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A gripe espanhola – Por Jair Corrêa

Congresso Legislativo, na Rua Pedro Palácios, Vitória 1911

A Gripe Espanhola surgiu em 1918, mais ou menos. Logo após a Primeira Guerra. Foi uma lástima. Era uma febre que, por ser proveniente da Espanha, recebeu o nome de Gripe Espanhola. E ela se alastrou pelo mundo todo. Era uma epidemia generalizada. As pessoas pegavam a febre, ficavam amarelas, perdiam o apetite e raras eram as que escapavam com vida. Em 48 horas a pessoa estava morta. Nós lá de casa — a mamãe e seis filhos — tivemos muita sorte porque, apesar de estarmos sozinhos em Vitória (papai tinha ido para Campos), ninguém pegou a gripe.

Eu vi muita gente morrer nessa época. Eram tantos os mortos que os corpos eram apanhados por carroças que passavam nas ruas. Não havia tempo para que os sepultamentos fossem de outra forma. Os corpos eram colocados sobre dormentes e daí levados pelas carroças.

Para espantar os mosquitos transmissores da doença, nós queimávamos muito enxofre. Para que as casas ficassem bem desinfetadas, eram colocadas grandes lonas que cobriam todas elas, em cima do telhado. As casas ficavam fechadas, lacradas e o enxofre era colocado em bandejas para ser queimado. Assim a fumaça não se dispersava, ficando mais tempo dentro de casa. A lona e a casa fechada ajudavam a desinfecção.

A gente ficava dentro de casa com aquela fumaceira toda. A desinfecção não era feita só à noite, era feita várias vezes ao dia. Além do enxofre, usava-se queimar, também, folhas secas de eucalipto. As folhas eram colocadas no quartos, sobre brasas, para queimar.

Morreram muitas pessoas nessa época. Parentes, vizinhos nossos, conhecidos. Muita gente. As escolas todas ficavam fechadas. Até as comunicações ficaram prejudicadas. Nós, por exemplo, ficamos seis meses sem notícias do papai. Praticamente nada funcionava. A única coisa que funcionava era a Cruz Vermelha. Aqui em Vitória havia uma entidade chamada "Damas de Caridade". A Dona Jacinta, por exemplo, é quem levava lá em casa maizena e algumas outras poucas coisas que, com muito sacrifício, chegavam para ser distribuídas à população. Isso porque o comércio nada tinha para vender. A Dona Jacinta era espanhola, conterrânea da mamãe, e era quem nos levava aquelas mercadorias.

Praticamente não havia nem remédio contra a doença. A gente tomava era chá de eucalipto e umas cápsulas amarelas, uns comprimidos que eram distribuídos à população. O comércio fechou, tudo ficou descontrolado. Esse descontrole atingiu o Brasil todo.

A epidemia desapareceu aos poucos. E não foi obra de remédio, não. Foi acabando aos pouquinhos. E esse drama durou bem uns seis meses, que foi o período que ficamos sem notícias do papai. Foi quando a mamãe resolveu ir a Campos para saber a situação dele e ele estava internado num hospital com a Gripe Espanhola.

Até hoje eu me lembro bem daquelas imagens fortes. As pessoas morrendo aos montes. Caídas no meio da rua, mortas. Não era expedido nem o atestado de óbito. O corpo era colocado na carroça e levado. Aquilo foi um arraso.

* * *

Quando eu estudava na Escola Modelo, aqui em Vitória, toda sexta-feira os alunos eram levados ao auditório e cada classe tinha que fazer uma apresentação. E aí os alunos recitavam, declamavam, enfim, participavam de alguma forma daquela apresentação. E, então, Dona Teresa Calazans, a minha professora, me disse: "Jair, sexta-feira você vai recitar". Nessa época eu tinha 9 anos. "E o que é que eu vou recitar?", perguntei. "A poesia é essa e você vai ter que decorá-la até lá", ela disse. E recomendou: "Vá para casa, peça ajuda à Chiquinha, à sua mãe, e veja se decora tudo direito".

E eu me embandeirei e fui recitar a poesia que se chamava "Rosa":

"Rosa colhia sozinha

Lindas rosas no jardim

Nas faces também tinha

Rosas cor de carmim

 

Cheguei e lhe disse:

Rosa, qual dessas rosas me dais

As das faces primorosas

Ou as que tendes nas mãos?

 

Ela fitou-me sorrindo

E de longe me respondeu:

Não dou-te as rosas das faces

Nem as que tenho nas mãos

Daria se me estimasses

As rosas do coração"

 

O nome do autor da poesia eu não me lembro mais. Mas da poesia eu nunca mais me esqueci.

