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O sobrinho do coronel – Por Pedro Maia

Sob as ordens de Chiquinho

Primeiro é preciso dar uma noção geral do que era a imprensa em Vitória nos anos 50 e boa parte dos anos 60, até a chamada Revolução de 1964. Se a imprensa hoje precisa de um grupo econômico forte de sustentação, antigamente os jornais precisavam de um grupo político. A publicidade veiculada nesses jornais era pouca ou quase nenhuma; o que os mantinha mesmo eram os cofres desses partidos.

Em 1956, eu tinha 16 anos e O DIÁRIO tinha sido comprado por um capitalista fluminense, o Dr. Mário Tamborindegui, para defender o Governo do Chiquinho, que era do partido dele. Para dirigir o jornal, o Mário Tamborindegui trouxe de Campos um amigo do meu pai, Rosendo Serapião, que um dia foi almoçar na minha casa e meu pai disse pra ele: "Esse vagabundo aí tem 16 anos, não quer estudar, saiu do colégio. Não sei o que ele pensa da vida..." Então, Dr. Rosendo falou: "João, eu vim pra Vitória dirigir um jornal e posso arranjar um lugar pra ele. Manda ele lá que ele vai ser jornalista." Jornalista era um grande negócio, e eu pensei: legal.

Na segunda-feira apareci lá de manhã cedinho para ser jornalista. O gerente do jornal era o "seu" Otávio Lisboa. Naquela época, os jornais não tinham estrutura de empresa e o gerente era uma espécie de "faz-tudo", que era responsável pela manutenção das máquinas, pelo pagamento do pessoal, pela limpeza da redação, pela administração e por mais o que aparecesse. O pagamento era com vales. Se no final de semana tivesse dinheiro, tinha vale: senão, não tinha. "Seu" Lisboa foi falando: "Você quer ser jornalista? Vamos começar logo. Pega aquela vassoura ali e vai varrendo".

Fiquei como boy de redação de 1956 até 1958, e boy de redação naquela época não era mole. Pra início de conversa, não havia laudas impressas: jornalista escrevia em sobras de papel e todo dia de manhã eu tinha que cortar aquela porrada de lauda. E tinha o tal do clichê... Tinha uns redatores que chegavam lá com uma idéia na cabeça e falavam: "Pedro, pega o clichê de fulano". Eu subia pela escada e pegava o clichê sujo de graxa, porque quando ele saía da impressora vinha sujo de graxa. Aí passava gasolina e levava. Pelo meio da matéria, ele se lembrava de alguma coisa e mudava de idéia. "Pedro, não é isso não, eu quero outro"... Meu trabalho era esse: limpar clichê, comprar cigarro, servir cafezinho.

Em 1958, o revisor, que era o Paulo Zimmer, foi servir o Exército. Então eu passei para a revisão, para substituir Paulo Zimmer, e meu irmão, Paulo Maia, foi para o meu lugar como boy de redação. Eu fiquei na revisão até 1960. Neste ano, Carlos Lindenberg estava no Governo, e tinha um deputado da oposição em Cachoeiro de Itapemirim que era do time de Chiquinho e estava prometendo fazer um enterro simbólico do governador. Então, a Polícia botou a tropa na rua, com metralhadora e o caramba.

Organizou-se em Vitória uma comitiva de deputados para ir contornar o assunto, e nenhum repórter dO DIÁRIO quis ir. O Plínio Marchini, que era diretor da redação, me chamou:

- Pedro, você quer virar repórter?

- É claro.

- Então você vai fazer uma reportagem.

Plínio pegou uma gravata na casa dele, me deu e disse:

- Você bota essa gravata e vai com os deputados que estão viajando pra lá. É uma matéria legal.

Cheguei lá em Cachoeiro para segurar aquele rabo de foguete. A cidade estava em pé de guerra... Mas eu tive sorte porque um dos deputados que fazia parte da comitiva era o coronel Pedro Maia de Carvalho, meu tio. Grudei no coronel pra cima e pra baixo, participando de tudo e obtendo todas as informações para o jornal. O Plínio não teve outro jeito senão me promover a repórter.

Com a explosão do Esquadrão da Morte, O DIÁRIO (que tinha uma tiragem diária de 3 mil exemplares) passou a tirar 12 mil. O público capixaba aprendeu a ler jornal, passou a procurar jornal na banca.

O editor de polícia dessa época era o Barreto. Ele era policial e portanto não podia cobrir o assunto, que envolvia muitos colegas dele. Então o Edgard dos Anjos afastou o Barreto e contratou o Gerson Camata e o Mr. X, que era o Valdir Junger. Foi muito acertado para O DIÁRIO porque o Mr. X morava na Barra do Jucu, e por isso sabia das coisas todas.

Nessa época, eu estava nA Tribuna. Cansamos de passar noites na Barra. Só numa rua de lá, nós da imprensa localizamos em 1969 12 cadáveres. A gente metia uma vara na areia, puxava e aí vinha o cheiro da carniça. Então a gente sabia que ali tinha um. A gente marcava e no outro dia chamava o Corpo de Bombeiros. E não éramos só nós de Vitória não. Tinha repórteres de todo o Brasil.

