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O Jornalista e o Poeta - Por Adilson Vilaça de Freitas

Capa do Livro: Massacre em Ecoporanga - Autor: Luzimar Nogueira Dias

Depois dos quarenta, irremediavelmente somos acometidos pela nostalgia. Esse ido sentimento se nos infiltra nos ossos e, com o apetite de um velho cão, fica-nos roendo os recantos da memória. Basta que alguém a atice e lá vai a lealdade da lembrança recordar-se com acentuada infidedignidade de aventuras que se volatilizaram nas esquinas do tempo. O oportuno convite que me enviou a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo é a senha para que eu percorra esquecidos caminhos de saudade. Não são acontecimentos tão velhos assim, afinal todos tiveram ribalta há não mais que um par de décadas. Portanto, é ainda com a voracidade da bengala da juventude que traço os passos deste texto, que rememora cenas do baú de guardados da minha trajetória de jornalista. Tal percurso transcorreu, principalmente no início da profissão, sobressaltado por uma indomada sensibilidade de “poeta”. E se hoje ajuda, no começo meter a colher de pau da literatura no afazer do jornalismo foi um mau negócio.

Por conta de um estilo então literariamente temperado, mas tecido com imperícia, vi o meu primeiro texto escrito para um jornal ser barrado na mesa do editor. Era o editor Luzimar Nogueira Dias, era o jornal o semanário Posição. Naquele tempo, dezoito anos passados, o Posição tinha sede do edifício do cine-teatro Glória – avenida Governador Bley, 3° andar, no centro de Vitória. O jornal, um alternativo alinhado à esquerda e ninho do sincretismo de diversas tendências políticas da canhota, era impresso na gráfica Ita. E foi lá, no galpão da gráfica, que eu soube que o meu texto tinha sido reprovado. Era costume do jornal levar toda a minúscula equipe de redação para colaborar com os três ou quatro que cuidavam da distribuição. Com aquele espírito artesanal que predominou na infeliz revolução cultural da China de Mao Tsé-Tung, íamos ao moinho de Gutenberg alcear e dobrar o jornal. Éramos bons comunistas, comprovando (sic) nossa identificação com a classe operária na execução do pífio trabalho manual. Mas cadê, no jornal quentinho, o meu texto, aquele que eu escrevera para celebrar o aniversário da União Nacional dos Estudantes?

Dobrava o jornal e suava, não tanto pela atividade física – a minha origem era de uma boa linhagem de operários, registrada no meu currículo com a passagem pelo curso e pela profissão de torneiro mecânico -, mas sim por não entender que mistério fizera desaparecer o produto da pauta que o editor me passou. Quando o meu desespero aproximava-se da situação de pânico, ouvi um sussurro: “Preciso conversar com você. Seu texto foi um equívoco.” Quem me segredou essa punhalada foi o editor-chefe Luzimar Nogueira Dias. Não é preciso dizer que a notícia falada, antes divulgada a meu olhar aflito pela total incapacidade de encontrar o dito texto, bateu-me como um sopapo no pé do ouvido. Afinal, tinha-me como um escritor talentoso e lá estava aquele Luzimar Nogueira Dias, um desertor do curso de Medicina, metendo-se a censurar meu escrito.

Que me agüentasse no dia seguinte!

Manhã do dia seguinte, no aperto da sala de redação, que também era a sala única onde movimentava-se a vária atividade do jornal. “Escuta aqui, Vilaça, eu não duvido que você seja um bom poeta. Mas antes de misturar jornalismo com poesia, primeiro aprenda a e escrever o texto informativo”, disse-me o editor. E acrescentou que estava disposto a “dar uma luz”. Bem, eu podia me demitir, esquecer que o destino e alguns malucos me reservaram o direito de ser orador de minha turma de jornalismo, ou ouvir o conselho (tão sutil quanto um trator atravessando um canteiro de morangos) que me era dirigido pelo editor. Ouvi. Em seguida e nos dias seguintes, fiquei perambulando no exíguo espaço da sala de redatudo e pelo vasto inferno astral que se tornou a morada de minha auto-estima. Que vida !

Um ano depois. O editor-chefe Luzimar Nogueira Dias, agora na sede da ladeira de Santa Clara, passou-me a mesmíssima pauta: União Nacional dos Estudantes. E disse: “Você tem uma página; será a reportagem especial desta semana. “Eu trabalhei de jeito muito especial. Já fazia algum tempo que eu emplacara como jornalista e esperava aquela data com a fúria de um anjo vingador. Na reunião de avaliação, a reportagem sobre a UNE foi considerada o melhor texto da semana.

Muito mais do que escrever um bom texto para jornal, aprendi com Luzimar a olhar-me no espelho da autocrítica. O engano que nos move a encarar todo espelho com a vaidade de Narciso, esse é o engano que mais nos atola na mediocridade. Vida que rola, tornei-me co-editor do Posição durante ausência de três meses do Luzimar – dividi a edição com o Humberto Martins, que agora está na Folha de São Paulo.

