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Sobre armas e milk shake – Por Antônio Carlos Neves

Fafi anos 70

Parecia-lhes incrível que antes não houvessem percebido os indícios, agora tão evidentes. Afinal, estavam por toda parte. A todo instante podiam ver grupos de pessoas pelas ruas, com expressões sérias, provavelmente sob o terror que as conversas já então tendiam a provocar, e à medida que avançavam para o centro da cidade eram ultrapassados ou cruzavam com diversos carros de polícia. Entretanto, foi mesmo diante do prédio da Fafi que as coisas esquentaram.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ficava no centro da cidade, ocupando um antigo prédio que parecia ainda mais grandioso por ter como vizinhança apenas construções mais modestas, como o Mercado Municipal, a Rádio Espírito Santo e os cinemas Vitorinha e Odeon. O que a destacava, no entanto, era a atividade política de seus estudantes, inquietos e inquiridores, rivalizados apenas pelos da Faculdade de Direito.

Naquele momento, a avenida Jerônimo Monteiro andava tumultuada com a presença de soldados diante do velho prédio, embora houvessem, até então, se limitado a observar a atividade dos estudantes que os vaiavam das janelas e da atravancada entrada. E ninguém provocava melhor que um estudante: frases irônicas, gritos, apitos, risadas, apelos aos sentimentos cívicos das mães dos soldados, cartazes improvisados e até rolos de papel higiênico disponíveis (que, debochados, chamavam de Phd) lançados das janelas, tudo era válido, desde que os gorilas não usassem as armas ou continuassem sem invadir a Faculdade. O movimento diante da entrada era intenso, tanto dos que entravam como dos que saíam, embora estes só desejassem conferir de perto quais as verdadeiras intenções dos milicos, pois era impensável uma retirada num momento como aquele. A visível tensão entre os soldados era motivo de inquietação, claro, e os estudantes se esforçavam para criar um clima festivo e de gozação, principalmente porque acreditavam na crença de que o Exército jamais invadiria uma faculdade: os soldados, evidente, estavam ali para evitar que houvesse tumulto com a passeata que estava sendo preparada, embora considerassem um despropósito os soldados executarem uma tarefa que, na verdade, cabia aos meganhas.

Gabriel e Calabar entraram no prédio da Fafi e logo correram para o DE, onde encontraram Ronaldo, Amadeu e Joceli diante do mimeógrafo, já envolvidos numa tremenda discussão com o diretor da Faculdade.

— O que houve? — indagou Gabriel, abrindo passagem entre os vários estudantes que, ao se contentarem apenas em observar a confusão, na verdade, só atravancavam a entrada do Diretório Estudantil.

Ninguém respondeu, inclusive porque o diretor gritava, apoplético:

— Vocês são uns irresponsáveis! Não vou permitir que rodem essa subversão, ainda mais usando material da Faculdade!

Joceli quase agarrou o homem, de tão furioso que ficou, mas Amadeu o conteve com um empurrão.

— Não responda! — gritou ainda Amadeu. — É exatamente o que esse puxa-saco de milico está querendo!

Ronaldo aproveitou o espanto do diretor para lhe enfiar um dedo quase dentro do nariz, enquanto esbravejava:

— Está chamando de subversão a defesa da democracia, porra?! Seu cretino, não está vendo que subversão é esse golpe?

— Veja lá como fala comigo! — berrou o diretor, sem um pingo de paciência.

Gabriel tentou se intrometer:

— Droga, gente, estou perguntando o que está acontecendo!

Amadeu, aparentemente o mais comedido ali, explicou:

— Estamos rodando um manifesto de protesto contra esse golpe fascista, e a besta aí quer impedir!

— Ah, não quer deixar, é?

— Não deixo! Não permito provocações nesta Faculdade!

— E com que direito, porra?! — esbravejou Gabriel. —O DE é independente, aqui você não manda em nada!

— Boa, Gabriel!

O diretor ficou pasmo: — Mas o mimeógrafo foi emprestado pela administração!

— Em regime de comodato.

— Boa, Gabriel! Gabriel virou-se para Ronaldo.

