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Vitória era assim

Vitória no século XIX - Pintura do acervo Solar Monjardim

Há cem anos atrás, a capital da província do Espírito Santo, muito embora já gozasse dos foros de cidade, não passava de um povoado cuja resistência aos hábitos e tradições coloniais entravava o progresso. Sua população pouco excedia a cifra de cinco mil habitantes, vivendo a maioria com o produto da pesca e avassalada pelo marasmo e a indolência.

Sem obedecer a qualquer regularidade ou simetria, Vitória se apertava em anfiteatro, à margem de plácida baía, ruazinhas estreitas, tortuosas, escorregadias, procurando o paralelismo da praia, ou subindo as rampas do morro desbeiçado pelas enxurradas e enfeitado pelas ramas de melões-de-são-caetano, perdendo-se em becos ou vielas ladeirosas e labirínticas.

Ruas ou ruelas, algumas apertadíssimas, tomadas pelo vicejante capim-pé-de-galinha, calçado ou não, com pedras disformes, como a Ladeira do Pelourinho, ao longo da qual não passavam três homens em linha de frente, famosa por nela ter morado, outrora, em um sobrado, a heroína Maria Ortiz, que fizera recuar os holandeses, jogando sobe eles água fervente. Ruas dos Pescadores, da Capelinha, do Comércio, do Porto dos Padres, de Santa Luzia, da Fonte Grande, Ladeira de Pernambuco, Largo da Conceição, Pelame e a pitoresca e modesta rua da Várzea. Na rua das Flores, outro vulto da história capixaba, o herói Domingos Martins, cabeça da Revolução Nativista Pernambucana de 1817, vivera parte de sua infância. Ah! eu já me ia esquecendo da rua do Ouvidor, antiga rua da Praia, que, nem ao longe, pelo aspecto modesto, podia fazer lembrar a sua homônima da Corte, e a rua do Piolho...

As casas, em grande parte assobradadas, algumas com janelas de vidraças em cores, balcões de madeira e portais de pedra, entalhados em Portugal, trazidos como lastro dos navios, casas ou choupanas, cabriteavam em desordem a encosta, repousadas em esteios suplementares, em estacas, ou sobre velhas bases de alvenaria.

Nos telhados limosos, telhas em canoas, e nos seus beirais, chilreavam as cambaxirras, revoluteavam as andorinhas, cresciam plantas audaciosas, adubadas pelos urubus (os mais eficientes “funcionários” da Limpeza Pública), que se postavam a cavaleiro, no convexo das cumeeiras, abrindo as asas para se requentar ao sol.

A vista da baía era sempre agradável, especialmente quando postado o observador mais de longe, para abarcar o conjunto emoldurado pelo verde da vegetação; o extenso mangal da preamar; as fruteiras das chácaras e dos pomares e a mata que vestia os elevadiços.

Desembarcava-se no Cais das Colunas, situado abaixo do Palácio da Presidência; no da casa do Azambuja; no Cais Grande, onde atracavam as sumacas; ou no Cais do Santíssimo, do Batalha ou o Porto dos Padres.

Em plano de destaque, projetava-se a principal construção, o antigo Colégio dos Jesuítas, grande quadrilátero, liso, de dois pavimentos, adaptados para Palácio da Presidência. Comportava a respectiva Secretaria; um colégio de instrução literária, o Liceu; a Tesouraria da Fazenda; a Administração do Correio; o Armazém de Artigos Bélicos e a Biblioteca Pública; mas estava em estado deplorável: telhado esburacado e cheio de goteiras; teto, pavimento e paredes muito sujos; portas sem chaves e móveis estragados. “Pareceu-me, quando entrei por ele – relatou o Presidente Veloso – que era uma casa desabitada, há anos, está impróprio para ser ocupado por qualquer pessoa que tenha tido um pouco de educação...

O edifício da Alfândega, cuja renda, por sinal, era pequena, realçava em modestas proporções.

Mas eram as igrejas, pelas posições sempre em destaque, que constituíam os melhores pontos de referência à mirada panorâmica. A de S. Tiago, embora de arquitetura de medíocre interesse, contígua ao Palácio, marcava, com o zimbório curvilíneo da sua torre maior, o histórico e venerável local do sepultamento do taumaturgo Anchieta. À sua frente, situava-se a igreja da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, o único hospital em toda a Província. Não muito afastadas, nos pequenos largos e praças, além dos conventos franciscano e carmelita, outras igrejas salpicavam os morros.

Já Marcelino Duarte, ao rever aquela terra natal, escrevera:

“...Surgindo da flor d’água lentamente
Vai a linda cidade da Vitória,
Que vista pitoresca!
Um montão de edifícios
Cobre a rasa colina!
De sobre os edifícios se levantam
Quatro torres da alegre perspectiva
Parece ver ao longe
As famosas cidades
De Tebas ou de Tróia”.

