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Reflexão... – Por Edward Athayde D’ Alcântara

A família do Seu Edward em frente da casa onde moravam, na enchente de 1960

O Palácio da Memória "...Lá se conservam distintas e classificadas todas as sensações que entram isoladamente pela sua porta. ... a luz, as cores e as formas do corpo pelos olhos; todas as espécies de sons, pelo ouvido; todos os cheiros, pelo nariz; todos os sabores, pela boca. Enfim, pelo tato entra tudo o que é duro, mole quente, frio, brando ou áspero, pesado ou leve, tanto extrínseco como intrínseco ao corpo".

Santo Agostinho

 

Chegando a Vila Velha, trouxe alguns lampejos de memória do Arraial do Jabuti, em Guarapari, onde nasci. Como mamãe dizia: "Ele ainda vai se lembrar do dia do nascimento, porque chorava antes de vir ao mundo". Lembro-me do pequeno regato que tocava um descascador de café e servia água à nossa casa e de umas palmeiras que tinham ao longo do caule uns afundamentos como se fossem feitos por uma bola de ferro do tamanho da bola de pingue pongue e diziam que eram feitas por um animalzinho roedor chamado cate-coco (esquilo nacional).

Meu pai sofreu com a recessão dos anos 1930, perdendo quinhentos réis em cada arroba de café por ele vendido, em relação ao comprado, segundo contava minha mãe. Ele (meu pai) era fazendeiro e comprava todo o café em grão da região do Jabuti e povoados vizinhos. O café depois de pilado era ensacado e embarcado no Porto de Guarapari, com destino a Vitória. Com a queda do preço no mercado, meu pai teve um grande prejuízo, sendo obrigado a hipotecar seus bens e perder todo o seu patrimônio.

Desprovido da fazenda com todos os equipamentos de agricultura e do comércio de bens de consumo que mantinha com os colonos, mesmo assim conseguiu adquirir um terreno com uma pequena casa de estuque em Vila Velha, onde passou a residir, enquanto viveu, com a família.

Sem profissão definida e com umas cinco reses, meu pai foi à luta. Antes, jurou jamais voltar à terra de nascimento e assim o fez pelo resto da vida.

O que fazer? Vender suas reses e procurar trabalho? Viu que as únicas indústrias de Vila Velha eram as padarias. Fez um carrinho de mão e partiu para cortar lenha e vender às padarias. Depois de alguns meses, percebeu que Vila Velha estava precisando de carpinteiros para assoalhar e fazer o engradamento das casas em construção. Não perdeu tempo, adquiriu com dificuldades as ferramentas de carpintaria e marcenaria e foi ser ajudante do senhor Verediano, homem honesto e benquisto na cidade. Trabalhou também com o senhor Sabino e outros mestres de obra. Assim, foi possível entrosar-se com outros construtores como os senhores Barros, Nilo, Mario e outros.

Com profissionalismo e honestidade foi adquirindo conceito e bom circulo de amizades. Trabalhou na reforma do telhado do Convento da Penha, trocando todo o madeiramento roliço por madeira de lei trabalhada; trabalhou na reforma da enfermaria do 3º BC (Terceiro batalhão de Caçadores); nas construções das casas dos administradores da Fazenda Itaparica, inclusive na residência assobradada do seu proprietário, doutor Armando de Oliveira Santos.

Meu irmão mais velho, com pouca idade, conseguiu emprego no bar do tenente Aquiles do senhor Aquiles (na época), depois foi caixeiro na venda do senhor Amâncio até ser sorteado e convocado para servir o Exército. O segundo filho era o que servia para efetuar as compras e ajudar meu pai na sua lida. A lenha era comprada em pequenas toras que eram abertas em lascas para serem levadas ao fogo. Minha mãe abriu uma pequena pensão em nossa casa, sendo seus pensionistas os militares. Era uma batalha e eu, criança, não percebia quão pobres éramos; penitencio-me sempre, que Deus perdoe a minha falta de compreensão. Talvez tenha sido melhor assim...