* * *

Vitória nessa época — quando eu era menino — só tinha um pedaço do cais do porto, até mais ou menos ali na rua General Osório. Mas não existia o aterro que há hoje. O mar entrava na cidade, muito mais do que hoje. A região do Parque Moscoso já havia sido aterrada; foi aterrada por volta de 1912 em empreitada feita por Antenor Guimarães. Mas por ali não havia casa alguma. Era chamado de Cais do Porto, Cais de São Francisco, Cais do Padre.

As casas da cidade eram todas pequenas. De valor, mesmo, só o Palácio. Havia, também, alguns prédios próximos ao Palácio que até hoje existem como aquele que durante muito tempo abrigou a Biblioteca. A Catedral também existia, mas muito menor que a atual.

O bonde vinha da Vila Rubim, passava pela rua Jerônimo Monteiro, entrava na rua Sete, subia a São Francisco, José Marcelino, dava a volta por trás da Catedral e ia pela Pedro Palácios. E havia outra linha de Santo Antônio que ia até Jucutuquara e Praia Comprida. Mas na Praia Comprida havia muito pouca coisa. A única casa que existia lá era a do "seu" Teixeira. Era o ponto final do bonde. Dali para frente, não havia nada mais. Era lá que nós íamos aos domingos catar conchas. Lá existiam umas conchas azuis muito bonitas, enormes.

A Vila Rubim era chamada de "Cidade da Palha" porque lá só existiam barracas cobertas de palha.

Os navios não atracavam no cais. Eles ficavam no meio da baía. O serviço de cabotagem era feito por Mesquita & Cia e pelos marítimos. Os saveiros iam até os navios, apanhavam as mercadorias e traziam tudo para os armazéns.

As estradas de ferro eram a Leopoldina e a Vitória-a-Minas, mas os trilhos da Vitória-a-Minas só chegavam até Aimorés. Depois é que a linha foi prolongada até Governador Valadares. O primeiro trecho ia só até Natividade, que era o nome de Aimorés. O trenzinho saía daqui às 7 da manhã e chegava em Aimorés às 5 da tarde. A Leopoldina tinha um trem que ía até ao Rio. A gente saía daqui às 10h10min e chegava ao Rio às 8 da manhã do dia seguinte. Isso, mais ou menos, em 1920, 1921, 1922. Isso na época em que chegou a Vitória Sacadura Cabral, em 1921, 1922, quando das comemorações do centenário da Independência do Brasil. Sacadura Cabral e Gago Coutinho eram aviadores e, num mesmo avião, saíram de Portugal e foram os primeiros a atravessar o Oceano Atlântico por via aérea. Eles vieram de Portugal e fizeram escalas em Fernando de Noronha, Recife, Salvador, Caravelas, Vitória e Rio. Eles vieram num hidroavião. Foi uma grande festança a chegada deles.

Foi mais ou menos nessa época que entrou uma baleia na baía de Vitória. A baleia chegou com um filhote e foi o acontecimento do ano. Ela mergulhava em frente à Praça Oito e saía lá na Leopoldina. O Mesquita colocou lanchas para ajudar o animal a sair da baía e ele conseguiu sair. Todo mundo foi ver a baleia. Foi feriado na cidade. Uma festa inesquecível.

* * *

Aimorés, quando eu cheguei lá pela primeira vez, não tinha nem água encanada. A água era carregada em latões e despejada nas caixas das casas. Luz só havia entre 6 e 11 horas da noite, vinda de um único motor. Só depois é que foi construída a usina, o que normalizou o abastecimento de energia elétrica. Mas Aimorés não tinha nada. Tudo o que existia estava em volta da estação. O comércio forte da cidade era o café e a madeira. O colégio das irmãs e o hospital não existiam. Só algum tempo depois o hospital foi construído. E, em seguida, as irmãs chegaram e abriram o colégio, primeiramente num prédio alugado na avenida, próximo ao Neca Fagundes. O primeiro colégio das irmãs tinha umas três salas só. Depois o Frei Afonso construiu a igreja e, com donativos, construiu o colégio.

O Calhau & Cia trabalhava com café. A firma era de Ipanema e tinha um escritório em Aimorés. E depois a firma se mudou para Vitória, para o Palácio do Café. Foi quando o Isidoro se mudou para Vitória. Ele, nessa época, quis trazer a Vovó Delfina, mas ela não nos largou de jeito algum, quis ficar conosco lá em Aimorés.

João Campos era de Caratinga e tinha um comércio em Ipanema. E lá namorou e casou com a Alcina. Em Ipanema ele abriu uma casa comercial em sociedade com o José Cintra.

A Ana nasceu em Ipanema e estudou 8 anos em Leopoldina, num colégio de freiras. Depois que se formou ficou lá lecionando porque pretendia ser freira. Nisso, Dona Delfim, "seu" Laurindo, Isidoro e Alzira mudaram para Aimorés. Quando eu cheguei em Aimorés, só a Alcina e o João Campos moravam lá. Um ano depois chegou o resto da família da Ana. E o "seu" Laurindo logo faleceu. E quando faleceu, a Ana foi a Aimorés para o enterro, para a missa de 7º dia e foi quando a conheci. Ela ficou um tempo em Aimorés e voltou para Leopoldina. Até que ela foi de vez para Aimorés e nós iniciamos o namoro.

