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Quase cromo – Por Roberto Mazzini

Capa da Revista Você – UFES – Ano I Nº 9, março, 1993

Aqui os coqueiros parecem estar em casa. São calmos, balançam as palmas com certa languidez e parcimônia. Vislumbro mesmo um certo ar de auto-suficiência. Imaginação? Olho com mais cuidado e apenas confirmo. Sim, acho até que sei a causa dessa quase empáfia: a vaidade de exibir essas pencas enormes de cocos que, como úberes de vacas holandesas, quase se arrastam pela areia.

Estou rodeado de natureza, a noite vem vindo e o calor da tarde é dissolvido por essa brisa fresca que sopra do mar.

Ainda não consegui me localizar muito bem, estabelecer meus meridianos e minhas latitudes, mas não tenho dúvida que estou rodeado por um charco. De todos os lados sapos me anunciam essa circunstância e agora também um exército de grilos avança (me parece) pela mata próxima e estabelece ruidosas negociações com a saparia do brejo. O barulho é bem grande.

Neste momento acendem-se luzes por dentro dos coqueiros. Suas palmas brilham sob a luz artificial. Olho-os de imediato para flagrar possíveis sinais de fraqueza em seu aplomb. Inútil. Mesmo com esse artifício pouco original, os danados não perdem a pose. Ao contrário, parecem ficar ainda mais bonitos com o reflexo da luz nas águas da piscina.

Por cima do exaltado diálogo entre grilos e sapos, um som inesperado. E um alto falante gritando uma música que chega em ondas e onde é logo possível saber do que se trata. Isso me embaraça e me confunde. Me obriga a um exercício que não estava disposto a praticar. Enfim, é conformar-se. A música do alto-falante indica procedimentos diversificados. O mundo natural que me cerca não compreende. É possível existirem formas variadas de ação, sendo algumas melhores que outras? É da natureza das coisas que elas aconteçam naturalmente. Procuro evitar a reflexão e insisto no cromo.

• • •

Agora estou instalado numa mesa de restaurante que fica dentro de uma bolha de luz e na minha frente está uma grande e bela posta de peixe grelhado coberta de cebola, tomates, algumas ervas e gotas de um dourado óleo de oliva manchando a brancura do prato. Vou comendo devagar e observando vultos que entram no campo de luz da bolha. Os vultos vêm da sombra circundante da rua e, de repente, se vestem com a luminosidade da lâmpada do restaurante. Vejo que a maioria é de forasteiros que, como eu, trazem a surpresa no rosto.

A nova ordem, no mundo inteiro, já percebeu a importância econômica de preservar esses pedaços do passado como essas vilas de pescadores ancoradas num desvio da história. Facilmente são transformadas em bens e serviços. Recuso a atitude farisaica, mas não posso deixar de constatar que os paraísos quase intocados são muito superiores aos preservados como enclaves de resistência às modificações.

Estou no interior de um quase intocado paraíso natural e, por isso, enquanto possível, voltemos para a nossa bolha de luz que flutua na noite calma regida pelo quarto crescente. Os vultos continuam ingressando no círculo de luz mas percebo que os naturais do lugar apenas o tangenciam. Identifico-os porque se aproximam ansiosos mas ao darem com a luz forte recuam para as bordas da sombra.

Os naturais do lugar 

 A idéia do ser humano confundindo-se com a natureza. Os que estão no círculo de luz, comendo, bebendo cerveja e fazendo planos para, no dia seguinte, excursionarem às dunas, não são mais (não somos) homens naturais nesse sentido. Representamos uma espécie de rebeldia cujas conseqüências ainda não foram bem estabelecidas.

Temos o mesmo olhar de Colombo ao ver pela primeira vez o cenário tropical da América, na cena inesquecível do filme de Ridley Scott.

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Estou de volta para a borda de meu charco. Como é próprio de um não natural, vou de automóvel. A generosidade, a afabilidade do paraíso mais uma vez se manifesta. O carro desliza sobre ruas planas cobertas de capim e é como se deslizasse sobre um grande tapete macio. Ao chegar, constato que os sapos e grilos devem ter entrado num acordo porque o silêncio é profundo. Os coqueiros continuam desempenhando o seu papel mas não há mais espectadores.

Já é bem tarde da noite e, de certo modo, me rendo ao mundo natural na medida em que fico muito contente por não ter no meu quarto um aparelho de televisão e, por isso, não preciso evitar a tentação do noticiário que me devolveria para o fragor da batalha.

Reina a paz neste pedaço do estado do Espírito Santo e vou dormir rodeado por folhas, árvores e bichos.

 

Fonte: Revista Você – UFES – Ano I Nº 9, março, 1993
Autor: Roberto Mazzini
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2015

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