Minhas irmãs mocinhas ajudavam nossa mãe nos afazeres e logo resolveram fornecer marmitas para alguns militares do 3º BC. Eu, já com uns seis anos, acompanhava meu irmão a entregar marmitas; meio desajeitado, aprendi e comecei a assumir parte dessa responsabilidade. Ao entrar para a escola, meu irmão e eu passamos a estudar em horário diferente. Minhas duas irmãs mais velhas casaram, papai folgou um pouco e nossa vida melhorou. Ele fazia empreitada de serviços e já contratava ajudantes para o trabalho.

Os caminhões tinham o aro das rodas em ferro e os raios em madeira, e, quando necessário, meu pai conseguia moldar um novo raio para substituir o raio danificado. Ele era um artífice.

Nessa altura já éramos oito filhos, quatro homens e quatro mulheres, em sequência, um homem, uma mulher, outro homem outra mulher e assim em diante. Porém, todos estudaram e concluíram o primário; os dois irmãos mais novos o secundário.

O interessante é que a criança não presta atenção na pobreza, ela é feliz com muito pouco: se não tinha carrinho, com carretel, borracha e pedaço de pau saía um e outros. As latas eram brinquedos que serviam até para andadas (perna de lata), usando um barbante. Qualquer coisa era comparada com algum brinquedo, como o trenzinho, substituído por um ferro de passar roupas em desuso; cabo de vassoura como um cavalinho; caixa de fósforos era a carroceria de um caminhão; com duas tampas de lata, barbante, prego e três pedaços de madeira eu fazia um carrinho, e assim em diante. Tudo que não mais servisse em casa era convertido em brinquedo.

Se não tinha bola de borracha para jogar, uma velha meia de calçar, cheia de farrapos, se transformava em uma. No matadouro, os empregados deixavam a gente pegar a bexiga do boi para transformá-la em bola e era considerada uma das melhores para nosso jogo. A gente enchia a bexiga com água e ia batendo de encontro a uma peça de madeira e ela ia esticando, e mais água era colocada até que atingisse o tamanho ideal. A pele depois era colocada para secar e o excesso retirado; com um barbante era dado um nó cego na parte inferior da bexiga, e, com um canudo de talo de mamão introduzido na parte superior, a gente assoprava até não mais poder e ali amarrava também fortemente para evitar a escapada do ar, e a bola estava pronta para ser chutada. Durava muitos dias, principalmente não se molhando na chuva.

Aliás, como era bom um banho de chuva quando o calor nos atormentava; não adiantava nossos pais falarem: Cuidado com a chuva, não venham para casa molhados.... Saía tudo ao contrário, já que faltava a permissão, pois o gostoso era se molhar. Em grande a alegria, a gente ia de pingueira em pingueira dos telhados para tomar aquele banho. Nas ruas, chutar a água das poças era divertido, a brincadeira era um jogar lama no outro; quanta liberdade e falta de juízo. O andar descalço nas águas paradas (poças) deixadas pelas enxurradas criava um problema daqueles. De imediato provocava uma coceira doida entre os dedos dos pés que diziam ser frieira. Nunca conseguimos saber por que motivo a chuva causava frieira. Sei que a gente a tratava com banhos feitos com a infusão de plantas colhidas no próprio quintal, como as beldroegas, os sabugueiros e outras mais. A coceira era tamanha que à noite, ao deitar, a gente segurava duas pontas do lençol e num vai e vem entre os dedos, coçava até a pele se soltar, causando um vermelhão que passava a arder e muito. Depois de curado, vinha nova chuva e o filme se repetia. Não tinha jeito...