Elas — Vovó Delfim, Ana, Any — foram morar numa casa alugada. Antes disso Ana morou uns tempos na casa do Levindo enquanto não arranjava casa para alugar.

Nós namoramos uns dois anos e tanto, quase três anos. Mas era um namoro de conversas rápidas. Quando elas alugaram casa, que era ali perto do Calhau, quase em frente ao colégio das irmãs, mamãe foi visitá-las e eu pedi para que ela pedisse a Ana em casamento em meu nome. E foi ela quem pediu a Ana em casamento por mim. Mamãe, na época, morava na casa do Silvestre, aqui em Vitória, e ela esteve no meu casamento lá em Aimorés. O Nino estava no Rio e não pôde comparecer. Também lá esteve o pessoal daqui de Vitória, o Silvestre, a Anita, a Chiquinha, todo mundo. O meu casamento foi de manhã, teve missa com o Frei Afonso, e nós — eu e Ana — embarcamos às 10 e meia para Belo Horizonte.

 

Apresentação do Livro “Os Caminhos por onde andei” – Por José Carlos Correa

Foi durante as conversas que sempre tenho com meu pai que nasceu a idéia desta entrevista. Sempre gostei de fazê-lo recordar as passagens da sua infância e da sua juventude. É que percebi que essas recordações são por ele guardadas com muito carinho. Com admirável riqueza de detalhes ele descrevia os fatos, as datas, os cenários, os diálogos. E quando repetia alguma história meses depois, o fazia com notável precisão, com depoimentos rigorosamente iguais. Esse detalhe mostrava, com clareza, que suas recordações eram verdadeiras, rigorosas, fiéis, sem exageros ou omissões tão comuns nas conversas coloquiais.

Inicialmente planejei apenas gravar suas histórias. Queria guardar uma fita com aqueles casos mais conhecidos da vida de meu pai, que eu já tinha ouvido algumas vezes mas tinha sempre receio de esquecer algum dia. Ali estaria a sua voz, o seu jeito característico de falar, as suas memórias mais importantes, suas lutas, seus ideais. Seria, para mim, uma lembrança preciosa a guardar junto com os meus álbuns de fotografias.

Tudo combinado, passamos uma tarde inteira de um domingo de junho de 1988 a conversar diante do gravador ligado. E a medida em que ele falava, mais me convencia que estava diante de um documento importante. Porque enquanto a fita rodava, papai narrava com desenvoltura toda a sua vida, fluentemente, sem pausas, sem vacilações, sem o menor cansaço. E o que seria uma conversa despretensiosa, passou a ser uma entrevista comovente. Papai abriu seu coração, mostrou-se de corpo inteiro como realmente ele é: um homem de coragem, que viveu intensamente a sua época, que construiu uma vida de trabalho que é um exemplo e um orgulho para todos os que puderam compartilhar dos seus dias.

Quando ele colocou um ponto final na gravação, a noite já descia sobre Vila Velha. E ao acender a luz do seu quarto, onde conversamos, eu já sabia que tinha feito a entrevista mais importante da minha vida.

Foi então que decidi passar tudo o que havia sido gravado para o papel. Quem sabe, reescrever as histórias, rearrumá-las dentro de uma seqüência de mais fácil leitura e passar um exemplar para cada filho. E por que não também para os netos? Para as pessoas mais chegadas?

E comecei a transcrever o material. E quanto mais transcrevia mais percebia que a seqüência estava correta. Papai se mostrava um perfeito e competente contador de histórias. Até algumas idas e vindas, a citação de um fato mais recente antes de um mais antigo, um comentário perdido adiante referindo-se a caso já contado, até todas essas coisas tomavam a leitura mais agradável. E resolvi transcrever a sua fala até o fim.

O resultado é o que aqui está. Não foi preciso reescrever coisa alguma. Não foi preciso rearrumar nada. Bastou ouvir e passar para o papel.

A comemoração dos 80 anos de papai me dá a ocasião perfeita para fazer essa homenagem. Uma homenagem que, certamente é dirigida mais a nós, filhos e netos, do que a ele. Porque, em verdade, é ele quem nos dá esse presente no dia do seu aniversário. O presente de deixar, para cada um de nós, um pouco de sua vida, das suas lembranças, da sua emoção. O presente de podermos sentí-lo bem pertinho. Para sempre.

José Carlos Corrêa 

 

Fonte: Os caminhos por onde andei, Capítulo VI A gripe espanhola - 1989
Autor: Jair Corrêa
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2018

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