Quanto às condições de vida e higiene, desnecessário se faz referir à abundância do peixe, pois havia uma indústria da pesca desenvolvida, com duas dezenas de lanchas que iam pescar em alto-mar, nos Abrolhos e em Cabo Frio, demorando-se dias para regressar ao porto trazendo os peixes salgados. A carne verde, porém, escasseava, pois as reses sacrificadas nunca satisfaziam o consumo. Havia uma padaria explorada por um cidadão francês, o Sr. Penaud, mas o pão do pobre, não dizer, o lastro da sua alimentação, era a farinha de mandioca ou o fubá de milho.

Farmácias só havia três, geralmente mal sortidas, sendo uma da Santa Casa. O “safa-onça” eram as boticas homeopáticas, dos curiosos.

A água do abastecimento, de boa qualidade, captada em mananciais da ilha, vertia nas fontes da Capixaba e Lapa, situava onde se cruzam hoje as ruas Coronel Monjardim e outro no Largo da Alfândega.

Assim as cantou o mesmo poeta:

“... Bebo as águas puras da Capixaba e Lapa.
Bebo o santo licor das duas fontes,
Que a natureza formou e inda conserva;
Não bebo as águas nascidas
Das patas do cavalo”.

Além de outra, havia ainda a Fonte Grande, que se situava onde se cruzam hoje as ruas Coronel Monjardim e Sete de Setembro.

A iluminação pública era feita com sessenta e oito lampiões com candeeiros a azeite de sebo, azeite de “carrapato” ou óleo de peixe: insuficientes para bem servir às trinta e uma ruas, sete ladeiras, oito becos, quatro praças e outros tantos largos, formados pelos trezentos e setenta sobrados e setecentas e tantas casas térreas. Valia como um esforço da administração, a qual despendia soma muito além do orçamento, subindo as despesas acima de oito contos de réis por ano.

Acendiam-se os lampiões pouco antes do anoitecer (pelo regulamento, um quarto de horas antes) e nas noites de lua, sob pena de multa de um mil réis por lampião apagado, também por um quarto de hora devia ser mantida a iluminação, até que o luar aparecesse...

O correio para a Corte era feito de cinco em cindo dias tornando-se mais regular com o estabelecimento das linhas de vapores das Companhias Espírito Santo e Mucuri. Dois paquetes: São Mateus e Mucuri, realizavam viagens mensais ligando Vitória, Caravelas e Rio de Janeiro, com paradas nos portes de atracação intermediários. Quarenta mil réis pagavam o preço de uma passagem em camarote ou à ré, podendo-se fazer acompanhar das mucamas e escravos, abrigados no convés ou em camarote à proa, pela metade dessa quantia, e das crianças de menos de cinco anos, sem pagar passagem.

Os divertimentos da cidade, a despeito da índole pacífica e folgazã do povo, rareavam. Verdade é que não faltava, nas casas dos caboclos e dos índios civilizados, uma viola para as modinhas e os desafios e os pretos escravos não perdiam os lundus e jongos, ou uma oportunidade para amortecer o coaxar dos sapos com batecum do ticumbi, levado até os ancoradouros quando chegava um vapor.

Já a classe média se entediava com mais facilidade e procurava contribuir para a animação das festas religiosas que, em certos meses, como o de maio e junho, eram muitas. Festas do Divino Espírito Santo, de São Benedito dos Caramurus, de N.S. dos Remédios, do Santíssimo Sacramento, de N. S do Carmo ... tantas em uma só quinzena!
Na rua da Praça Nova, nº 3, havia a tipografia Capitaniense, de Pedro Antônio d’Azeredo, onde era impresso o bissemanário – Correio da Vitória – (saía às quartas e sábados). Tiragem diminuta, por isso as suas preciosas coleções se perderam.

As pessoas de cultura davam o seu apoio ao teatrinho 7 de julho, influência do capixaba João Manuel de Siqueira e Sá, estimulando os amadores na encenação de peças, enquanto a assistência superlotava a pequena e sufocante sala de espetáculos. Ms, por vezes, se consideravam como exilados, mesmo o presidente da Província, o Dr. Pedro Leão Veloso, o qual escrevia no seu primeiro relatório: “...tenho gostado acho-a sumamente atrasada em todos os sentidos; vive-se mal porque sobre ser a vida muito cara falham todas as vantagens de um país civilizado”.

Em tais circunstâncias, é fácil imaginar com que alegria e entusiasmo foi recebida a notícia da anunciada visita de Suas Majestades Imperiais ao Espírito Santo.

 

Livro: VIAGEM DE PEDRO II AO ESPÍRITO SANTO, 1980
Autor: Levy Rocha

Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2012

 

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