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Vasco Coutinho – Por Serafim Derenzi

Vasco Fernandes Coutinho

Entre os agraciados por D. João III, na distribuição de capitanias, o nosso donatário é, sem dúvida, um dos tipos mais interessantes. De fortuna mediana, fidalgo da casa real, sem fazer parte da corte como Martim Afonso de Souza, Pero de Góes, João de Barros, Aires da Cunha e Duarte Coelho, deveria gozar de prestígio apreciável na sua quinta de Alenquer. Porque, mesmo distante das intrigas palacianas, na sua vida tranqüila de herói em repouso, mereceu ser lembrado na partilha do Brasil. Surpreendido com a donataria, não se perdeu em prudência e temores. Obteve com o monarca a nau "Glória", com munições e mantimentos, em troca da tença de 30.000 (1) reais. Vendeu a quinta, reuniu sessenta colonos, entre eles dois nobres degredados D. Jorge de Menezes, (2) D. Simão Castelo Branco e enfunou as velas.

Aventura de doido para um homem já encanecido. Renúncia voluntária ou sacrifício estóico. Carlos Malheiro Dias assim se refere: "Vasco Fernandes Coutinho confiara demais no seu prestígio e nos seus dotes militares. Mas o Brasil não era as Índias. O imprudente otimismo de que deu provas parece demonstrar que não estava compenetrado dos riscos e das dificuldades do empreendimento a que se atrevera". Era um arrojado cavalheiro medieval, daqueles que se dispunham à luta sem medir os inimigos. Na frase do magnífico pesquisador da Torre do Tombo "ele é, sem dúvida, uma das mais interessantes figuras da dramática história do feudalismo brasileiro".

Quem poderá reconstruir, com fidelidade, as cenas dos primeiros dias dos nossos colonizadores? Quem descreverá a angústia de Coutinho, magnânimo e cavalheiro, naquele complexo de descontentamento e desânimo, de intrigas e maledicências, permeadas de investidas dos botocudos, traiçoeiros, e dos goitacazes invencíveis? A espada vencedora de Malaca, a coragem indômita, que o armou cavalheiro para combater elefantes, anematizaram-se ao clima do Penedo, (*) secular e carrancudo.

Vasco Coutinho não foi o amolecido degenerado das crônicas mal avisadas, nem tão pouco um mistificador, que tramava contra a coroa. Pretendeu criar uma civilização baseada no princípio da igualdade. Nos moldes com que foi agraciado por D. João III, premiava seus companheiros por antecipação. Erro psicológico daqueles, que se afoitam em agradecer a ajuda antes de findar de todo a tormenta. Boa fé medieval, que se perpetuou no povo capixaba.

Quem era esse cavalheiro, "já entrado em idade", que se arriscara a abandonar sua quinta alentejano, depois de enriquecido, coberto de glórias e honrarias, invejado de seus amigos e vizinhos? Que o seduziria num continente distante, cujos perigos escapavam à previsão humana?

A costa sobre a qual devia contar suas cinqüenta léguas, que "entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme a dentro, tanto quanto puderam entrar e fôr de minha conquista" (3) nem ao menos fora descrita pelas esquadras de reconhecimento, aprestadas por D. Manoel. O litoral, marcado com os acidentes geográficos, só pôde fornecer os pontos extremos para delimitar o começo e fim da capitania. Vasco Fernandes Coutinho aceitou no escuro verdadeiro presente de grego. Tinha merecimentos e muitos para ser agraciado. É o próprio monarca que o afirma na carta de doação: "esgoardando eu os muitos serviços que Vasco Fernandes Coutinho, fidalgo de minha casa e de El Rei, meu senhor e pae, que a Santa Glória haja, e a mim tem feito, assim nestes reinos como em África e nas partes da Índia, onde serviu em muitas causas que nas ditas partes fizeram, nas quais deu sempre de si boa conta...". Legítimo atestado de idoneidade moral e de eficiência lhe passa D. João III na famosa carta régia.

Foi o desejo de servir ao amo e a vaidade de juntar mais um troféu, que teriam levado o ex-alçaide de Ormuz a enfrentar tão difícil empresa? É certo que ele não a solicitara, nem ninguém por ele. Aceitando a capitania, como prêmio aos serviços prestados, dispôs-se-a povoá-la por amor aos seus brios militares.

