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Porto de Cachoeira de Santa Leopoldina - Por: Christiano Woelffel Fraga

Decorridos trinta dias de desconforto sobre o Atlântico, vencidas as dificuldades dos primeiros contatos com a nova terra e sua gente, já cansado de longa viagem por um interminável caminho entre luxuriante vegetação que cobria a acidentada topografia. Eis que, finalmente, o fim daquela imensa jornada se anuncia. De onde estavam os viajantes, surgiu, um pouco mais adiante, Santa Leopoldina. O coração do imigrante bateu célere, aquela extenuante e quase insuportável fadiga acumulada, num átimo se transformou em febril excitação: finalmente, ali estava, bem à sua frente, a meta de todo o sacrifício, a cidade que naquele instante, radiante, parecia abrir os braços para quem havia deixado sua pátria, a sua família e tudo o que lhe era caro, em busca de um futuro mais feliz do que o passado deixado na velha Europa.

Muitos anos se passaram; a cidade cresceu e as colônias espalhadas por toda a região central do Estado ganharam vida; muitos imigrantes encontraram a felicidade almejada e muitos outros amargaram o insucesso devido às doenças, às condições climáticas e às dificuldades de vencer a terra virgem. Mas, enquanto o tempo passava, no seu eterno e contínuo fluir, muitas coisas aconteceram e se sucederam naquele pequeno universo, com os seus conflitos e suas disputas, amores e ódios, choques de ambições e paixões e os desencontros próprios de uma comunidade plena de efervescência. Ao fim de longo tempo, aqueles fatores que determinaram o ímpeto dos primeiros tempos deixaram de existir... E o Porto de Cachoeiro, pouco a pouco, foi adormecendo, até se entregar de vez.

Hoje, nas ruas desertas de tropas e da azáfama de pessoas se acotovelando, o velho casario e o pequeno comércio exercido por descendentes dos primeiros colonos mais parecem uma esmaecida fotografia daquela que, em tempos idos, foi uma fulgente página da nossa História. A antiga cidade de Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina se, então, era a "filha do sol e das águas", hoje, com o velho Santa Maria meio agonizante, continua "filha do sol", mas órfã das águas. As águas que em outros tempos determinaram o nascimento de uma florescente cidade, apesar dos muitos óbices, são as mesmas que determinaram também o seu ocaso e o do seu porto. O rio, sem as canoas e sem os estivadores no seu contínuo ir e vir, carregando na cabeça sacos de café, é tão triste recordação. A cidade passou a ser mero ponto de passagem, e, para os que ainda a conheceram na plenitude, motivo de grande consternação.

Para os atuais habitantes, resta se darem conta do passado e pensarem em novo ciclo histórico. A cidade propriamente dita está estagnada e sem perspectiva de se revitalizar; não tem para onde crescer, não tem clima, continua sendo sufocada por novas construções no alinhamento dos antigos logradouros públicos e muitas das antigas casas, tombadas pelo Conselho Estadual de Cultura, parecem guardar o momento de tombarem, literalmente falando, por falta de recursos dos seus proprietários ou de assistência dos órgãos públicos.

Que fazer?

Se não há perspectiva de crescer nem de se desenvolver no local onde se encontra, há que se pensar em novas alternativas, O município continua grande e - o que é importante - próximo de Vitória e do entroncamento das rodovias federais que cortam o Estado. O tempo não anda para trás; urge se dar as costas para o passado e olhar para frente; o que "já foi" terá que ceder lugar ao "que será".

