Morro do Moreno: Desde 1535
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Pedra dos Dois Olhos

Pedra dos Dois Olhos - Capa do Livro: Escritos de Vitória 12 - Paisagem, 1995 - Foto: Carlos Antolini

Ali estava o grupo ao pé da pedra. A expectativa era grande. O dia apenas amanhecia quando nos encontramos frente à casa do Varejão, em Fradinhos. Borgo, o Biólogo, era o nosso guru e explicava, convicto do seu papel: “Estudos abalizados concluem que, antes da última regressão marinha, há mais o menos mil anos atrás, a água do mar chagava até próximo da base da pedra dos Dois Olhos. Vitória era provavelmente um arquipélago, formando um complexo de ilhas, hoje os morros da Gameleira, do Guajuru, Guanandi, do Maciço Central...”

- E havia habitantes? – perguntou o Carlos. Borgo apressou-se em responder:

- Sim. Os índios viviam aqui e por isso foram encontrados sambaquis, Além de instrumentos e utensílios indígenas.

Sempre fazíamos passeios ecológicos. Nessa manhã, eu, Carlos, Walter, Ricardo, Paulo, Borgo, Ernesto, Marien, Roicles, Vera, Nara, Susana, Graça, Margarete, Donária, Ênio, Marise, José Antonio e Maria Augusta, Tasso e Elizete, resolvemos subir até os Dois Olhos.

No primeiro platô paramos para apreciar a beleza. A vegetação nativa é mais exuberante e realçam os matacões, as bromélias os cactos e as flores miudinhas, tais as clitórias, de formato originalíssimo. Olhei para cima e vislumbrei todos aqueles 296 metros de altitude. Ufa, pensei, não vai dar para mim. Pedi para ficar ali mesmo, na primeira parada, com água e frutas, mas os amigos não permitiram. Reanimada, continuei firme, pela mata, separando com as mãos os galhos atrevidos em roçar-nos as pernas, escorregando na terra solta dos barrancos e caindo os mesmos dois metros que acabara de subir.

Estávamos suados, sujos e felizes. As risadas eram fáceis. Prosseguimos em marcha, pedra acima, até atingirmos uma clareira. Aí realmente é que começa a subida por dentro da mata. Santo Deus, pensei novamente, não vai dar para mim. Mas o Borgo, ajudando-me a vencer um trecho difícil, explicava, puxando-me morro acima: “É o chamado segundo platô. A vegetação fica rala, em forma de pastagens.” E disse, animador e convidativo: “Vamos parar um pouquinho para desfrutarmos da beleza da paisagem.”

- Ah, que bom! – foi a grita geral.

Paramos. Respiramos com tanta ganância de ar que os pulmões rugiram de gratidão. Ousamos olhar a vista: a beleza exuberante da cidade de Vitória, desde a região do Aeroporto, até o Penedo, no centro, os bairros, de jardim da Penha, Praia do Canto, Consolação, Bairro de Lourdes, Jucutuquara, Forte São João  e Fradinhos, é marcante. E avistamos também  Vila Velha do outro lado da baía. É algo indescritível. O azul do céu casando-se com o verde-azul do mar, em nuances únicas, e o sol a fazer pano-de-fundo ao cenário da ilha, traduzem o que nenhum outro ponto revela. Chegavam-nos da cidade os latidos dos cães. Um avião tentou fazer-lhes concorrência sonora, em vão.

As montanhas, tais o morro do Moreno, emolduram tonalidades verde-violáceas o todo, formando uma aquarela viva, realçando a sensualidade da curva da baía de Vitória, fazendo-a mais sedutora. O Penedo e a pedra dos Ovos, a pedra da Cebola, em tons mais fortes, sugerem a força viril, promovendo o encontro que resulta no conjunto de harmonia perfeita, o mais belo que Vitória pode oferecer.

Auguste de Saint-Hilaire, em 1818, vislumbrou o encantamento dessa plaga e disse: O rochedo de jucutucoara realmente não é cilindro como me havia parecido quando o avistei do alto da colina, em cujo cimo havia admirado pela primeira vez a baía do Espírito Santo. Ao Norte, esse rochedo é cortado a pique, mas, para o sul, atira-se num decline acentuado e do lado leste mostra dois amplos buracos arredondados. Neles não se tem entrado e, dizem, receberam dois índios o nome que hoje têm.”(in Viagem ao Espírito Santo e o Rio Doce). Jucutucoara quer dizer buraco da ponta