Quando dava (uns cobres, como se falava) conseguia ver um filme no cinema de Seu Raimundo. O cinema, muito simples, com suas paredes em alvenaria, coberta por telhas a vão, pouco conforto oferecia; quem pagasse cadeira (não havia poltrona), entrava pela porta principal e procurava acomodar-se da melhor maneira; um corredor estreito entre o prédio e o muro vizinho levava à entrada da geral. A geral não tinha piso, era areia mesmo e os bancos de madeira tosca eram o assento dos frequentadores. O preço do ingresso era a metade do valor das cadeiras. Quando havia empolgação a molecada em estardalhaço pegava punhados de areia e os jogava para o alto. Era uma grande bagunça, porque o filme era dividido em partes e uma só maquina o projetava na tela. Quando o operador esquecia de enrolar o filme, o mesmo começava de traz para frente e a gritaria era generalizada.

Sucesso mesmo era o faroeste da série Tom Mix.

Chegando em casa, na certa era a brincadeira de bandido e mocinho que nos esperava. E o filme de Tarzan, que nos fazia subir nas árvores e saltar de galho em galho levando muitos tombos.

A criança pobre do meu tempo tinha mais liberdade para escolher desde cedo que conduta e exemplo seguir. Os pais proibiam certas companhias e a gente obedecia.

No governo do presidente Vargas a vacinação contra difteria, conhecida também como crupe ou catarro sufocante, era aplicada na marra, não adiantava se esconder nem debaixo da cama, pois a criança era arrastada e vacinada à força.

Nos primeiros dias de aula do primário a criança era imunizada com a vacina contra a varíola (na época, bexiga). A enfermeira, utilizando uma caneta tendo na ponta uma pena desprovida de uma das asas, escarificava a pele do aluno na altura do antebraço até ferir levemente a pele, e, em seguida, com um conta-gotas aplicava o antídoto na ferida aberta. Se a lesão causada ao sarar deixasse cicatriz, isso queria dizer que a pessoa estava imunizada para sempre e não precisava de uma segunda dose. Na matricula ao ginásio, era exigida do aluno a apresentação do certificado de vacinação fornecido pelo Centro de Saúde do Estado. Visando erradicar a tuberculose, na era Vargas (1930/1945), o infectado pela doença era isolado em Maruipe e seus filhos menores internados em preventórios. Na rua, quando a gente sabia ou desconfiava de alguém que estava doente, mudava de lado para evitá-lo.

Na década de 30, os governos estaduais construíram casas enfermarias para recolhimento e isolamento dos leprosos (hansenianos). Construída longe do centro urbano, e isolada por altos muros, a vila era chamada de leprosário. No nosso Estado o local escolhido para a vila foi Itanhenga, no Município de Cariacica. Naquele tempo, considerada doença transmissível, os doentes eram levados, às vezes, à força para os asilos. O bebê nascido no asilo era separado dos pais e levado ao internato, ou então, adotado por parentes sadios.

Era muito triste! Eu, ainda criança, presenciei naqueles anos a retirada, à força, do seu lar, uma família que residiu numa chácara em frente ao prédio antigo da família do desembargador Ferreira Coelho (atual Colégio São José). A família retirada, nossa conhecida, nos deixou tristes; o melhor é esquecer esse infeliz acontecimento e lembrar-me dos bons.

A garotada gostava de armar ratoeiras para pegar goiamuns e cevá-los; também caçar preás, correndo atrás com os cachorros, era divertido.

O circo influenciava a gente, tudo que eles faziam a gente tentava fazer levando muitos tombos; as meninas ajudavam na apresentação das comédias, mas poucas eram as brincadeiras incluindo-as. Os meninos sempre eram preconceituosos, não consentindo que elas participassem de tudo.

Na época do Natal, pensávamos que Papai Noel não nos dava presente porque não tínhamos sapatos e os tamancos não tinham como contê-los. De fato, não tínhamos tamanco de verdade, era apenas uma tábua com uma tira de pano nela pregada. Nem pensávamos em reclamar. Para que? O negócio era deixar pra lá. Querem saber a verdade? Somente ao escrever este livro é que pensei que esse era meu pensamento porque nunca fiquei triste ou aborrecido de não possuir o que os outros meninos tinham. Mas, como podia saber se meus conhecidos viviam igual ou em pior situação que a nossa?