“Poeta, me conta o que você sobre a tortura coletiva dos camponeses aprisionados num curral, na fazenda do Francisco Modesto.” Estávamos na lanchonete Charme, nas imediações do Parque Moscoso, Luzimar recém-chegado da viagem de três meses a Rondônia. O objetivo da viagem foi reencontrar sobreviventes do massacre em Ecoporanga. Eu morava na cidade de Ecoporanga durante o conflito, ocorrido de 1959 a 1962. Um dos meus irmãos, Renato Vilaça, nasceu a 8 de maio de 1962, no dia em que se celebra a Paz Mundial, assinalada pelo fim da Segunda Guerra, e paradoxalmente Ecoporanga dormia sob toque de recolher. Enflanelado num pijama de listras, meu pai, Baltazar Ernesto de Freitas, foi escoltado até a farmácia e depois à casa de Vó Amélia, a parteira. Uma noite fria. E povoada de medos.

“Eles dançavam durante várias horas. Nus e desajeitados, homens e mulheres e crianças circulavam dentro do curral (...). Em fila, os posseiros continuam dançando (...). A fila é assim: sem distinção de sexos ou idade, os lavradores requebram em círculo, sob ameaça de armas, cada um com a mão sobre o ombro do outro e com o dedo da outra mão na bunda do companheiro da frente. De vez em quando um chicote estala nas costas dos que se revoltam com a humilhação (...)”, foi o que fui dizendo.

“Vilaça, esse trecho do livro você vai escrever. Eu não sou poeta”, disse o Luzimar apresentando-me uma “lauda” fabricada com papel de embrulho da lanchonete. O texto está na página 70 do livro Massacre em Ecoporanga. “Entre o jornalismo e a poesia, fique com a poesia,” aconselhou-me o Luzimar. Abro uma fresta no texto, fechando-a, de imediato, com o seguinte esclarecimento: Luzimar Nogueira Dias não era por excelência um admirador de “poetas”, e usava a designação “poeta” para nomear qualquer ficcionista ou simplesmente alguém que não tivesse lá grandes possibilidades. “Esse cara é um poeta ...”, acusava com o riso sardônico. Outra fresta: O Luzimar também foi um grande “poeta”, e seu verso maior foi a manchete de primeira página que ele poetou depois de uma vodca homérica. A matéria de capa enfocava mais uma derrapagem do ex-prefeito da Serra. José Maria Feu Rosa. Não conseguíamos nada de contundente, eu e o Humberto Martins e quem mais. O Luzimar tomou o leme e nos mandou dormir. Se eu não me engano, também o Namy Chequer e o José Jacy estavam presentes. Dormimos, dispensados daquela história de dobrar jornal, e acordamos para o pesadelo da manchete na primeira página: FEU ROSA É MESMO UM CORRUPTOZINHO DE MERDA. Vejam a pureza da “poesia”! Os derradeiros anunciantes tiraram o time de campo. A imprensa alternativa já cumprira seu papel. Não cabia o desvario da persistência. Naquele ano, na primavera de 1979, o Posição despetalou-se. O vento do desencontro espalhou-nos, os resistentes, por aí, aí, aí...

E daí? Daí que eu levei tempo para conseguir no texto jornalístico uma fatura estética compatível com aquela sugerida pela “luz” do Luzimar. Depois, meti a cara na vereda literária. Hoje posso dizer que tenho um estilo e stilus virum arguit – o nosso estilo trai-nos. Entre a literatura e a imprensa, escolhi o triângulo amoroso. Enquanto isso, Luzimar desapareceu num acidente de carro. Trabalhei em jornais, no rádio, fracassei na TV, editei e inventei revistas, escrevi teatro e roteiro de curta premiado e publiquei oito livros. Nenhum dos meus livros é de poesia. Mas lembro-me de um compromisso que fiz com o Luzimar: “Um dia vou escrever o Romanceiro do Massacre em Ecoporanga”, prometi no dia do lançamento do Massacre. Ainda não cumpri a promessa porque o espelho da honestidade revela-me que o meu texto poético precisa de maior apuro antes de sair em livro. Mas sou um aluno aplicado. Na prosa sempre faço transfusão de poesia; já estou quase achando o jeito. É mais demorado do que aprender jornalismo.

O convite de Escritos de Vitória fez-me reencontrar os primeiros passos da minha entrada na imprensa. Agora preciso encontrar a trilha da poesia. Encontrando o caminho, o Romanceiro do Massacre em Ecoporanga será dedicado a Luzimar Nogueira Dias. Ao mestre, como se fosse um mar de vodca e poesia!

 

Fonte: Escritos de Vitória, 1996
Autor:Adilson Vilaça de Freitas
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro de 2014    

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Francisco Aurélio Ribeiro

Francisco Aurélio Ribeiro

Francisco Aurelio Ribeiro é capixaba de Ibitirama, pequena cidade na serra do Caparaó, onde nasceu em agosto de 1955

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