O que Saint-Hilaire não soube, ou não divulgou, foi a lenda do tesouro escondido nos buracos da pedra. Dizem que quando os frades (ou piratas?) visitaram o local perceberam as reentrâncias rochosas tão interessantes. Aproveitaram as cavidades vazias para guardarem um tesouro imenso de jóias, pedras preciosas, cálices cravejados de diamantes, imagens de santos forjadas em outro, castiçais, etc., provenientes das doações de fiéis ou, quiçá, de navios saqueados, acomodados em baús. As enchentes causadas pelas fortes chuvas obrigaram os frades (ou piratas) abandonarem o local às pressas. Só mais tarde, com o corte das árvores, uma vaidosa macaca do tipo barbada encontrou colares, brincos, pulseiras e passou a exibir-se toda enfeitada parecendo árvore de Natal, fingindo beber algo na taça de ouro presa entre os dedos peludos. Os símios foram, pouco a pouco, Macaco, em lembrança desses primatas felizes.

Outros contam que para ali foi carregada e devidamente acomodada, na orbital esquerda da pedra, uma sedutora mulher, cobiçada e conquistada por um cacique (ou um padre?ou um pirata?). Com as enchentes, o conquistador saiu às pressas e a moça ali ficou abandonada. Os símios carregavam tanto as peças do tesouro quanto os ossos já ressecados da amada esquecida. Cruel, pensei. Enfim... lenda é lenda. E nunca explicaram os contadores de causos o que fez a tal amante para ser assim desassistida, ou mesmo se nada fez para merecer tal sorte. Mas a atitude foi injusta, contava um descendente dos índios que ali habitaram. Tanto que os marimbondos cacici, revoltados, tomaram de assalto o local e não deixaram mais ninguém ali chegar. Resolveram fechar o motel da rocha. Vingança pura!

Continuamos a caminhada, contornando a pedra, e encontramos na mata de árvores frondosas , cobertos por epífitas (plantas que vivem sobre as outras), tais as orquídeas, as úsneas ou barbas-de-velho, em cujos troncos se enroscavam os filodendros. Respirar ali era um privilegio. A subida é íngreme e o caminho acidentado, com grande número de raízes e galhos que eram utilizados como apoio para os aclives. As siníngias estavam imoralmente atrativas em contraste com o pateado dos linquens presos nas rochas e com o verde-musgo das folhas espessas e nervuradas. Ficamos maravilhados com o encontro desse outro tipo de tesouro: o ouro verde das plantas locais e o colorido das flores. Que riqueza imensa das plantas da beira do abismo a saltarem das rochas!

Fui contemplada com um lava-a-deus que posou na minha mão. Sem encontrar resistência, mantida acomodou-se e passamos e passamos a uma interação amorosa de causar inveja e ciúme aos demais do grupo. Ciúme de mim, não. Do bendito! Preocupo-me se ele ficou na expectativa de que eu lhe devorasse a cabeça pois não gostaria de frustá-lo,  embora não fosse um gafanhoto, mas fomos filmados e fotografados, o que, com certeza, inibiu maiores intimidades, somos tímidos, os dois! Contudo... que caloroso anfitrião!

A subida ia ficando cada vez mais desafiante. Escorreguei na terra solta e desci, desta feita, uns três metros que já havia subido, arranhando-me nas bromélias. Ernesto gritou: Esbarrei na urginta!” E o Borgo receitou: “Passa mijo em cima!”Éramos exploradores de uma terra nova. Estávamos excitados. Tomamos o lado nordeste e fomos parar debaixo dos buracos dos olhos da pedra. Ali existe, na rocha, uma fenda onde, não resisti, e escondi-me dentro. Até que fui encontrada e servi de motivo para muitas risadas e piadas de todos. A vista era total e mais iluminada pelo sol.

Apenas a fumaça negra expelida pela cloaca da ponta do Tubarão e das torres da CST (Companhia siderúrgica de Tubarão), tentaram empanhar a beleza do conjunto paisagístico, formando um anel cinza-avermelhado que, na nossa imaginação, lembrava o cogumelo da bomba atômica, tal o repúdio que nos causava. Mas a baía rebrilhava de luz. Do outro lado, o convento da Penha, meio às nuvens, era uma nave nos céus da ilha.

Ninguém falava, tamanha era a emoção. A arquitetura da Terceira Ponte (Castelo Mendonça) realçava no todo, mostrando a obra humana de adequação com a obra divina. Arfávamos de cansaço, mas valia pena. Ao lado norte, vislumbramos a Reserva Biológica do Lameirão, que é uma grande massa de manguezal tendo ao centro um afloramento rochoso coberto de árvores, arbustos e outros tipos de vegetação da Mata atlântica, como se conseguisse em variedades de tons, do verde-claro ao musgo, em matrizes de clorofila salpicada com o colorido das flores do início da primavera.