— Quer calar a boca? — e novamente para o diretor: — Não foi empréstimo, professor. Foi comodato. E se não acredita, como percebo por esses olhos esbugalhados, pode conferir na secretaria!...

A cara do diretor demonstrava que ele não esperava por aquela, mas Gabriel não se iludia: os administradores conheciam como ninguém quais os desvios burocráticos necessários para contornar os becos sem saída, possuíam um vasto repertório de frases escorregadias e eram mestres em enganar os inocentes. Portanto, aguardou.

Tibério Caio Ramos era o diretor da Fafi há tempo suficiente para que os atuais alunos já o tivessem encontrado ao ingressarem na Faculdade, e ninguém parecia gostar muito dele: era o tipo de cretino que só ficava em cima do muro, fazendo parte daquele grupo de professores que jamais lecionavam, preferindo eternizar-se em cargos administrativos. Era uma vergonha.

— Vocês acham que os soldados estão aqui para garantir as aulas? — indagou o diretor, suavemente. — Pois saibam que já estão prontos para invadir o prédio!

Ninguém, claro, acreditava naquela balela. Ainda assim, os estudantes entreolharam-se, indecisos, de repente se lembrando que conheciam muito bem a história de outros golpes para reconhecerem que nenhum direito constitucional prevalecia numa hora daquelas.

— Coloquem em suas cabeças que a brincadeira acabou — voltou a dizer o diretor. — A bagunça de Jango terminou, agora o país vai ser colocado outra vez nos trilhos. E não tentem reagir! Sabem muito bem o que ocorreu quando Getúlio e os integralistas deram o golpe: as cadeias ficaram abarrotadas de presos políticos, tiveram até de soltar os marginais para conseguirem espaço suficiente. E Getúlio era um homem gentil, bonachão! Acham que os militares vão tratá-los com café na cama e aulas de bom comportamento?

— Droga, eu não tenho medo — balbuciou Ronaldo.

Mas estavam abalados, e ficaram ainda mais quando perceberam Amadeu deixar a sala do DE rapidinho, sem nem mesmo se despedir.

— Viram só? — o diretor não perdeu tempo. — O colega de vocês é que está certo. A melhor coisa a fazer agora é ter bom senso. Por favor, rapazes, só estou querendo preservar a instituição!... Será muito pior sermos invadidos, com todo mundo preso, a Faculdade sob intervenção militar. — Ele observou a reação dos estudantes e arrematou, confidencial: — Estou sabendo que os militares já ocuparam a UnB e a USP... e tudo porque os estudantes tentaram reagir. Não é hora para gestos heróicos!

De alguma forma aquela frase mexeu com Gabriel, que arrancou subitamente a matriz do manifesto das mãos de Ronaldo.

— Pois vou rodar o manifesto, porra! — gritou, e avisou, esticando um dedo na direção do diretor: — E não tente me impedir! Se tem tanto medo, pode dizer aos milicos que o responsável sou eu!

Vermelho de indignação, Tibério Caio ainda tentou reaver a matriz, mas Gabriel o empurrou até a porta. — Fora daqui! — gritou, possesso. — Aqui no DE mandamos nós!

Tibério Caio percebeu a mesma inconsequente determinação no rosto dos demais estudantes e concluiu que nada mais tinha a fazer ali, infelizmente. Sabia como aqueles rapazes podiam ser teimosos, quando se acreditavam cheios de razão — o que, aliás, parecia sempre ocorrer, não importando o assunto. Então, antes que o colocassem humilhantemente para fora da sala, virou-lhes as costas e saiu por conta própria, nem precisando abrir caminho entre aqueles que observavam do lado de fora. Sentiu, sim, foi um arrepio de mau agouro ao atravessar o verdadeiro corredor polonês formado pelos estudantes.