As casas esparsas de Vila Velha começavam no encontro da Rua Sete de Setembro com a Rua Coronel Sodré; por esta seguia até o Córrego Encerica e por ele até à Prainha (propriamente dita); ao chegar ao cais, seguia pelo entorno do Morro da Penha até o Rio da Costa, e por este até o Sítio Batalha; contornando o sitio ia encontrar a Rua Sete de Setembro, seguindo por ela até o ponto inicial da Rua Araribóia.

Seguindo o prolongamento da Rua Luciano das Neves no sentido sul, em direção à chácara da família Ferreira Coelho, conhecida como Toca, havia umas três residências, pertencentes às famílias Guerra, Simões e Jacob. Fazendo frente à chácara da Toca, esparsas residências de Chico (do matadouro), Alcântara e Firme Rangel. Outras casas simples do Laudelino (bombeiro hidráulico), Mario (pedreiro), Benedito Souza, Antenor (barbeiro), Walter Bourguinhon (venda de molhados), terrenos de Gil Bernardes da Silveira. O restante, fora deste limite, ou era pasto ou área de restinga da mata atlântica.

As casas dos arredores não possuíam instalações sanitárias. Para tomar banho era usada a bacia para os adultos e a gamela ou caneco (banho de cavalo) para as crianças. As roupas eram lavadas com água da fonte ou do poço artesiano. Era quarada na grama, depois de quaradas eram estendidas para secar na cerca de arame farpado de frente para a rua e não aparecia nenhum gatuno ou vândalo para nelas mexerem ou gatuná-las.

Necessidades fisiológicas só nos penicos para as madames e mocinhas, no enterrado. A verminose era um mal costumeiro e o Departamento de Saúde Pública do Estado fornecia os exames laboratoriais, prescrevia e aviava gratuitamente o remédio às pessoas. Lembro-me, era costume serem expelidos nada menos que uns trinta vermes (lombrigas) a cada aplicação.

Em geral, as crianças andavam descalças, facilitando a entrada dos bichos de pés. Eles se encravavam em todo o pé e em especial bem debaixo das unhas, o que causava, além da coceira, um sofrimento no hospedeiro e trabalho para quem fosse extirpá-los. As vezes, os bichos acertavam sob as unhas da mão, o que era uma loucura.

Os quintais das casas eram separados por cercas de arame farpado ou cerca-viva de gravatás, gravetos leitosos, pinhões etc. Hoje, basta pedir um prato de comida que nele, além do feijão e arroz, vem sempre um pedaço de carne-seca ou verde (carne fresca), ou uma posta de peixe, ou ovo, e às vezes até um pouco de macarrão; naquele tempo, não: o arroz era comida de poucos e a carne era peça nobre, vendida no máximo três vezes por semana e em pequena quantidade.

A carne verde, hoje é simplesmente carne de boi, abatido nos grandes frigoríficos. Na época o abate era no matadouro municipal. E a carne era transportada em caminhões de carroceria de madeira tipo baú, não possuíam frigorífico. Na traseira, duas portas de fechar encimavam uma pequena escada de ferro com apenas dois degraus, dando acesso ao interior do baú. A meia altura das laterais do baú, em letras garrafais, os dizeres: CARNE VERDE. Por que carne verde? Porque aqui ainda não havia a carne de sol. A carne era seca, ou verde, isto é, fresca.

A carne verde era entregue aos dois únicos açougues, o do Arlindo Paiva na esquina da Rua Antônio Athayde com a Rua Vinte e Três de Maio e o do Afonso, na esquina da Rua Cabo Ailson Simões com a Rua Henrique Moscoso.