Quando A Tribuna fechou em 1971 para fazer a nova sede, eu voltei para O DIÁRIO, numa outra fase. Já tinha até dois carros para atender os repórteres. Porque antigamente não tinha esse negócio de carro não. Era a pé. Quando voltei já tinha clicheria, inclusive foi nessa época que fizeram uma tentativa de fazer O DIÁRIO vespertino.

O DIÁRIO passou mais ou menos uns seis meses saindo à tarde. Mas o custo ficou muito alto, pois o jornal tinha que ser feito praticamente de madrugada para sair à tarde. Era um sonho de Cláudio Bueno Rocha, que não podia dar certo porque as bancas de Vitória naquela época fechavam às seis horas da tarde. Mesmo com aquela porrada de garoto vendendo jornal na rua, a situação ficou insustentável.

Em 73, quando A Tribuna reabriu, eu voltei. Depois, quando Marien Calixte ficou com O DIÁRIO, aí por 1975, me pediu para fazer uma coluna. Durante uns três ou quatro meses escrevi a coluna Comédia Capixaba, mas a coisa já estava no final. Fazia a coluna para ajudar o Marien, porque eu já estava nA Tribuna.

Teve uma história engraçada que aconteceu comigo e com o Cariê, que nessa época morava no Rio. Eu trabalhava nO DIÁRIO, e sempre ia no Restaurante Mar e Terra. Uma noite, estávamos eu e o Zé Gutterres. Ele era linotipista e eu era revisor. Deviam ser duas horas da manhã, e eu estava com um exemplar dO DIÁRIO. O Zé Costa, que estava com Cariê, pediu o jornal. Cariê pegou o jornal e falou: "Só tem filho da puta nesse jornal". Então, eu disse: "Zé Costa, fala pro seu amigo que nós dois aqui trabalhamos nO DIÁRIO. Isso não fica bem." E o Cariê: "Se trabalha nO DIÁRIO, é filho da puta mesmo". Eu joguei a mesa em cima dele. Não conhecia ele e portanto não sabia que ele era filho do governador. E aí me falaram:

- Ele é filho do Carlos Lindenberg.

- Mas tá errado. Não pode xingar os outros de filho da puta não.

Isso foi em 1959. Nos anos 70, A Gazeta fez um congresso jornalístico e trouxe uma porrada de gente, os cobras da época, para falar sobre jornalismo. Eu fui lá, e o Cariê estava conversando com o Cláudio Bueno Rocha. O Cláudio me chamou: "Ô Pedro, vem cá. Você conhece o Cariê, né?". Aí eu quis dizer que não conhecia, mas o Cariê foi direto:

- Nós nos conhecemos, sim. De muitos anos, não é, Pedro Maia? Do Mar e Terra.

- Você ainda se lembra disso?

- Lembro, lembro.

Histórias não faltam, às vezes cruéis. Quando O DIÁRIO começou a decair, a clicheria era de um espanhol. Lá pelas sete da noite, o pessoal querendo os clichês, e ele respondendo: "Tienes plata? Si no tienes plata, no tienes clichê". Era aquela agonia...

Hoje tem um curso de comunicação que coloca dezenas de profissionais por ano nas ruas, aumentando muito a disputa pelo mercado de trabalho, que é muito mais acirrada do que naquela época. Principalmente em Vitória, onde não existe um grande campo de trabalho. Então a gente vê muita sacanagem por aí, de colegas com colegas. Tem também outras coisas diferentes. Eu, por exemplo, aprendi a fazer jornal na base do esporro. O editor xingava de filho da puta para baixo. Se eu falar com uma repórter hoje que a matéria dela está ruim, é capaz de o sindicato amanhã mandar um catatau pra mim...

No meu tempo, uma das preocupações principais do repórter policial era procurar o boneco, uma foto do morto. O pessoal ia lá na casa do morto arrumar a fotografia dele, conversar com a mulher dele. Hoje, o repórter vai no serviço de relações públicas da Polícia ou conversa com o delegado. O delegado dá a versão dele e pronto. Ninguém conversa com o outro lado da história. E o editor ainda tem o descaramento de colocar uma foto bem grande do delegado, embora o delegado esteja cumprindo apenas a obrigação dele.

Uma parte importante do trabalho de um repórter é formar uma rede de contatos. No caso do repórter de polícia, ele precisa ter contato dos dois lados, o que não existe mais hoje em dia. Duvido que uma menina dessas suba o morro. Se ela subir o morro e disser que é repórter, o pessoal engole ela. Mas no meu tempo, não existia essa guerra civil disfarçada que está existindo hoje. A gente podia chegar no boteco do morro, tomar cachaça, bater papo, trocar uma idéia, queimar um baseadinho. Daí a pouco, alguém contava: "Fulano foi em cana. Ficaram com o bagulho e soltaram ele". Aí, a gente já estava com informação para ferrar o delegado no outro dia. Hoje as coisas mudaram.