Por volta do meio-dia, começaram finalmente a lançar pelas janelas os panfletos ainda úmidos de tinta, em pacotes que muitas vezes nem sequer abriam para espalhar as folhas, consequentemente aterrissando de forma dolorosa sobre os soldados postados diante do prédio. Naquele momento, a inquietação tinha tudo para chegar ao auge. Mas somente quando o tenente que comandava o cerco leu o conteúdo do manifesto foi que a invasão afinal começou. Por mais cordato que o oficial pudesse ser, como tentaram justificá-lo mais tarde, sua formação militar jamais aceitaria passivamente que fosse chamado de gorila peidorrento, muito menos de golpista reacionário ou jiló de quartel — o que dizer então quando ele, que considerava o movimento militar em curso como um ato revolucionário-em-defesa-da-pá-tria-contra-o comunismo, leu no manifesto que o mesmo era definido como "refúgio para todos os safados golpistas que parecem eunucos sem uma guerra"? Evidente, o homem sentiu-se ofendido. Imediatamente concluindo que teria um ataque de apoplexia, caso não ensinasse aos delinquentes juvenis a distinguir patriotismo de baderna bolchevista (o tenente já não era tão jovem), ordenou a seus comandados que entrassem no antro de subversão e prendessem quem quer que oferecesse resistência pelo caminho, não dando a mínima para quantas cabeças esbarrassem em seus cassetetes.

Há muito que os soldados ansiavam por aquela ordem, de saco cheio com as provocações, alguns até abalados com o brado de que soldado também era povo. Ora, numa hora daquelas não havia povo — havia só um bando de filhinhos-de-papai brincando de agentes de Moscou, como se ali fosse a embaixada da União Soviética. Isto significava que seria ótimo quebrar cabeças de preferência inumeramente. Foi assim que partiram, felizes da vida, para cima dos estudantes mais próximos, justamente aqueles que badernavam na entrada. Quando os estudantes descobriram que uma cacetada doía praticamente bem mais do que teoricamente imaginavam, trataram de debandar na direção que o pânico de cada um apontava: para a rua, para o pátio da Fafi ou para corredores e salas. A gritaria atraiu o resto que ainda estava na ignorância do ataque e foi aí que a confusão realmente começou, com todos se encontrando no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Tropeçando, caindo, voltando a correr, indagando-se o que estaria acontecendo, os confusos estudantes foram apanhados pelos soldados, que já estavam dentro da Faculdade — e naquele instante mais um mito foi derrubado, o de que as portas do saber estavam eternamente fechadas aos militares — com toda a eficiência distribuindo bordoadas naqueles que tinham a infelicidade de correr para o lado errado, e foi assim também que todos logo ficaram sabendo o que estava acontecendo.

Foi naquele momento que Calabar teve a ideia que mais tarde seria considerada a única realmente genial de sua vida, e assim mesmo por parte dos colegas e durante uma ruidosa comemoração dos vinte anos de formatura, mas que o colocou imediatamente na condição de líder da baderna estudantil, na avaliação nem sempre lúcida dos militares. Ele próprio definiria sua atitude como a de alguém subitamente possuído pelas asas do heroísmo, mas o que fez foi ligar o sistema de som do DE. Então, de microfones em punho, passou a comandar a resistência, eufórico ao ouvir a própria voz ressoando pelos alto-falantes espalhados por todo o prédio da Faculdade e chegando até a rua:

— São doze horas e quarenta minutos do dia primeiro de abril de 1964, e neste momento a Fafi está sendo invadida pelos golpistas! Abaixo o golpe militar! Abaixo a ditadura fascista! Resistam, camaradas!

Ao escutarem a palavra "camaradas" os soldados se sentiram ainda mais motivados a baixar o cacete. Entretanto, desesperados com tantas salas e confusos sobre de qual delas vinha aquela voz, começaram a abater os alto-falantes a tiros, ou simplesmente arrancando os fios, dependendo do grau de raciocínio de cada um. Mas a voz de Calabar continuava a conclamar os colegas à luta: — Resistam, camaradas. Atirem mesas e cadeiras, máquinas de escrever e apagadores de giz, mas resistam camaradas! — e com inesperado senso de humor para a Ocasião: — Podem jogar o diretor sobre os milicos, que ele é venenoso!