Sem exceção, a carne no açougue era pendurada nos ganchos para serem separados os diversos pedaços; os melhores eram colocados embaixo do balcão, para os fregueses selecionados que não precisavam comparecer à compra; quando separava o fígado dos miúdos do boi, era um avança-avança, para ver quem seria atendido; a seguir, a disputa prosseguia para a compra da carne de segunda, porque a de primeira já estava reservada. Da carne de segunda com osso, a gente conseguia comprar um quilo e, daquele quilo, mamãe separava o bife (duro) e o restante era o famoso "papado" (ensopado); o osso era a sopa do jantar. Só depois de adulto é que me lembrei que o açougueiro separava umas peças sem osso (carne de primeira), e as colocava sob o balcão. Mas não faz mal, a grande disputa era para comprar a fraldinha, de que na época o sargento Antero dizia: "Seu Arlindo, um quilo de cueca". Ele, militar, conseguia porque tinha crédito (soldo de militar). Por fim, o açougueiro desossava a cara do boi e a vendia junto com o bofe para outros, que diziam: "Para alimentar os cachorros"... Felizmente mamãe era muito conservadora e dizia ter nojo de comprar ou mesmo tocar em pulmão, mesmo que fosse de galinha.

A carne seca e outras mercadorias chegavam ao Porto de Vitória a bordo dos ITAS (navios costeiros) que, de porto em porto, desembarcavam e embarcavam suas mercadorias.

E o café da manhã, como era? Muito simples: quando podia, era servido com o pão-cilindro de sal, pois tinha duas bandas e servia para ser repartida entre duas pessoas; sempre havia a disputa de quem ficava com a maior parte. O pedaço de pão chamado de bunda vinha sustentando os demais, era um pouco maior, por isso o mais disputado. Havia ainda a famigerada vendagem para quem comprasse dez tostões de pães. Vendagem significava que em vez de dez pães, a gente levava para casa doze ou quatorze pães, conforme a bonificação da padaria. O pão francês vinha um pegado no outro e também dava para ser repartido cada um deles entre dois filhos.

Quando o recurso era pouco, uma polenta salgada feita em panela de ferro era despejada sobre uma toalha e cortada em tiras por uma linha de costura; e esse manjar dava para a gente se fartar. E o angu doce, também de fubá, era salpicado com erva doce, e pronto, derramado e espalhado nos pratos e coberto com canela em pó para saborear melhor. Deste tenho saudades porque o achava uma delícia, além da quantidade distribuída para cada para um. O fubá também servia para fazer o bolo doce. Era assim: untava-se de banha de porco o fundo e toda a parte interna da panela de ferro; despejava a massa consistente de fubá na panela tampando-a com uma folha de flande; a tampa era coberta com brasas vivas; levada para baixo da chapa sobre as brasas do fogão a lenha, a deixava por um tempo que não sei quanto; ao retirar a panela, com uma faca (naquele tempo não tinha espátula), se desprendia o bolo da panela e, virando sobre a mesa, estava o bolo feito; se tivesse tempo esperava-se que ele esfriasse ou era servido mesmo quente; depois a disputa pela raspa do bolo que ficava presa na panela. Esta, é outra história...

Com todas essas dificuldades, nosso organismo adquiriu resistência às intempéries e hoje estamos aqui como sobreviventes e felizes. Como minha falecida irmã dizia: “Éramos felizes e não sabíamos...”.

À noite, ao nos recolhermos, nossa mãe sentava na cama com a gente e contava estórias para nos ninar. Antes fazíamos com ela nossas orações rezando o Pai Nosso, a Ave Maria e Eu Confessor. Após pedir o perdão dos pecados, rezávamos: "Com Deus me deito, com Deus me levanto, com o Anjo da Guarda e a graça do Espírito Santo. Amém". (Repito tudo até hoje, ao deitar e ao levantar).