Quando eu comecei, a gente não tinha noção dessas técnicas de jornalismo como é hoje. Do lead, sub-lead etc. Mas a gente tinha a intuição de contar a história. Às vezes até ficava piegas, mas era a história que você tinha sentido, a história que você viu. Acho muito importante participar da história que estou contando. Até hoje, as melhores colunas que eu escrevo são aquelas que contam coisas das quais eu participo.

Na oficina a realidade também era outra. Nos tempos do linotipo, cada linotipista tinha orgulho da máquina dele, só ele trabalhava nela. Eles eram os mais informados da imprensa porque eles liam tudo, eles faziam o jornal todo. Antigamente a oficina era mais importante que a redação. Porque você podia fazer um jornal sem a redação, mas sem uma gráfica você não fazia. Com uma tesoura na mão e um jornal de fora você fazia um jornal, não precisava de mais ninguém. Mas sem um gráfico você não fazia. Tinha que ter o linotipista, o montador, o cara da impressora. Então, o chefe da oficina tinha mais importância que o chefe da redação.

E não era qualquer chefe da redação que descia à oficina para falar qualquer coisa não. Eles mandavam mesmo. O chefe da oficina era o reizinho na época do chumbo. Esses linotipistas eram de uma certa maneira as eminências pardas. Todos eram comunistas. Se eles parassem, parava o jornal.

Existia uma lei que mandava todo o pessoal de oficina tomar leite, por causa dos gases de chumbo. Mas aí um ordinário inventou que cachaça fazia o mesmo efeito. Então ninguém tomava leite, todo mundo tomava cachaça. Por isso todo mundo era biriteiro. Não havia drogas, não se falava em drogas. Era birita mesmo. Em 1958 havia dez maconheiros em Vitória, cabia numa lista. Mas no jornal não existia isso não. Biriteiros sim, biriteiros homéricos, muitos morreram por causa disso, principalmente gráficos.

Quer mais história? Eu e Erildo dos Anjos fazíamos o horóscopo. Era tudo besteira inventada. E existia um jornalzinho de Ipatinga, chamado Voz do Rio Doce, que todo dia trazia o mesmo horóscopo que eu escrevia. Eu comentei com Erildo: esses caras estão sacaneando a gente. O cara nem se preocupava em ler. Ele só recortava o que a gente escrevia, trocava o nome lá em cima e colocava. Eu decidi fazer uma sacanagem com esses caras e escrevi no horóscopo: "Cuidado. Não leia hoje o jornal Voz do Rio Doce, pois se trata de um jornal negativo, pessimista e que está em má fase..." Pois na próxima edição saiu lá a mesma coisa no próprio jornal. Alguém deve ter sido demitido. Deu pra ver que não se tratava de sacanagem, porque eles ainda mandavam um exemplar pelo Correio endereçado à nossa redação... Aquilo devia ser uma puta esculhambação.

Também nO DIÁRIO nós arrumamos lá uma Madame Helô, conselheira sentimental. Era Heloísa Entringer. Ela começou a fazer um horóscopo todo sexy. O troço fez um sucesso tão grande que começaram a chegar cartas e mais cartas para Madame Helô. Até que um dia ela colocou umas coisas que não podia ter colocado e dançou. Cortaram a Madame Helô. A Carmélia era uma poetisa, escrevia nos guardanapos dos bares. Quando sentava na mesa dela uma pessoa de quem ela não gostava, ela expulsava: "Quem é você? O que você está fazendo aqui? Levanta, levanta". Era cronista dO DIÁRIO, escrevia umas coisas tipo Rubem Braga, assim de falar sobre as flores da primavera. Escrevia bonito, mas não tem nada a ver aquele centro cultural se chamar Carmélia Maria de Souza. Ela não deixou nada. Não escreveu um livro, não deixou uma peça. Ela foi uma cronista como uma porrada de outros. Carmélia veio de Barbacena, onde tinha uma coluna chamada Os Pardais, para fazer a coluna social no lugar do Hélio Dórea, que tinha ido prA Gazeta. A idéia de colocar na coluna o nome Essa Ilha É uma Delícia foi do Acyr Monteiro, que realmente gostava muito de Vitória. Camélia queria colocar na coluna o nome Os Pardais, mas Acyr achava esse nome muito provinciano.

Ela escreveu durante 10 anos a coluna. Quando chegou em Vitória era toda magrinha, tímida. Ela levava para a redação dO DIÁRIO um litro de conhaque: toda hora ia lá e... pimba! Eu descobri e depois que ela ia, eu também ia e... pimba! Passava uns três dias e ela se lamentava: "Estou bebendo muito". Um dia ela desconfiou, passou a me vigiar e descobriu: "Seu filho da puta, você estava me deixando doida, eu achando que tinha bebido tudo". Ela me comprou um vidro de conhaque: "Toma essa porcaria". E jogou o vidro de conhaque em cima de mim. Sóbria ela não era doida, mas biritada... Foi a mulher que levantou a saia de Vitória, onde mulher não podia entrar num bar.

 

Fonte: O Diário da Rua Sete – 40 versões de uma paixão, 1ª edição, Vitória – 1998.
Projeto, coordenação e edição: Antonio de Padua Gurgel
Autor: Pedro Maia
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2018

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