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Política do cotidiano - Por João Gualberto M. Vasconcellos

Política do Cotidiano

Felicidade. Parece ser esta a grande busca das pessoas nesse Brasil de 1985. Remetidos a um individualismo possessivo, por uma longa ditadura militar, que apagou tantos sorrisos e faz mergulhar em trevas tantas ilusões, compulsoriamente adiadas para essa aurora democrática que tanto merecemos, voltamos a sonhar coletivamente.

Entretanto essa longa noite operou profundas transformações na sociedade em muitos planos - no econômico, no social e também no individual. Toda a ideologia do regime, atualmente em fase de decomposição no Brasil, pois já está morto de muito, sempre apontou para o triunfo pessoal. Não a ideologia formal propalada pela escola Superior de Guerra e presente no discurso empolado e socialmente insignificante dos militares em suas ordens-do-dia, mas a verdadeira proposta dos dirigentes para o povo, como aquela veiculada diariamente "ad nauseum" pela televisão - essa voz dócil - que sempre enfatizou o valor da vitória própria.

As novelas, como autêntico produto cultural dessa fase, deixam claro esta preocupação. Nelas há um mundo maniqueísta que se divide claramente em dois: o dos bons e o dos maus. Nessa fantasia, que se tornou coletiva na medida em que é vivida diariamente por milhões e milhões de pessoas, os maus tentam por todas as formas vencer na vida usando de todas as estratégias, por mais desumanas e trapaceiras que sejam, enquanto que os bons, eternamente perseguidos pelos malvados, tentam triunfar utilizando sua ingenuidade e trabalho, sempre numa perspectiva individual. Ou seja, não há nenhuma passagem coletiva para a realização dos desejos. Assim, nunca se viu um personagem global que tenha conseguido impor uma derrota a um patrão incorreto utilizando um sindicato, ou um médico que tenha sido punido por um grave erro por força e pressão da opinião pública, antes os malvados são, desmascarados pela ação isolada de algum justiceiro.

Parece haver, então, uma clara ligação entre o corte dos mecanismos de ação coletiva representado pela ação repressiva dos organismos de segurança no período - que prendiam, batiam e arrebentavam - e pela postura, autoritariamente legalizada que impediu a organização da sociedade, seja através de autênticos partidos políticos, sindicatos e organizações de base, com a ideologia veiculada pelos meios de comunicação de massa, que incutiram na população um forte apelo para o sucesso pessoal, presentes nas propagandas: "Ao sucesso, com hollywod" "Quem sabe o que quer fuma Minister", e no conteúdo da própria programação, na qual destaco as novelas, pelo seu sucesso de audiência. Quero dizer, o conjunto das ações das elites dominantes brasileiras, - articuladas basicamente no Estado - acabaram por conduzir a população a uma perspectiva bastante individualista, principalmente a juventude urbana, presa mais fácil desses mecanismos.

Ocorre que a história move-se dialeticamente, e as realidades geram seus contrários. E as pessoas que passaram a ser submetidas diariamente a tais mensagens, acabaram por buscar saídas coletivas para suas questões. Explico melhor: uma criança de 10 anos assiste toda noite em sua casa a imensos dramas em que estão presentes casais em crise, casais separados, alcoólatras que levam famílias ao desespero, assassinatos passionais e outros, e isso durante anos. Como a sociedade em que ela vive tem presentes esses problemas no seu dia-a-dia, ela acaba por aprender a lidar com eles, sem que entretanto, adquira qualquer perspectiva política, qualquer saída coletiva. Seria como se os dramas pessoais fossem uma coisa e a política, os problemas sociais, outra.

A partir desse corte e dadas as dificuldades colocadas para a organização coletiva e as facilidades para a observação das questões pessoais - boa parte das pessoas perdeu a dimensão política ao tratar das questões do cotidiano. A ausência forçada dos mecanismos de discussão coletiva de tais questões e a extrema fragilidade a que foram lançados os partidos políticos, ampliaram tal fenômeno. Resultado: passamos a viver num país em que as questões políticas relevantes pouco têm a ver com o nosso dia-a-dia. Questões absolutamente fundamentais e responsáveis pelas alegrias e misérias do cotidiano, tais como o casamento, a educação dos filhos, as drogas e a sexualidade, não têm qualquer espaço de discussão nos partidos. Acredito ser esta uma das razões de seu crescente esvaziamento. E quem se lembra do pique dos jovens - no Espírito Santo, principalmente no PT e no PMDB - até 1982 e hoje, tem que imaginar que alguma coisa aconteceu. No mínimo, encerrarão um ciclo - o eleitoral - faltou dinâmica, faltou uma articulação de relevância de questões, faltou, me parece, inserir o cotidiano como questão política no debate coletivo, como a grande marca do nosso tempo.

Existe, ainda, a constatação óbvia de que a crise econômica vivida pela classe média brasileira a obrigou a abrir mão de externalidades, através das quais mascarava e adiava seus problemas. Não dá mais para viajar para a Europa e viver sonhos hollywoddianos para esconder uma grave crise num casamento, não dá sequer para promover festas e sair para jantar fora com a frequência que os assuntos mal resolvidos pressionam. Assim, a crise nos entregou às nossas próprias subjetividades. Ficamos diante de nossas aflições como diante da esfinge que coloca um enigma e diz "decifra-me ou te devoro".

O individualismo a que fomos entregues, o avanço fulminante de questões antes tão violentamente afastadas - como o homossexualismo, por exemplo - e o grau de intimidade que todos ganhamos com elas mudaram a realidade. O que, a ditadura quis foi a todos alienar empurrando-nos para fora da discussão política. Entretanto a realidade está a nos mostrar que se fomos empurrados somente para o plano individual, hoje ansiamos todos por saídas coletivas, e saídas que incluem nossas demandas pessoais por liberdade.

Caso precisássemos de alguma prova, basta observar como o consumo de bens culturais tem aumentado pela classe média brasileira - a indústria do livro cresce em plena crise. As pessoas buscam explicações, ou será casualidade que o livro "Complexo da Cinderela" que discute o príncipe encantado como eixo da vida feminina, ser hoje um dos mais vendidos no país? Acredito que discutir o prazer, a sexualidade, o casamento ou as drogas empolgam mais do que ouvir os chatíssimos discursos dos chamados políticos profissionais, ditos num português complicado e num tom triunfalista, cheios de formas, mas vazios de conteúdo.

O prazer, o amor e a felicidade são sentimentos presentes em cada um de nós. É a soma de homens livres e aptos a exercerem a sua própria individualidade que produz uma sociedade sadia e justa. O orgasmo coletivo é uma tarefa que exige como pré-condição, embora haja uma integração de difícil localização, da fertilidade de cada um.

A mim me parece que há uma ausência, só explicável pelo provincianismo e desprezo das "vanguardas partidárias", da discussão desses temas pelos partidos políticos. Não quero fazer apologia do partido como canal privilegiado de quaisquer discussões, quero apenas constatar que um canal institucionalmente organizado, que dispõe em princípio, de uma estrutura capaz de fomentar discussões, ausentou-se. E assim, esvaziou-se.

 

Fonte: Revista IJSN Instituto Jones dos Santos Neves – Ano IV Nº 2 -1985
Autor: João Gualberto M. Vasconcellos
Mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Professor do Departamento de Administração da Universidade Federal do Espírito Santo.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2021

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