A Casa do Navio
Fonte:
Trança
Autora: Marilena Soneghet
“E
la nave va...”
“C’era uma volta um piccolo navio
che non sappeva, non sappeva navigare...”
Onde está a nave de enfunadas
velas que abrigou meus devaneios de menina aventureira? Minha
nave erguia-se imponente à beira do mar. Como uma grande
barcaça em repouso, embalada pelo marulho das ondas
e o vento norte, vento forte, cheirando a maresia e sal.
Não; não era “piccola”; era grande,
enorme, e para navegar bastava-lhe um sonho.
Tinha coração a minha nave. Um coração
impetuoso, turbulento e terno.
Foi assim: havia grandes espaços abertos – o
areal, a restinga, pedreiras com seus cactos em flor e paus-de-pita.
Muita pitanga, amoras silvestres, cajus, goiaba vermelha,
branca, goiaba bichada, para todo gosto. Os guruçás
festejavam as noites de lua (milhares deles). Noitinha chegando,
o programa era pegar Tatuí no vaivém das ondas.
Programa que acabava em “fritada”.
Era a Praia da Costa dos anos cinqüenta – onde
não passava ônibus mas passava boi, passava boiada,
solta e livre.
Poucas casas havia e tão espalhadas que não
ocupavam lugar. Na praia da Sereia, algumas casas de veranistas,
pitorescas casinhas de pescadores cujo jardim era a areia
da praia, florida de barcos e redes e molecotes morenos, espertos,
felizes. O Clube dos 40, na ponta da praia, tinha um certo
charme. Mais longe, numa enseada tranqüila, a casa do
governador (naquele tempo Carlos Lindenberg), sempre aberta
às nossas visitas e serenatas.
Uma estradinha de terra, esburacada, levava a Vila Velha.
Eu vivia por lá; eu e Paíco-meu-primo. Primos
siameses – onde estava um estava o outro; onde estava
o outro estava um. E nós três – ah, sim;
a terceira personagem era Kilu, a cachorrinha bassê
– conhecíamos cada grão de areia, cada
forquilha de goiabeira, cada camaleão e rolinha.
Um belo dia, estávamos eu, Paíco e os filhotes
da Kilu que faziam então suas primeiras excursões,
a deambular por ali, e eis que nos surge, de supetão,
um homem grande e cheio de braços, falando uma mistura
de italiano com português. Todos os braços gesticulavam
e a voz comandava o vento. Atrás dele uns homenzinhos
de prancheta na mão e instrumentos topográficos
tomavam sérias medidas em cima, em baixo e em torno
da indiferente estradinha. Era tudo interessantíssimo
e nós não podíamos perder esta.
Logo fomos notados:
- Eh! Bambini, venite quà! Ma come, come vi chiamate?
Che bei cani! Voglio comprare uno...
Foi amor à primeira vista entre nós, ele e os
cagnoletti. Batizou-nos de Paípa e Marinella,
e os dois cachorrinhos com os quais o presenteamos receberam
os nomes de Gin e Whisky. Estava selada nossa amizade.
Desse dia em diante éramos a sombra do Nicola –
sim; Nicola Campanelli – o engenheiro italiano contratado
para asfaltar a até então humilde estradinha
da Praia da Costa que tantos banhos de lama nos dava nos tempos
de chuva. Até hoje eu adoro o cheiro de asfalto quente
que me reporta àquela época em que eu, Paíco
e o Dr. Nicola asfaltamos a estrada. Andávamos de trator,
nos pendurávamos nos guindastes, empurrávamos
tonéis, salvávamos bezerros e pássaros
atolados no asfalto derramado.
Mas se nós já não podíamos viver
sem o Campanelli, ele também tampouco nos dispensava:
- Marinella, Paípa, venite! Andiamo a vedere la casa.
Porque também construímos a casa. A casa-navio.
A grande nave que despertaria meu coração navegador.
Pedra por pedra, tijolo por tijolo, garrafa por garrafa...
Como? Garrafa? Sim; que a fachada da casa foi decorada com
fundos de garrafa: verde-oliva, caramelo, marrom-chocolate.
Contra a luz transluziam coloridos. A casa, curiosíssima,
tinha a forme de um navio. Tinha vigias (janelas redondas)
e bem no alto a “cabina de comando”, uma torre
oval. Vidraças em lugar de paredes proporcionavam magnífico
panorama sobre o verde do mar e o verde da vegetação
à volta por onde navegava nossa nave de sonho.
Dentro, tudo moderno. O banheiro de azulejos pretos e espelhos
em profusão e, no fundo, entrando-se por uma grande
arcada, uma banheira-piscina oval e, nas paredes, afrescos,
onde brincavam anjinhos pelados (se bem me recordo, obra do
Massena). Tudo era fascinante!
O Campanelli era um tipo sui generis; alegre entusiasta, espalhafatoso,
vozeirão dominante, generoso e terno, impulsivo e violento.
“Um vero italiano, ma chè!”
Subia na mesa, cantava uma ária, gesticullava
e ria, ria deverasmente com gosto, como poucas vezes vi. Era
o coração pulsante, vivo, anelante de nossa
linda nau. Nossa sim; tudo era um pouco meu: - “Marinella,
questa è la sua camera..” “Un giorno ti
por teró com me in Italia; - tu e Paípa.”
Eu acreditava em tudo. O Nicola me levaria aos astros se quisesse
– ele era grande como o mundo.
“C’era uma volta” uma nave de sonho.
Para muitos um ponto turístico – a casa-navio
– atrativo curioso que algum maluco bolou.
Para mim, um símbolo, um “ricordo” –
uma saudade. “C’era uma volta...”
“E
la nave va.”
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