Venenoso ou não. Tibério Caio levava naquele mesmo instante uma borrachada bem no meio do nariz, que se amassou como se fosse de papelão. A dor foi tremenda, mas ele só desmaiou ao ver o sangue jorrando de suas narinas, e se esborrachou no chão. Foi incontinenti agarrado por dois soldados que, sem noção alguma de quem se tratava, o jogaram sem qualquer piedade dentro do camburão, pouco se lixando quando os estudantes que já lá estavam tentaram arremessá-lo de volta, indignados com a mistura.

Quando finalmente a sala do DE foi encontrada, Calabar já se aboletara no peitoril da janela, e os soldados não puderam acreditar no que ele fez a seguir. Os dois ou três alto-falantes que continuavam funcionando ainda transmitiram sua última mensagem — Perna pra que te quero, pooorraaa! — enquanto ele voava do segundo andar diretamente sobre a capota de um camburão de onde tornou a pular, desta vez caindo sobre a porta traseira. Aquela acrobacia provocou a maior confusão, pois a porta — que estava aberta — se fechou sobre o soldado que a segurava, empurrando-o para dentro do camburão. Assim, enquanto Calabar corria para salvar a pele e a vida, o soldado apanhava sem dó nem piedade dentro daquele camburão já abarrotado de estudantes.

Dentro da Fafi, a contusão estava longe de acabar. Os estudantes, seguindo à risca os conselhos de Calabar, lançavam sobre os soldados tudo que encontravam ao alcance das mãos, apanhando barbaridade e batendo do jeito que dava. Do terceiro andar, uma garota arremessou uma pesada máquina de escrever Remington, cuidadosamente apontada para a cabeça de um soldado que, naquele instante, batia com fervor seu cassetete nas costas de um rapaz deitado no chão do segundo piso. Ela achou genial a maneira como a máquina aterrissou, mas ficou deliciada mesmo foi com o efeito que provocou, bem superior ao que esperava, mas não lhe sobrou tempo para maiores apreciações, sendo violentamente agarrada pelos fartos cabelos louros, depois chutada e bombardeada por consecutivas borrachadas, entrando em coma em meio ao pensamento de que tudo aquilo era uma tremenda injustiça. Assim, não lhe foi possível ver o mesmo soldado que a enchera de bordoada descer os três andares de cabeça para baixo, lançado que foi por dois estudantes bastante  corados pelo esforço e por um abominável sentimento de vingança. Ronaldo já tinha sido apanhado e enfiado no mesmo camburão onde o diretor reclamava, naquele momento, da falta de consideração para com uma autoridade constituída, incapaz de entender que a desconsideração partia de uma autoridade que acabara de se auto-instituir. Gabriel fora parar em outro camburão e era um dos que mais bordoada aplicava naquele soldado que surgira ali dentro como que por milagre. Calabar correu oito quarteirões até se certificar de que ninguém o seguia. Joceli conseguiu se trancar dentro de um banheiro, onde foi descoberto à noite pelo vigia, profundamente adormecido sobre a privada.

Mais cedo ou mais tarde todos acabaram dando seu testemunho sobre aquele primeiro dia da ditadura, de uma forma ou de outra, segundo os exageros ou a modéstia de cada um.

O único que nada pôde dizer foi Amadeu, mas todos acabaram sabendo que, no mesmo instante em que o pau comia solto dentro da Fafi, ele desfrutava de um magnífico milk shake na Confeitaria e Sorveteria Pingüim, próxima ao Teatro Glória, enquanto tentava imaginar o que estariam fazendo seus companheiros.

 

Escritos de Vitória – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal: Paulo Hartung
Secretária Municipal de Cultura e Turismo: Silvia Helena Selvátici
Sub-secretário Municipal de Cultura e Turismo: Rômulo Musiello Filho
Diretor do Departamento de Cultura: Rogério Borges de Oliveira
Diretoria do Departamento de Turismo: Rosemary Bebber Grigatto
Chefe da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim: Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias: Elizete Terezinha Caser Rocha
Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial: Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão: Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla
Capa: Vitória Propaganda
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer
Impressão: Gráfica e Encadernadora Sodré

 

Fonte: Escritos de Vitória, nº 16 Movimentos Sociais, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – PMV
Texto: Antonio Carlos Neves
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2018

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