando contava com a participação do conhecido Barão do Itapemirim, famoso negociante de escravos e protetor dos contrabandistas. Nesse sentido, um artista viajante francês, Biard, que passou por terras capixabas nessa época, registrou em seu diário ter visto africanos recém-chegados como escravos e até descreveu um deles(38).

 

NOTAS

(38) BIARD, Auguste-François. Viagem à procura do Espírito Santo. Vitória, Cultural ES (Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo). 1986. Ao longo do texto, Biard, em diversas ocasiões, fala sobre os negros que ia encontrando por sua viagem, entre novembro de 1858 e maio de 1859. Especificamente sobre o africano citado, a descrição está nas páginas 19 e 123.

 

5.2. A liberdade podia ser comprada

Uma das formas de um escravo obter a liberdade era comprando-a. Porém, como os preços eram muito altos, e eram poucos os escravos que conseguiam acumular algum valor, os abolicionistas criaram os Fundos de Emancipação, isto é, mecanismos diversos de arrecadação de dinheiro para o pagamento de Cartas de Liberdade, também chamadas de Cartas de Alforria.

Apesar de os Fundos de Emancipação serem formados por dinheiro público e ficarem disponíveis para o pagamento dos fazendeiros em trocadas Cartas de Liberdade, muitos fazendeiros e senhores de escravos, principalmente de Cachoeiro de Itapemirim, se recusavam a vender a liberdade para seus escravos, e quando o faziam procuravam superfaturar os preços. Dessa forma, em 18 de fevereiro de 1881, 17 escravos conseguiram Cartas de Alforria, compradas com o dinheiro do fundo, por 1.000 contos de réis cada uma, embora o preço médio na região fosse de 800 contos de réis. Tudo isso apesar de já haver lei garantindo ao escravo o direito de comprar sua liberdade independente de o senhor querer ou não vendê-la.

Mas as leis quase nunca são obedecidas pelos poderosos... Além do que, muitos senhores, quando percebem que iam ficar sem seus escravos, tentavam burlar as leis e até tirar alguma vantagem delas. Eles, por exemplo, vendiam a liberdade, recebiam o pagamento equivalente, mas na Carta de Liberdade colocavam cláusulas contratuais restritivas à liberdade, como estabelecer que o ex-escravo devia “servi-lo” até a sua morte, cuidar de seu gado, da plantação ou das colheitas de sua produção etc. Com esses artifícios, muitos proprietários de escravos receberam o pagamento pela liberdade que venderam, mas conservaram os “libertos” sob seu controle e trabalhando como se ainda fossem escravos. Houve casos em que escravos ou ex-escravos tiveram que recorrer à justiça para garantir seus direitos. Contudo, era muito difícil um negro, mesmo com todas as leis a seu favor, ganhar uma causa contra o seu fazendeiro.

De qualquer forma, o importante é que muitos escravos não eram tão ignorantes sobre os acontecimentos econômicos, sociais e políticos, como muitos escritores e historiadores racistas tentavam fazer parecer. A cada nova lei e acontecimento nacional ou internacional que apontava no sentido do fim da escravidão, os escravos agiam mais conscientes e intensamente visando a acelerar as mudanças, seja com fugas, revoltas e quilombos, seja economizando ou trabalhando mais para comprar a liberdade, seja não aceitando condições restritivas à liberdade. Enfim, lutando para que, mesmo diante das injustiças, a liberdade plena chegasse.

 

5.3. O fim da escravidão não significou liberdade plena

Mesmo com as pressões internacionais contra o tráfico de escravos e a escravidão, com as pressões internas dos abolicionistas brasileiros e com a existência de várias leis que tentavam dar alguns passos no sentido de acabar com a escravidão, para os negros escravizados uma das únicas formas de se conseguir a liberdade, rápida e plenamente, era com as fugas em massa, principalmente depois da lei de 1886, que acabava com as penas de açoite.

Para tentar conter o aumento do número de fugas, alguns fazendeiros,em 1886, percebendo que o regime escravista já não mais sobreviveria e que seu fim estava próximo, simulavam a concessão de alforria, prometendo-a para 1890 ou mais à frente. Até mesmo diversos capixabas que se diziam abolicionistas somente libertaram seus escravos após a Lei de 13 de maio de 1888, que, por sinal, foi publicada em Cachoeiro de Itapemirim junto com a notícia de que Cordeiro, um escravo fugitivo, tinha sido recapturado e como castigo fora amarrado ao rabo de um cavalo e arrastado por cerca de uma hora, pelas estradas da região.