O declínio de Santa Leopoldina não deve ser encarado como um fenômeno local, divorciado do seu contexto histórico estadual e nacional. As suas raízes se estendem até as descobertas das "minas gerais", no interior do Brasil. Durante todo o ciclo do ouro, por quase dois séculos, o Espírito Santo esteve condenado à estagnação: era proibida a abertura de estradas em seu território e o porto de Vitória fora fortificado para evitar o contrabando de riquezas ou aventuras de possíveis piratas ou aventureiros; a ordem era "que se recolhesse a Vitória toda a gente que se encontrasse nas lavras" e "que se evitasse 'com todo aperto' excursionasse alguém àquelas regiões". O seu solo passou a se conhecido como "terras proibidas". Só após a vinda de D. João VI, com a abertura dos portos e as novas perspectivas surgiram as primeiras medidas destinadas à retomada do nosso curso histórico: o governador Francisco A. Rubim, em 1814, determinou a abertura da estrada, ligando a baía de Vitória a Vila Rica. O ponto inicial era justamente o mesmo local onde mais tarde surgiria a cidade de Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina. No transcorrer do século, com a abolição da escravatura na segunda metade, e com o incremento da imigração iniciada, muito timidamente, pela Princesa Leopoldina no primeiro quartel, quando mandou vir da Áustria conterrâneos seus, e com medidas outras, o Espírito Santo ia se recuperando do tempo perdido.

Com a grande imigração e o aumento vertiginoso da produção de café nas terras frias e em outros locais, em alguns anos a riqueza começou a aparecer e a influir na economia do Estado. A partir do final do século XIX, no governo de Muniz Freire, a capital começou a refletir os novos tempos, ao sofrer radicais transformações que só terminariam mais ou menos nos anos 70 deste século. A cidade colonial, pobre e mal servida de equipamentos urbanos, deu lugar a uma outra, nova, a que podemos chamar de cidade do café. Nesse mesmo período, a cidade do Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina alcançava o seu fastígio. A arquitetura do século XIX pontificou, simultaneamente, tanto em uma como em outra cidade. Os indivíduos arquitetônicos nas duas, salvo uns poucos exemplos de nítida influência estrangeira, ilustram bem esse fenômeno paralelo.

Embora a margem esquerda do rio Santa Maria fosse constituída de encostas íngremes debruçadas sobre o rio, a cidade, naquele tempo, teria que crescer custasse o que custasse. A pujança econômica exigia espaço físico o bastante para receber e comercializar a grande produção da vasta região central do Estado, que se estendia até Minas Gerais. Assim, não se sabe a que preço, a encosta foi rompida e em seu lugar surgiu a rua na qual foram construídas as casas de comércio, as residências, os ranchos para as tropas e tropeiros e os armazéns que ficavam em posição privilegiada para o embarque do café, uma vez que ele ia, ladeira abaixo, diretamente para o porto. Mais ou menos nos anos 30, chegou-se até a construir uma rampa através da qual o café descia, por gravidade, até o porto. Aquela rua, com frequência, estava coalhada de gente e animais, em densa promiscuidade e em acelerada azáfama.

Correndo muito dinheiro em Santa Leopoldina, em pouco surgiu um segmento rico; a sociedade estratificou-se; a vida social tornou-se intensa, e a cidade se transformou em ponto de convergência dos habitantes de toda a região, que vinham para trazer mercadorias, fazer compras e participar dos eventos, das festas e dos carnavais que se tornaram famosos.

Grandes estabelecimentos comerciais surgiram. Os seus proprietários prosperaram, ganharam dinheiro, prestígio e tudo o mais que acompanha a riqueza, mas... Tão logo o rio começou a definhar, e as mercadorias passaram a ir diretamente para Vitória através das estradas de rodagem, aqueles, e todos os beneficiários daquela conjuntura, pouco a pouco, se foram indo e, em poucos anos, o que antes era grande passou a ser pequeno, levando a cidade até ao ponto em que hoje se encontra. O casario ainda existente é apenas um testemunho daqueles tempos de esplendor que não voltam mais.

Graça Aranha, se lá chegasse hoje, por certo não mais veria a cidade como "filha do sol e das águas", talvez à semelhança de Bárbara, heroína de Virgínia Tamanini, em 'Estradas do Homem', sem acreditar no que via, ao invés de se sentir tomado de entusiasmo quando viu naquele efervescente centro só futuro e esperança, talvez fizesse dele o desabafo dela: "Ah! Meu Cachoeiro... Que se passara? Ruas desertas, lojas fechadas, porto vazio... Seria aquela a cidade que conhecera na juventude? Onde estavam as tropas a sujar as ruas? Os canoeiros a soprar os seus 'buzos'? O burburinho, a agitação do comércio? Os bailes, as festas? Os banquetes, os saraus? Onde estavam os pedaços de vida que ali vivera? Os sonhos que acalentara, as tristezas que sofrera, as alegrias que tivera?"