Desacautelado e de pouca temperança, como atestam os cronistas coevos, transformou-se de herói de batalhas em pioneiro e mártir do povoamento espírito-santense. Tudo sacrificou: cabedais, que não eram poucos, honra, família e lazeres merecidos, num cometimento, cujo resultado era por demais duvidoso. Mas quem se habituou, desde moço, aos azares da guerra, movido pela volúpia do perigo e pela angústia da aventura, não se acomoda à vida estática dos campos. Os frutos da terra são dádivas da natureza, que obedecem às leis do clima e das estações. O guerreiro, mesmo quando cansado, guarda no subconsciente uma centelha capaz de reanimar-se ao sopro de uma proeza em perspectiva. Um trato de terra, do tamanho de um reino, povoado de infiéis, com prerrogativas de príncipe feudatário, embriagaria o mais austero cidadão castigado pelos anos e enobrecido pela prudência.

A capitania, perdida nos confins do oceano ocidental, se valia como prêmio, mais o seduzia por exigir-lhe sacrifício dignificante: propagar a fé e obedecer ao impulso irresistível de seu temperamento. Linhagem não lhe faltava, muito menos disposição para servir ao reino. Não é só o monarca que o afirma "esgoardando" a chancelaria. O Padre Vasconcelos, nas suas "crônicas", escreve "fidalgo de igual valor e nobreza dos mais ilustres e antigos solares de Portugal".

Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, em Ordem Seráfico, não foi muito feliz, quando admite que Vasco Fernandes Coutinho tenha "servido na guerra desde 1521 até provavelmente 1532, quando voltou ao reino". As batalhas em que Vasco Fernandes Coutinho pelejou, sob o comando de Afonso de Albuquerque, feriram-se antes de 1515, pois a 16 de dezembro daquele ano morria o grande soldado lusitano, conquistador do Oriente, nas águas de Goa, a bordo da caravela, que o reconduzia para a pátria. Um traumatismo por certo o vitimou, quando fora substituído por Lôpo Soares de Albergaria, seu inimigo pessoal, que o vencera nas graças junto a D. Manoel, o Venturoso em desfrutar o apogeu do reino, e, forte na ingratidão com que esquecia os feitos de muitos dos seus validos destemerosos.

Gaspar Corrêa, em "Lendas da índia", página 175, referindo-se a Vasco Coutinho, classifica-o, em 1510, de "homem bem mancebo". Levantava um mouro do cavalo com a ponta da lança, atirava-o ao chão e montava o infiel, descreve Eleine Sanceau. (4) Foi em 1511, na tomada da Moluca, que Vasco Fernandes enfrentou uma carga de elefantes com as trombas esgrimindo espadas. Para se refazer, saiu a comandar, a mando de Albuquerque, um navio de guarda no estreito de Maloca. Em 1514 está de novo nos índias, em Diu provavelmente, para aparecer no ano seguinte em Ormuz, onde foi alcaide. No porto de Tomou, vamos encontrá-lo em 1524, reunido ao irmão Martin Afonso de Melo Coutinho e Duarte Coelho, o futuro donatário de Pernambuco. Quando terá voltado ao reino esse novelesco soldado, marinheiro "estouvado e irresponsável como qualquer traga mouro que compunha o grupo de Albuquerque? Pela carta régia de D. João Ill de 1º de dezembro de 1529, mandando ao juiz, vereadores e oficiais da Vila de Alenquer que não coajam Vasco Fernandes Coutinho a pagar a cisa de 28.000 reais, (5) pela compra da quinta, sabe-se que está na metrópole. No ano seguinte os biógrafos dizem-no na África a praticar proezas contra os beduínos. Parece que, depois de 1532, de acordo com o franciscano cronista, só deixou o reino pela capitania brasileira, onde os fados dele se descuidaram em vida para gravar-lhe o nome na perpetuidade da história.