Era setembro e sorríamos sem querer. Nossos olhos riam de toda a pictórica obra-prima, que alguma força criadora havia parido em dia de orgasmo pleno. Na descida, olhávamos para trás e pensávamos ver estrelas deitadas no morro. Eram as bromélias, chamadas Dickias SP., fincadas nas rochas tais astros recobrindo o dorso da pedra. Borgo nos apresenta aos linquens. Eles, receptivos, declaram-se associações de fungos com algas, e confidenciaram que guardam a água para as algas fazerem fotossíntese em associação simbiótica, no acasalamento natural e significativo.

No caminho de volta, chamou-nos a atenção a pedra da Pegada, na qual e nitidamente destacada a pegada ou assemelhado. É peculiar o seu formato a sugerir um animal que se ergue do solo. Mas a tal pegada se sobressai e daí o nome dado àquela formação rochosa. Parai para meditar sobre a configuração da pedra.

De repente, uma voz empolgada falar-me ao ouvido: “A face que hoje apresenta dois enormes orifícios, autênticas cavernas perfuradas na rocha viva, há alguns milênios, talvez, não os apresentasse. É que então caía a pique, em ângulo reto com o cume,embora não formasse um bloco homogêneo, como aliás todo o pico, e sim um aglomerado deles, como atestaram a enorme reentrância que ali se nota e o grosso rebordo que se forma a sudeste e termina sob os dois grandes orifícios.”

A voz prosseguia: “Obviamente servia de suporte às rochas cujos vestígios são apenas visíveis em nossos dias. Por um fenômeno sísmico chamado erosão por águas pluviais, mais de acordo com a natureza do caso e com a própria geologia vitoriense, processou-se lenta, mas segura, a desagregação dessa parte da montanha e os grandes blocos foram tombando para a encosta, contribuindo para a formação caótica assinalada por quantos perlustram aquelas paragens.”

Assustada, continuei ouvindo: “O pico Frei Leopardi é uma formação de gnaisse em franco estado de desagregação e decomposição só atacada por agentes químicos que lhe esfoliam as paredes pela ação eólica trabalhando com rapidez na formação de terceiro buraco de grandes proporções.”

- Pico Frei Leopardi? – pergunto eu. – É esse o outro nome da pedra dos Dois Olhos? – E a voz prossegue: “Divide-se ele em duas seções. A maior é a leste, onde se encontram os famosos buracos. Logos após o maior fende-se a pedra quase de alto a baixo, pouco visível à distância, formando a seção norte, que se assemelha a um castelo medieval...”

Agora não era mais o Borgo que eu ouvia. Absorta, buscava a voz do próprio Adelpho Monjardim que me sussurrava aos ouvidos as informações acima. E mais. Disse-me que houve um príncipe  Neuwied que desenhou o pico Leopardi ou pedra dos Dois Olhos, mas o autor de Geologia e Geografia Física do Brasil não o reputou tantas modificações na estrutura do monumento natural em questão.

Bem, o Borgo, nessas alturas, estava irritado comigo porque eu me “desligara” e nada mais ouvia das brincadeiras do grupo. Acordei, despedi-me do Monjardim e retomei, desculpando-me, a conversação dos amigos. É que acabara de ler o talentoso Adepho Monjardim, em sua obra Vitória Física, editada pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Vitória, 2 edição, 1995, e por isso sonhava acordada com ele, ali, comigo, gentil, explicando-me tudo.

Os olhos da pedra caíram. As explicações geológicas, nascidas do saber técnico, estão aí. Mas na verdade, aposto, e ganho, que os olhos da pedra cega, lembrando Homero a esmolar pelas ruas da Grécia, ou para a própria justiça também ceguíssima, não caíram. Os olhos da pedra saltaram das órbitas, de espanto, ante a beleza desnudada da ilha de Vitória contemplada em seu apogeu. E os meus olhos não queriam ali ficar também.

 

ESCRITOS DE VITÓRIA — Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.

Prefeito Municipal: Paulo Hartung

Secretário Municipal de Cultura e Turismo: Jorge Alencar

Diretor do Departamento de Cultura: Rogerio Borges

Coordenadora do Projeto: Silvia Helena Selvátici

Conselho Editorial: Álvaro José Silva

José Valporto Tatagiba

Maria Helena Hees Alves

Renato Pacheco

Bibliotecárias

Lígia Maria Mello Nagato

Cybelle Maria Moreira Pinheiro

Elizete Terezinha Caser Rocha

Revisão: Reinaldo Santos Neves , Miguel Marvilla

Capa: Pedra dos Olhos, (foto de Carlos Antolini) 

Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer  

Impressão: Gráfica Ita

Fonte: Escritos de Vitória 12 – Paisagem - Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – PMV
Autor do texto: Magda Lugon
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2015

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