As histórias de ninar eram diferentes das atuais. Quem fazia maldade, no final recebia o troco. Aprendemos que o bem se paga com o bem e o mal era castigado pagando caro mais à frente; é o exemplo de A cigarra e a formiga: enquanto a formiga ajuntava para o inverno a cigarra cantava e no final não recebeu o agasalho. (Moral: o trabalho diignifica).

Outra, a dos dois amigos: O corcunda e o papudo. O papudo simples e pobre, o corcunda rico e avarento. No final um perde o papo e o outro recebe o papo além da corcunda.

Outras histórias como A moura torta; O lenhador e as três filhas; O sapo e o pássaro; O macaco e a onça; A gata borralheira; O pequeno cate-coco; João Bobo; Pedro Malazartes; A festa no Céu, e outras vinte e tantas.

Antes de deitar, era costume os mais velhos contarem estórias de assombrações. Como era divertido ouvir estas e outras, todos nós sentados na cozinha à beira do fogão e uma chaleira com café no fogão a brasas.

Os acontecimentos que mais me impressionaram foram as enchentes provocadas pelas cheias do Rio Jucu pela sua lindeza (para a criançada), e pela calamidade para os adultos, que nela perderam o pouco que possuíam.

Divertíamo-nos com os animais fugindo das águas, as cobras descendo a correnteza ou agarradas no arame farpado das cercas; as formigas-fogo (vermelhas) formavam um grande bolo e juntas desciam levadas pelas águas em direção à maré (Rio da Costa), o escoadouro das águas na baixa-mar.

Jangadas feitas com troncos de bananeira eram improvisadas e nelas nos divertíamos a valer. A enchente era uma farra para nós e tristeza para nossos pais, que tinham de arrumar abrigo até que as águas abaixassem e pudessem retornar à casa e procurar reparar os danos por ela causados.

Jamais esquecerei a enchente de 1942: a família do meu cunhado possuía uma casa desocupada na Ilha dos Aires e lá estávamos alojados aguardando as águas abaixarem para retornarmos a nossa casa. Fui acometido de uma febre muito forte que meus pais ainda não conheciam e nem mesmo o médico, que pensou ser uma gripe muito brava. Estava deitado, com febre, numa esteira estendida na sala enquanto minha mãe costurava em sua máquina. A casa coberta com folhas de zinco tinha uma delas com as pontas soltas e como no filme O morro dos ventos uivantes, o vento batia forte, era uma agonia o barulho ensurdecedor dela contra os caibros da casa.

Por coincidência, apareceu um consertador de máquinas de costura que, ao ver-me estendido no chão com febre, resolveu me examinar. Bendito foi esse senhor de nome Salomão que residia no Cercadinho. Ele era conhecido dos canelas-verdes como o curandeiro que tratava quem o procurasse, sem cobrar um só vintém; Seu Salomão, sentado na cadeira, curvou a cabeça, botou a mão sobre a testa e diagnosticou: "O menino está com impaludismo, a senhora leva ele ao Posto da Malária, na Avenida Capixaba, para ser tratado porque só eles podem curá-lo”. Direto e feito, eles me curaram, eu estava com sezão.

Mamãe nunca permitiu que matássemos rã, porque era comum nos dias de chuva ver, à noite, fachos de luz a querosene riscarem os brejais com gente a caça das pobres rãs braçudas. A confecção do facho era interessante: pegavam um pedaço do gomo de um bambu com nó e nele introduziam um pedaço de estopa (trapo de saco do mesmo nome) embebido no querosene, deixando de fora uma pequena ponta a que chamavam de “bucha”. A bucha acesa conserva a chama por muito tempo e nem o vento, mesmo forte, consegue apagar.

Nos brejos do Celamim e cercanias, além das rãs podíamos caçar piaçocas, saracuras, berrumeiras, socós, marrecos, irerês e outros pássaros que frequentavam as lagoas.