Nos tempos áureos, os meios de transporte fluviais e terrestres eram os possíveis: animais de carga para trazer das colônias a produção e canoas com formas e dimensões adequadas à capacidade do rio. Desciam o rio impulsionadas por remos e retornavam impulsionadas por longas varas apoiadas no peito dos barqueiros. De interesse local e custeados pelos próprios comerciantes da cidade, que via nela oportunidade de aumentar, ainda mais, os seus negócios, destaca-se a estrada de Santa Leopoldina a Santa Teresa, construída em 1919 pelo Dr. Henrique de Novaes.

Encerrado o ciclo que poderíamos chamar de imigratório, após a emancipação do distrito de Santa Maria, vendo aquela cidade prostrada e sem perspectivas, como seu filho, com frequência penso em seu futuro e, por mais que pense, sempre me vem à mente as mesmas alternativas: voltar-se para o turismo, aproveitando o potencial hídrico, o clima e a topografia das terras altas; programar e executar projetos ligados à agropecuária, fruti-horticultura e outras culturas, e implantar, em local adequado, um mini pólo industrial, talvez em direção a Cariacica ou a Serra, nas proximidades da BR 101, e nele desenvolver atividades ligadas ao aproveitamento da produção dos municípios vizinhos, de indústrias artesanais e outras, ou, talvez até, voltadas para o Corredor de Exportação, já às nossas portas.

Vários autores já escreveram a respeito da História de Santa Leopoldina, de sua formação e de sua importância. Aqueles fatores, como o fim do trabalho escravo, a conjuntura da Europa e do Brasil que, não só estimulavam, como também possibilitavam a imigração, a realidade de hoje, a exaustão das terras, a devastação das florestas, o desenvolvimento tecnológico, as facilidades de transporte e comunicação e fatores outros, agora exigem novas iniciativas a fim de que um renascimento aconteça. Uma nova Fênix.

A atividade dos colonos, adotando o tradicional procedimento de produzir o café em clareiras abertas na mata virgem, de início era altamente compensadora: a terra fertilíssima, com espessa camada de húmus, por muitos anos produzia pés de café robustos e muito carregados que, anos após ano, religiosamente, garantiam colheita certa e compensadora. Mas, essa prática predatória do solo era autofágica e, por certo, não duraria para sempre. Um dia a mãe natureza apresentaria a conta; chegaria o instante em que a terra se exauriria; com a devastação das matas, as águas diminuiriam ou desapareceriam; o equilíbrio biológico seria rompido e o homem teria que sofrer as consequências. Assim foi. O velho e caudaloso Santa Maria, de rio transformou-se em pouco mais que um córrego, a navegabilidade tornou-se impossível; nos anos 50, o desequilíbrio biológico se fez presente com a chegada da broca do café. E, a partir de então, tudo começou a mudar.

Sem dúvida alguma, a abertura da estrada para Vitória, a construção da ponte Florentino Avidos e o minguamento do rio Santa Maria foram fatores determinantes do declínio da cidade. Entretanto, não foram os únicos. Consideradas as respectivas peculiaridades, a sorte de Santa Leopoldina foi a mesma da de outras cidades do Estado, tais como Iconha e Piúma, Itabapoana, São Mateus, Barra de Itapemirim, todas inseridas em um mesmo contexto histórico: o Espírito Santo, já recuperado dos males de outrora, vivendo a prosperidade da produção e da exportação do café, havia retomado o seu curso, abrindo estradas, construindo pontes e se integrando ao desenvolvimento do País. O seu progresso, por certo, não poderia ficar condicionado a problemas locais e nem teria se processado como objetivo de prejudicar este ou aquele município. O progresso tem preço, tem beneficiados e tem prejudicados, sempre.

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nº 50, ano 1998
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2013 

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