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O Ticumbi – Por Aldelpho Monjardim

Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição - Conceição da Barra - Onde acontecem os festejos do Ticumbi

Embora parte do folclore capixaba, o «Ticumbi» restringe-se quase que à região norte do Espírito Santo, a Conceição da Barra, onde é popularíssimo. Sendo assaz limitados os nossos conhecimentos quanto ao seu enredo, para que prováveis interessados possam conhecê-lo, recorremos à prestimosa ajuda do erudito folclorista conterrâneo, Dr. Guilherme dos Santos Neves. De seu «Ticumbi», editado pelo Ministério da Educação e Cultura, extraímos o que se segue:

«No Ticumbi capixaba não figura nenhuma rainha Ginga, nem príncipe Sueno, nem mametos, nem quimbotos ou qualquer feiticeiro, nem o rei D. Henrique Cariongo. Também não há mortes, nem ressurreições, nem coroação de reis e rainhas.

Essas danças dramáticas — e neste ponto, creio, as opiniões não se conflitam — são de procedência africana. Guardam elas traços de acontecimentos históricos de sua terra de origem: entronização e cortejo de reis, seu coroamento, rivalidade com outros monarcas também negros, cenas de embaixadas e lutas entre hostes de nações inimigas, gestos, atitudes e linguagem».

«O Ticumbi de Conceição da Barra — norte do Espírito Santo — compõe-se de certo número de negros (só negros), entre os quais o Rei Congo (ou «reis» de Congo), o Rei Bamba (ou «reis» de Bamba), seus secretários e o corpo de baile ou «Gongos», que representam os guerreiros das duas «nações». Vestem-se a caráter, de longas batas brancas e rendadas, com transpasse de fitas coloridas, calças compridas brancas, com friso lateral vermelho, ou sem este; na cabeça, coberta por um lenço branco, um vistoso gorro todo enfeitado de flores de papel de seda e fitas longas de várias cores. Os reis trazem coroas de papelão, ricamente ornamentadas com papel dourado ou prateado, peitoral vistoso com espelhinhos e flores de papel brilhante, capa comprida de adamascado e, na mão ou na cinta, longa espada. Os dois secretários ou sacratários diferenciam-se dos «congos» e trazem capa e espada como seus reis. Os instrumentos musicais que usam os «congos» são apenas pandeiros e chocalhos de lata, que eles chamam «ganzás» ou «canzás». Há também um «viola» que, outrora, não participava propriamente da dramatização: servia apenas para «dar o tom, tocando-a, enquanto os guerreiros cantavam. Vestia-se à paisana. Hoje, porém, participa do Ticumbi, veste calça e bata brancas, com fita em traspasse e lenço branco na cabeça, sob chapéu enfeitado de flores de plástico».

«A dramatização do auto é simples: dois reis negros querem fazer, cada qual e separadamente, a festa de São Benedito. Há embaixadas de parte a parte, com desafios atrevidos, declamados pelos secretários, que servem de «embaixadores». Por não ser possível qualquer acordo ou conciliação, trava-se a guerra — ou melhor, as guerras — «reis» Congo ou «guerra sem travá» e, depois, a «guerra travada». Desta última participam os dois reis que, no meio da roda dos «congos», batem as espadas cadenciadamente, junto com os seus secretários também empenhados no combate. Vencido, afinal, o rei Bamba, submete-se este e os seus «vassalos» ao batismo, terminando o auto com a festa em honra ao rei Congo, quando então se canta e se dança o Ticumbi, que dá nome à representação».

«Como se vê, há danças e cantos no Ticumbi. As danças são apenas volteios dos guerreiros, no combate gingado. Os cantos — alternados com as falas dos reis e dos embaixadores ou secretários — são entoados, em conjunto, pelos guerreiros das duas hostes, ao som dos pandeiros, chocalhos e da viola que «dá o tom».

«Alguns exemplos desses «cantos», colhidos em várias exibições do Ticumbi:

«S. Binidito é uma flô

que tenho no meu jardim.

