A cidade, a imagem: Identidade e Cultura locais
O ato de atribuir nomes a lugares, que em primeira instância pode parecer uma simples forma de identificação, possui forte significado simbólico. Nas palavras do urbanista e especialista em pesquisas em psicologia do ambiente urbano Kevin Lynch, esses atos “confirmam um poder de domínio”. Constituem-se portanto em um código para designar apropriação dos lugares , uma vez que o poder de nominar pressupõe poder sobre o espaço. A prática de re-denominação é bastante conhecida e foi largamente utilizada pelos colonizadores europeus que, ignorando os nomes já atribuídos, frequentemente mudaram nomes de cidades, morros, montanhas, rios, cachoeiras e até mesmo plantas, caracterizando um ato de soberania e propriedade sobre o território conquistado. No Brasil muitos nomes indígenas desapareceram para dar lugar a nomes atribuídos pelos colonizadores portugueses, holandeses ou até mesmo britânicos.
Gostaria de após esta breve introdução chamar a atenção para um aspecto da identidade de Vitória, que como muitos outros em nossas cidades, pode estar se perdendo por estar se distanciando e se apagando da memória de seus cidadãos.
O poeta que ao contemplar o casario plantado nas encostas matizadas e emolduradas pelo verde das árvores e os blocos de granito, à noite ressaltados por intermitentes e esparsos pontos luminosos das poucas casas ali assentadas, talvez não pudesse imaginar a transformação que teria a cidade presépio que tão adequadamente apelidara. Elmo Elton, ao retratar a agitação da vida e as mudanças na geografia e de população em Vitória, já nos anos 60, lamentara a perda dessa “identidade de cidade presépio antes tão querida por seus habitantes e turistas”. Segundo Elton, a cidade presépio, a ilha do mel, poderia já estar se transformando em selva de pedra.
É claro que a imagem da cidade presépio ainda existe. No entanto, essa imagem tem sido pouco a pouco desfigurada pelas diversas transformações efetuadas em sua geografia. É neste momento que a preocupação em preservar aspectos particulares e representativos de um lugar deveria se apresentar de forma mais contundente.
No Brasil, é mais comum que os logradouros públicos ou outros espaços de uso coletivo recebam nomes de personalidades públicas do que nomes que definam algum aspecto físico-geográfico, ou relacionado ao passado destes espaços, diferente do que usualmente acontece em outras culturas. No entanto, rua do Mercado, da Imprensa, da Ferradura, do Braço, da Esperança ou do Poço, continuam existindo, e são exemplos frequentes de nomes de ruas que, em qualquer lugar do país, ressaltam aspectos da história ou da geografia destes logradouros. Esses nomes puderam sobreviver por deterem forte significado simbólico e valor inerente ao processo cultural de reconhecimento e identificação, quanto às experiências das pessoas nesses espaços. Foi com esse espírito que o poeta apelidou Vitória de cidade presépio.
Ao estudar a vida nas ruas dos bairros de São Pedro e Bairro República em meu trabalho de doutoramento concluí que a identidade que residentes desenvolveram para com os espaços de suas casas, estava associada a apropriação e controle que percebem que detém desses espaços, também adquirido pela denominação dessas ruas.
Tem sido prática usual de nossos políticos e dirigentes alterar nomes de logradouros ou outros espaços de uso coletivo para prestar homenagem a alguma personalidade de sua escolha, sem o aval da população local. Em ambos os bairros mencionados, a autoridade inerente ao ato de nominação por parte dos vereadores, resultou em um estéril exercício de poder pela recusa dos residentes em aceitar e usar os novos nomes atribuídos às suas ruas. Como a população residente não é detentora legal desse poder, o ato de ignorar os novos nomes e continuar usando os antigos constitui uma simbólica e silenciosa forma de protesto representando uma forma de poder exercido de factum.
Exemplos dessa forma de protesto são encontrados em todo o país. Muitos nomes atribuídos a lugares, por não corresponderem às imagens daqueles que se apropriam desses lugares e não se enquadrarem ao processo cultural de reconhecimento e identificação dos espaços, jamais encontram eco ou suporte nas experiências das pessoas nesses espaços, portanto quase nunca são lembrados e, muitas vezes desconhecidos e até desconsiderados. Quem consegue identificar o Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, o Estádio Mário Filho, a Ponte Presidente Costa e Silva, a Ponte Deputado Castelo Mendonça, o Campus Alaor Queiróz de Araujo, a Escadaria Bárbara Lindenberg ou a Praça D. Luiz Scortegagna? Todos certamente identificam o Parque do Flamengo, o Maracanã, a Ponte Rio Niterói, a Terceira Ponte, o Campus de Goiabeiras, a Escadaria do Palácio e a Praça da Catedral.
Não que exista qualquer intenção ou ameaça por parte das autoridades em se alterar o apelido de cidade presépio atribuído a Vitória. A questão que se coloca relaciona-se principalmente à possibilidade de perda dessa imagem, Esse risco existe, e pode ser, em grande parte, creditado à falta de sensibilidade ou compreensão de alguns de nossos políticos, dirigente e empresários em reconhecer seu real valor e significado, de primordial importância para a identidade e cultura locais. Do ponto de vista da ocupação do espaço urbano em Vitória pouco ou quase nenhuma preocupação pode ser percebida no sentido de se preservar essa sua identidade. Quando não são os novos e altos edifícios que escondem as encostas, é seu verde que está ficando escasso ou já passa a não mais existir, ou são seus pontos luminosos que deixam de ser esparsos... e assim, a imagem vai sendo descaracterizada e a cidade presépio de desfigurando.
Os fatos acima indicam como verdadeiro que os aspectos que melhor representam ou qualificam os valores de um povo ou os significados que atribuem a um lugar são os mais adequados para representá-lo ou defini-lo. Parece ser também verdadeiro que devamos tentar salvaguardar imagens de nosso passado já que essas constituem nossa história. É também de suma importância que percebamos que imagens como selva de pedra podem vir a ser tão fortes e suficientemente representativas e, já podem estar se sedimentando na memória de muitos cidadãos, vindo a colocar em risco a imagem de cidade presépio, que ao ser substituída, pode passar para uma galeria de imagens que já não fazem mais sentido, uma galeria de imagens perdidas, jamais lembradas.
Ao que parece, é ainda a cidade presépio que temos na memória, é ela que valorizamos e amamos, é dela que nos apropriamos, é onde nos identificamos e nos vangloriamos poder viver. É a imagem, a cidade que queremos e devemos pretender preservar.
Por: José Francisco Bernardino Freitas
Livro: Escritos de Vitória. 18 - Cidade Presépio, 1997
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2012
GALERIA:
Sua origem em nossas praias se deu com veemência na Praia de Copacabana. Os postos viraram “points”. Logo, essa tendência se espalhou pelas praias brasileiras
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