Como aconteceu pelo Brasil afora, também no Espírito Santo os escravistas inventaram muitas mentiras a respeito dos ex-escravos, dizendo, principalmente, que, com a Lei Áurea, os negros não mais queriam trabalhar e preferiam ficar perambulando, na vadiagem, perturbando a paz e o sossego. Na realidade, depois de passada a euforia inicial da lei, muitos escravos tentaram permanecer nas fazendas para trabalhar. Entretanto, os fazendeiros, por raiva e racismo, só queriam aceitar imigrantes europeus. Foi isso que aconteceu na famosa fazenda Monte Líbano, de Cachoeiro de Itapemirim, que sempre fora bastante próspera explorando o trabalho dos negros escravizados. Depois do fim da escravidão, os donos dessa fazenda só aceitavam brancos como trabalhadores livres, alegando que os negros eram preguiçosos e os europeus, esforçados.

 

5.4. Acabada a escravidão, para onde foram os negros?

Alguns poucos fazendeiros, além de imigrantes, também recrutavam trabalhadores na população local. Porém, manifestavam grande descontentamento com o seu trabalho e, sobretudo, reclamavam dos ex-escravos e dos negros em geral, pretos e mestiços, argumentando que eles eram indolentes, preguiçosos e não ambiciosos. A verdade era que os fazendeiros não se conformavam com o fato de ter que tratar os negros como pessoas livres. Assim, sob alegações absurdas, muitos dos antigos senhores não lhes davam trabalho.

Essas foram as mais evidentes e violentas formas organizadas de práticas racistas após o fim da escravidão. Alguns fazendeiros queriam até que o governo criasse ”colônias para impedir a vagabundagem”, tipos de campo de concentração para onde seriam mandados todos os negros, formando, oficialmente, os “guetos”, isto é, áreas demarcadas para sua moradia exclusiva, nos quais a repressão e a exploração pudessem continuar semelhante aos tempos da escravidão. Não foram criadas essas “colônias”, contudo, a falta de trabalho empurrou grande número de negros para as áreas mais pobres nas periferias das cidades e, assim, muitos foram tentar sobreviver morando nos morros, mangues, palafitas, lixões etc e trabalhar em qualquer atividade que fosse possível.

Muitos dos negros da região de Vitória continuaram trabalhando nas obras públicas, como soldados na polícia militar e nas atividades portuárias pesadas e, quase sempre, desqualificadas e mal remuneradas. E assim também como pequenos artesãos, pescadores, nos serviços domésticos etc, muitos negros conseguiram firmar-se dentro de uma vida pobre, mas não de miséria absoluta.

Ao fim da escravidão, pelas terras do Espírito Santo existiam muitos grupos de negros estabelecidos nas matas, com pequenas posses e produção de subsistência. Eram os núcleos de antigos quilombos que tinham sobrevivido e que o governo passou a chamar de grupos de “lavradores ambulantes ou bandoleiros”, promovendo novas perseguições e verdadeiras guerras de combate. A alegação era de que as terras do Estado deveriam ser “vendidas” ou “doadas” para os “colonos”, isto é, para os imigrantes italianos e alemães. De qualquer forma, muitos estudiosos afirmam que parcela da população pobre, formada por ex-escravos, pretos e mestiços livres, foi, em partes, absorvida como mão-de-obra rural em relações de trabalho parecidas com arrendamento, meação e colonato. Entretanto, na medida em que o tempo passou, os negros que aí se enquadravam foram perdendo essas posições.

Nas regiões litorâneas, principalmente, muitos negros puderam sobreviver de certa forma independentes da realidade econômica centralizada, sem serem submetidos à exploração dos senhores rurais e urbanos. Como pescadores e coletores de mariscos, plantando algumas raízes, criando animais, caçando ou coletando plantas, muitos negros mantiveram vida própria, preservaram a memória e, hoje em dia, constituem as maiores e vastas representações da cultura do povo capixaba.

