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A transição para o caminhão – Por Ormando Moraes

Os caminhões começaram a entrar em território capixaba pouco antes da década de 20, de início muito timidamente. De capacidade pouco superior à de uma carroça ou de um carro de boi, tais veículos nem de leve se aproximavam das enormes máquinas que hoje transitam nas estradas asfaltadas. Contudo, despertavam muita curiosidade e a justificada esperança de um transporte menos penoso e sacrificado, mais ágil e eficiente.

Por mais de 20 anos os caminhões conviveram com as tropas no interior. As estradas, abertas a picaretas, enxadas e pás, eram estreitas e precárias, e intransitáveis em épocas de chuvas, de sorte que, não raro, os caminhões ficavam agarrados em atoleiros, enquanto as tropas passavam firmes e destemidas, desafiando a inovação.

A não ser em alguns locais do sul do Espírito Santo, como Cachoeiro de ltapemirim, o ponto do Estado onde o caminhão entrou com mais vigor foi Santa Leopoldina, talvez por influência da poderosa colônia alemã ali existente e da italiana um pouco adiante, em Santa Teresa. Francisco Schwarz, ex-deputado e ex-prefeito de Santa Leopoldina, conta que, em 1918, foi inaugurada a primeira estrada de rodagem (era assim que se chamava) do Espírito Santo, ligando aquela cidade a Santa Teresa. Era toda macadamizada (empedrada), mas muito estreita, só dando passagem para um caminhão, motivo por que, de 6 em 6 quilômetros, havia um cruzamento dotado de telefone para controlar o tráfego, como nas estradas de ferro. Os primeiros caminhões importados eram da marca Mullag, "made in Germany”, não tinham transmissão, eram de corrente, rodas maciças, capacidade para 50/60 sacos. Mais tarde, a partir, de 1925, vieram os "Sauer" suíços, já com transmissão e pneus com câmaras de ar. Havia necessidade de juntar duas, três canoas para transportar os caminhões do porto de Vitória Santa Leopoldina, pelo Rio Santa Maria, visto que não existia outro meio de transporte nesse trecho.

A estrada foi construída pelos grandes comerciantes e proprietários locais, que fundaram a Cia. Viação Santa Leopoldina, para explorar o transporte de cargas e de passageiros, através também dos primeiros ônibus. Era um produto da livre iniciativa da época, muito menos sofisticada, mas muito mais pura e legítima que a de hoje. E a estrada existe até hoje prestando serviço, apenas um pouco mais alargada. Não obstante este avanço da civilização, Santa Leopoldina continuou sendo um centro tropeiro dos mais importantes do Estado, até início dos anos 40, porque de vários outros pontos desciam tropas carregadas para conexão com as canoas no porto fluvial ali existente, final do trecho navegável do Rio Santa Maria.

Em outras regiões do Estado, de grande atividade tropeira, como as de Alegre, Iconha, Castelo, Afonso Cláudio, Muniz Freire, etc., o caminhão foi entrando mais lentamente, devido à falta de estradas, a partir da década de 20. Morando em Muniz Freire, lembro-me bem quando o primeiro caminhão chegou àquela cidade, em 1929. Aproveitando a festa religiosa que ali se realizava, com afluência de muita gente da redondeza, o dono do caminhão manteve-o, durante 3 dias, fazendo o itinerário de uma ponta a outra da cidade, a 2 mil reis por pessoa, sempre cheio. O entusiasmo foi tanto que um velho tropeiro local passou o tempo todo em cima do veículo, deixando-o apenas para alguma necessidade improrrogável.

Conta Antônio Dadalto, antigo proprietário de tropas em Santa Luzia, que comprou seu primeiro caminhão em 1946 e que em toda sua região, de Castelo a Conceição e Venda Nova, os agricultores, preponderantemente de origem italiana, contribuíram muito para apressar a entrada de caminhões, com a livre iniciativa de organizar mutirões para abrir estradas. Era o tempo, segundo ele, em que se trabalhava de 6 da manhã às 6 da tarde, mas, em casos especiais de colheita ou de abertura de estradas, todos entrava a dentro trabalhando.

Segundo informações de Ceny Júdice Achiamé, empresário de transportes, tanto em tropas quanto veículos automotores, ao norte do Rio Doce os primeiros caminhões apareceram a partir de 1932/1933. Em 1928, inaugurou-se a primeira ponte sobre o Rio Doce, em Colatina, que foi feita para uma estrada de ferro que se estenderia até Nova Venecia. Abandonado o projeto, os primeiros 6 quilômetros de seu leito foram aproveitados para estrada de rodagem.

Nas terras ao norte do Rio Doce nunca houve a hegemonia das tropas, como no centro e no sul do Estado. Seu desbravamento se intensificou a partir dos ano 40, com a migração de agricultores do sul em busca de novas terras, de sorte que caminhões e tropas ali entraram quase simultaneamente, mas os muares foram cedendo espaços aos veículos, na medida em que as estradas iam sendo abertas e melhoradas pelos próprios desbravadores, para comercialização da madeira extraída.

O fato é que a transição foi lenta, gradual, mas implacável. A partir do término da Grande Guerra, em 1945, intensificou-se a construção de estradas pelo interior do Estado e os caminhões foram avançando e as tropas se afastando, de modo que, já na década de 50, não mais existiam tropas com a imponência, a organização e a função de escoar a produção rural para os pontos de comércio e exportação, restando apenas o uso de muares nos serviço interno das fazendas.

Encerrava-se, assim, a epopéia das tropas e dos tropeiros nos vales e nas serras do Espírito Santo, que se estendeu do final do século passado até os anos 40.

 

Fonte: Por Serras e Vales do Espírito Santo – A epopéia das Tropas e dos Tropeiros, 1989
Autor: Ormando Moraes
Acervo: Edward Athayde D’ Alcantara
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2016

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