Tira de lá um botão, morena,

joga por cima de mim...

S. Binidito tá no seu artá,

com seus zói briando,

Quem fáiz errado, quem fáiz derêito,

S. Binidito tá assuntando...

 

Auê, como tá tão belo

o nosso Ticumbi!

Vai puxando pro seu rendimento

que S. Binidito é filho de Zambi!

 

Todo mundo bateu parma

depois que o galo cantô,

que o Missias tá dizeno

no disero arrequinô...

 

«Jipinica e jiviola, nos quais se nota o encaixe do jï, indicativo do plural na fala dos negros, conforme a lição do Mestre João Ribeiro, em seu hoje raro Dicionário Gramatical, verbete «negro». Lá está: «Cumpre notar que esse (...) ji é uma característica de plural». Nos textos das várias versões do Ticumbi, noto outros vocábulos assim pluralizados: jicadera, jibodoque, jibatão, jitambor...»

«Há outro aspecto interessante nos Bailes de Congo: são eles verdadeiros registros, falados ou cantados, de acontecimentos ocorridos no local, no Brasil ou no mundo. Tudo quanto impressionou o «mestre» do Baile é por ele consignado nos cânticos ou na fala da bela dança-guerreira. Vão aqui dois ou três exemplos. Numa das letras do Ticumbi de Conceição da Barra se registrou o incêndio que ocorrera, a 19 de agosto de 1949, no altar de Nossa Senhora das Graças, na Igreja de São Mateus. Noutra representação, fala-se num eclipse que se deu e dos receios que ele provocou no povo; ainda noutra, se faz menção aos milagres do padre Antônio, de Urucânia. (Na exibição do Baile de Congos de São Mateus, em 1959, houve ex-pressa referência à bomba atômica e às arrojadas viagens à Lua). Sob este aspecto o Ticumbi é como um «jornal cantado» de fatos e ocorrências que impressionaram o poeta popular e o seu agrupamento social».

«Eis, em traços rápidos, o que é o Ticumbi ou Baile de Congos capixaba. Mas o melhor é ver de perto a representação. Contatar não apenas com os brincantes do velho auto popular, mas também com os assistentes, empolgados ante os combates dos negros valentes, enlevados nos seus «cantos» de louvor a São Benedito e a outros santos populares.

Neste sentido, aqui deixo o convite dos pobres negros capixabas, através destes versos singelos de uma das versões desse teatro popular:

Olerê, olerê,

O Ticumbi de S. Binidito,

Quem nunca viu venha vê.

«A muitos poderá parecer de alto interesse a pesquisa e o registro deste teatro negro. Registro fotográfico, filmático e de gravação. É pesquisa social tão valiosa quanto outra qualquer no setor folclore. De pleno acordo».

Mas só isso não basta. O que importa, o que realmente importa é a preservação do folguedo, a sua mantença através dos tempos. Em vez da simples descrição — como a que aqui se fez — e a recolha dos elementos para documentário de arquivo, o que é de importância capital é o estímulo que se deve dar a esses grupos folclóricos; é o amparo, o auxílio, a colaboração dos poderes públicos, do clero, do comércio, de todo o conglomerado social, para que esses conjuntos não se desfaçam, mas — ao revés — possam prosseguir suas belas representações populares, nas épocas marcadas pelo seu próprio calendário».

«Essa proteção é um dever de todos, como salientou, certa feita, Édison Carneiro, estudioso das «coisas de negro» — é através do folclore que «o povo se torna presente na sociedade oficial e dá voz aos seus desejos, cria para si mesmo um teatro e uma escola, preserva um imenso cabedal de conhecimentos, mantém a sua alegria, a sua coesão e o seu espírito de iniciativa. «Essa proteção é realmente um dever social».

 

Fonte: O Espírito Santo na História, na Lenda e no Folclore, 1983
Autor: Adelpho Poli Monjardim
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2015

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