Um cientista alemão, Ernest Wagemann, que estudou a colônia de seus conterrâneos no Espírito Santo, em 1913, relatou que entre os colonos alemães a forma mais predominante de aquisição de terras funcionava da seguinte forma: existiam pelo interior muitas localidades onde já estavam os nativos, quase sempre negros, que detinham a posse de um pedaço de terra, com algumas estacas de demarcação de limites e uma casinha, onde eles caçavam e faziam derrubadas e queimadas de mato para as plantações de banana, café, mandioca e feijão. Nessas condições, eles iam vivendo meio isolados como se ainda estivessem em quilombos, fugindo da escravidão. Então, chegavam os imigrantes ou seus descendentes que viam naquelas terras, já desbravadas e com algumas benfeitorias, uma oportunidade de negócio. Assim, usando dos mais diversos artifícios, acabavam expulsando os negros que iam em busca de novas áreas. Depois de se apossarem das terras, os imigrantes aumentavam a derrubada, ampliavam os limites e as plantações e usando os benefícios das leis, regularizavam as posses, transformando-as em suas propriedades(39).

É necessário ressaltar a incontestável diferença entre as trajetórias históricas pós-abolição dos negros e dos imigrantes brancos recém-chegados. Isto é, comenta-se que os imigrantes chegaram pobres e, ao longo do século XX, melhoraram suas vidas, colocaram seus filhos nas escolas e atualmente representam parte importante da população economicamente bem situada ou que chegou aos postos de poder político e social. Enquanto isso, os negros permaneceram pobres e são ainda poucos os que, na atualidade, têm um padrão econômico de vida satisfatório no que diz respeito a desfrutar de boas moradias, alimentação, educação etc e menos ainda são os negros que conseguiram conquistar algum poder político.

A questão é que, embora essa seja uma verdade histórica, as explicações de como essa situação se formou eram mentirosas. Os racistas diziam que os imigrantes melhoraram de vida porque eram trabalhadores, esforçados e econômicos, enquanto os negros eram preguiçosos, cachaceiros, não gostavam de economizar e, dessa forma, não conseguiram as melhorias que os imigrantes obtiveram.

Na realidade, acontecia que, com o fim da escravidão, todos trabalhadores passaram a ser livres e com direito a receber salários. Porém como já foi dito, muitos dos antigos senhores mandavam embora seus trabalhadores negros, considerando que a partir de então eles eram livres, davam trabalho somente para os brancos. Nos casos em que negros eram admitidos, normalmente os patrões só os aceitavam pagando bem menos do que era pago aos brancos pelo mesmo trabalho. Na falta de trabalho e em virtude da necessidade de sobreviver para alimentar suas famílias, muitos negros concordaram em ganhar menos. Mas, eram extremamente explorados, humilhados e, sem ter como melhorar de vida, eram perseguidos pela polícia e enganados pelos políticos. Ao mesmo tempo, os imigrantes iam prosperando, ganhando ou comprando terras, recebendo apoio dos empresários e políticos, além das facilidades do governo.

Dessa forma, os negros, que até o fim da escravidão eram utilizados como trabalhadores para a realização de todos os tipos de atividades, passaram a ficar sem emprego ou tiveram que trabalhar por ninharias, para não morrerem de fome. E os patrões racistas alegavam, mentirosamente, que pagavam menos aos negros porque eles não sabiam trabalhar, eram relaxados etc.

Logo após o fim da escravidão, os jornais falavam que os negros ficavam perambulando pelas estradas, vadiando e bebendo cachaça. Porém, esses jornais não explicavam que, se isso acontecia, era porque eles estavam sendo mandados embora dos lugares onde trabalhavam e não conseguiam novos empregos, porque os patrões só queriam empregar brancos ou não queriam pagar aos negros os mesmos salários pagos aos brancos.

Hoje em dia, na medida em que os negros capixabas vão conquistando melhores condições salariais e seus filhos têm acesso à moradia, saúde e educação, eles podem exigir respeito e seus direitos de cidadão, não necessitando submeter-se a aviltantes relações de trabalho e podem mostrar que também são bons trabalhadores, esforçados e inteligentes quanto qualquer um branco ou amarelo.

De qualquer forma, muitos dos atuais negros capixabas encontram-se trabalhando em serviços que pagam baixos salários, como nas obras de construção de prédios, nos serviços de carregamento e descarregamento de caminhões, trens e navios, nos baixos escalões da polícia militar, nos serviços de segurança particular, nos serviços de construção, limpeza e manutenção das obras nas cidades, nos trabalhos rurais pesados, nos serviços domésticos e nos de piores salários das indústrias e do comércio.

 

NOTAS

(39) Saletto, 1985, p 110 e 111

 

 

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Editoração Eletrônica

Estúdio Zota

Impressão e Acabamento, GSA

Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Osvaldo Martins de Oliveira. – 2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016.

Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2020

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