As águas do Celamim se juntavam com as nascentes provindas da Praça Duque de Caxias, que afloravam nos terrenos do lado sul da Rua Sete de Setembro. Eram os olhos d'água do terreno de Seu Barros, pai do Amilton, do André Nogueira, do Seu Jacob e do Seu Nilo, que faziam crescer o volume do córrego que, ao chegar à Rua Luciano das Neves, recebia outra nascente que corria ao longo da referida rua. Neste córrego usávamos peneiras para pescarmos pequenos morobás e carás para juntarmos a outros peixes que já estavam num buraco feito no quintal do Elias, colega e vizinho, pensando em criá-los, porém, sobreviviam poucos dias.

Como era divertido a caça às preás. Elas visitavam os terrenos baldios próximos ao brejo. A garotada trazia seus cachorros vira-latas e os atiçava na trilha da preá. Logo, logo ela era levantada e a meninada fazia o cerco. Felizmente a bichinha era esperta demais e os caçadores mirins desistiram da perseguição e aproveitaram a ocasião para promover a corrida dos cachorros na raia improvisada no caminho de Itapõa.

Vivíamos em liberdade no campo e na cidade; não existiam obstáculos, tudo era bom e legal; só não era legal jogar bola no meio da rua quando aparecia um dos dois policiais do destacamento de Vila Velha. Eles se faziam respeitar, eram conhecidos de todos e sempre avisavam aos nossos pais os malfeitos dos filhos, para em casa serem corrigidos.

Nas capoeiras caçávamos com nossas setas as rolinhas que aparecessem, porém, sempre respeitávamos as que estavam nos ninhos. Para essas, nós aguardávamos que seus filhotes, depois de nascidos, recebessem os primeiros canhões, para, então, apanhá-los e criarmos em nossa casa. Usávamos sementes de capim, de pinhão e milho quebrado (rolão) bem pequeno, igual a canjiquinha, e os alimentávamos no bico. Mesmo pequenos os colocávamos no viveiro; mansos, os passarinhos pousavam nos nossos ombros. Nunca gostei e nem tive pássaros presos em gaiola. Meu irmão mais velho tinha um pombal e isso sim, eu gostava, matava os filhotes e os comia com arroz, como era costume de dizer: “arroz de pombo”.

Em 1935, pudemos contar com a chegada da água na nossa rua. Logo, meu pai, no mês de outubro daquele ano, pediu a ligação para nossa residência. Improvisou uma caixa d’água para nossa serventia. Era assim: quatros esteios bem fincados no solo, encimado por um estrado de tábuas e sobre ele, deitado, um tonel de querosene. No tonel era feita uma abertura no centro, ao alto, para executar sua limpeza e num dos lados um furo onde era fixada uma bóia para controlar a entrada da água. Na parte de baixo era instalada a saída da água para servir à residência, e assim passamos a ter água encanada na nossa casa.

A fossa era interessante: era aberto um buraco no chão, onde as paredes eram levantadas em pedra sobre pedra seca até atingir a altura da superfície; nela era colocado um assoalho de madeira de cerne da espécie camará e sobre a mesma, depois de bem vedada, uma camada de argila, completando assim sua impermeabilidade.

Conclusão:

Depois de todas as privações que passei não as senti porque meus pais nunca deixaram transparecer suas dificuldades e o carinho e educação que nos deram foram suficientes para que, com alegria aceitasse tudo com normalidade. Meus irmãos e eu podemos nos orgulhar da nossa família, cujos os descendentes seguindo a tradição permanecem unidos por todos esses anos mesmo quando os mais velhos são chamado para outra esfera mais próxima de Deus.

Hoje guardo a saudade e me recordo do que dizia meu mestre do ginásio Salesiano: “Saudades... doce pungir de acerbo espinho”

Padre Mário Ramos - SS

 

Fonte: Memória do Menino... e de sua Vila Velha – Casa da Memória Instituto Histórico e Geográfico de Vila Velha-ES, 2014.
Autor: Edward Athayde D’ Alcântara
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2020

 

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