Pedro de Azevedo, no resumo erudito dos "Primeiros Donatários", da maravilhosa obra coordenada por Carlos Malheiro Dias, nos oferece preciosos dados acerca do fundador do Espírito Santo. Em "Terra de Goitacá", Lamego, com o habitual critério de cientista probo, estuda também o famoso e vizinho prestante de Pero de Góis. Em recente publicação, cheia de informes, Elaine Sanceau, (6) romanceia Vasco Fernandes, trazendo-o quase ao vivo ao nosso século. Os capixabas, Costa Rubim, Basílio Daemon e o nosso contemporâneo Mário Freire não nos oferecem documentos opinativos de que o donatário tenha embarcado com sua família para o Espírito Santo. Não parece provável que ele o tenha feito. Dona Maria do Campo, padroeira da igreja paroquial de São Pedro de Arifama, em Santarém, (7) se tivesse vindo à Capitania do marido, teria com certeza praticado atos, que a assinalariam pelo espírito religioso. Os Jesuítas ou os Franciscanos, minuciosos como sempre em relatar atos de benemerência dos donatários, por menores que fossem, teriam mencionada em suas cartas preciosas.

Dona Maria do Campo, esposa legítima de Coutinho e mãe dos filhos do casal, Jorge e Martim Afonso de Melo, não deve ter pisado o território do Espírito Santo. (8) Na carta de Antônio de Barros, provedor da Fazenda, escrita em Salvador, em 1551, dá notícias de Jorge de Melo a bordo de um navio, às voltas com piratas franceses. Mem de Sá, em 1560, encontra três filhos de Vasco Coutinho, "moços e sem barba", combatendo os índios. Ora, um maço sem barba, mas já combatendo, deve ter pelo menos dezoito anos. Quando Mário Freire (9) diz que a escritura de cessão da Ilha de Santo Antônio não teve a outorga de D. Maria faz-nos duvidar se, nessa época, Coutinho já se havia casado. Os três filhos combatentes foram os de D. Maria do Campo e o de Ana Vaz, legitimado e talvez preferido por Coutinho.

Devemos admitir que Jorge de Melo e Martim Afonso, homônimo do tio guerreiro, vieram ao Espírito Santo e tenham voltado para o reino e ali falecido, ainda moços, antes do capitão-mor, porque a capitania, com a morte do primeiro donatário, coube ao filho de Ana Vaz, sucessão só admissível, de acordo com a licença régia, na falta de filho legítimo. Era Vasco Fernandes Coutinho filho de Jorge de Melo, o Lágio, e de Dona Branca Coutinho. Dos seus três irmãos, todos fidalgos, Diogo e Manuel de Melo Coutinho, só de Marfim Afonso há notícias (10), quando embarcou no porto chinês de Tamou e se reuniu em Malaca ao seu irmão e a Duarte Coelho, pouco antes de 1524, onde guerreavam em batalhas perigosas.

 

NOTAS

(1) " ... e trocou ainda, em virtude do alvará de 27 de junho de 1534, uma tença 30.000 reais mensais por um navio e munição para a expedição do Brasil". H. C. P. B. - Vol. III. Essa tença vitalícia equivaleria hoje a cem mil cruzeiros por mês pouco mais ou menos, embora difícil de ser calculada.

(2) D. Jorge de Menezes, filho bastardo de D. Rodrigo de Menezes, foi degredado para o Brasil por matar a Gaspar Pereira, capitão da fortaleza de Molucas. Idem, idem. Castelo Branco não figura na nobiliarquia lusitana dessa época.

(*) O Penedo foi chamado pelos portulanos de Pão de Açúcar.

(3) Da Carta de Doação da Capitania. M. Freire.

(4) Elaine Sanceau. "Capitães do Brasil."

(5) Pedro Azevedo. "Primeiros Donatários". H.C.P.B. Vol. III.

(6) Elaine Sanceau. "Capitães do Brasil". Livraria Civilização-Porto.

(7) Cezar Marques. "Dicionário H.G.E.S.

(8) Cezar Marques fala em 4 filhos, sendo uma mulher. Admito que Fernandes Coutinho se tenha casado por volta de 1532.

(9) "A Capitania do Espírito Santo”.

(10) ... já em remotos palcos se representavam outras tragédias, como a de Martim Afonso de Melo Coutinho no porto chinês de Tamou, onde o acompanharam, com vários capitães, dois futuros donatários do Brasil, seu irmão Vasco Fernandes Coutinho, e Duarte Coelho, que se lhe reuniram em Malaca. H.C.P.B. VIII, pág. 12.

 

Fonte: Biografia de uma ilha, ano 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2015

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