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Afonso Cláudio e os sucessores da ancestralidade

Afonso Cláudio de Freitas Rosa

É através da memória que damos significado ao cotidiano e acumulamos experiências. O termo “academia” remonta à Academia de Platão - escola fundada pelo célebre filósofo grego nos jardins que um dia teriam pertencido ao herói Akademus (de onde vem o nome). Ali se buscava cultivar e perpetuar o saber.

Foi com esta ideia de debates, baseada no questionamento e na dialética socrática, que diversas instituições literárias surgiram na França, entre as décadas de 1620 a 1630. Em 1897, após a fundação da Academia Brasileira de Letras, foram sendo constituídas Academias em cada Estado da Federação brasileira. Em junho de 1921, surgiu a capixaba Academia Espírito-santense de Letras. Sabemos, de antemão, que os atos inaugurais dessas instituições se consolidaram através de histórias que reúnem as coincidentes éticas e intelectuais de seus integrantes.

Nesse texto em homenagem ao ano do centenário da AEL (Academia Espírito-santense de Letras), busco ecos na infinidade de informações que me habitam. Através do mergulho em minhas raízes, vou acrescentando as vozes que apropriei dos livros, dos personagens que por mim passaram, das publicações veiculadas na imprensa e dos escritores que capturaram, em prosa e em verso, sentimentos que pareciam ser só nossos.

Fiel à nossa história e à íntima convivência com a palavra escrita reafirmo a nossa potência. É a palavra, ela própria, associada à história das nações ou ao enredo das paixões, a única chave capaz de abrir as portas do saber. Somente através de textos passados podemos entender o presente e transformar o futuro. Eis a importância fundamental das Academias de Letras.

Quando fui convidada a escrever sobre a centenária AEL não poderia deixar de emergir em referências particulares que enchem a nossa família de orgulho. Através da história de vida e da obra do irmão da minha trisavó Rosa de Freitas Cabral - o ilustre intelectual, patrono da Academia Espírito-santense de Letras e primeiro governador do Espírito Santo, Affonso Cláudio de Freitas Rosa - ouvimos a ressonância de um universo que gravitou sob a égide da ética, da justiça e do compromisso social.

Como sujeitos históricos e sociais que somos, falamos do tempo com determinadas concepções de mundo. Nossa memória está impregnada de impressões muito pessoais, subjetivas; mas toda nossa leitura parte de uma cultura socializada que cria valores comuns, desmistificando a crença de que o passado é apenas fóssil a ser catalogado ou sepultado.

Nessa percepção, o tempo do meu ilustre antepassado se funde com um espaço dilatado, tornando a figura única de Affonso Cláudio de Freitas Rosa um ser plural, que a História e a Academia capixabas imortalizaram na eternidade.

O nome do município de Afonso Cláudio é uma homenagem àquele que foi o primeiro governador do Espírito Santo, nomeado em 20 de novembro de 1889. Mas importa-nos ressaltar, nessas breves linhas, a magnitude do seu legado não só na política, quanto nas letras e na cultura, em geral.

Influenciado pelas ideias de Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero (1951-1914), Affonso Cláudio se destacou em narrativas e discursos. Fez aclamadas conferências e escreveu em jornais a respeito de questões fundamentais para a época, sobretudo em relação à causa abolicionista. Participou da fundação da Sociedade Libertadora Domingos Martins, em 1883. Depois de formado, casou-se com Maria Espíndola de Freitas Rosa e dedicou-se com fôlego ao direito dos cidadãos e às causas humanitárias.

Em 1891 tornou-se desembargador e, logo depois, Presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Foi designado Procurador-geral do Estado (1916-1917). Em 1920, aposentou-se como desembargador e foi morar no Rio de Janeiro, dedicando-se ao magistério superior na Faculdade de Direito de Niterói.

Na Academia Espírito-Santense de Letras, foi o primeiro ocupante da cadeira n° 1 e patrono da cadeira n° 27. Sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, faleceu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no dia 16 de junho de 1934.

Existe uma poética do tempo que é um mergulho único na eternidade: a fluidez da memória que se narra. Ao não se apagar através de registros, a história tem a capacidade de nortear as novas gerações. Principalmente a trajetória de figuras tão exemplares quanto a de Affonso Cláudio. Em todas as culturas ou civilizações, desde que o mundo é mundo, as sociedades se formam através de hábitos e costumes que passam de geração em geração, num movimento cíclico que delineia a significação do pensamento coletivo.

Quantas vozes existem dentro de nós? Uma infinidade, por certo. E delas nascem as narrativas memorialísticas – dos fios com os quais tecemos as memórias que nos habitam: a voz do passado amalgamado às vozes do presente e da esperança de futuro. Esse fino e frágil tecer foi o impulso que me moveu a traçar essas linhas a respeito do meu tio-tetravô, que registrou em seus escritos toda a grandeza de sua existência.

“Mandei fazer um barquinho, da casca do camarão, o barco saiu pequeno, só coube meu coração”: eis uma pequena trova do cancioneiro capixaba colhida entre os inúmeros estudos que fez sobre nossa cultura.

Entre sua vasta obra literária, contribuições historiográficas, estudos de Direito e publicações na imprensa, destacamos “A insurreição do Queimado” (1884); “Comentário à Lei da Organização Judiciária do Estado do Espírito Santo” (1894); História da propaganda republicana no Espírito Santo” (1894); “Biografia do Dr. João Clímaco” (1902), “As tribos: negros importados e sua distribuição no Brasil: os grandes mercados de escravos” (1914); “Conferência sobre Domingos Martins” (1914);

“Estudos de direito romano: direito das pessoas” (1916); “Da retenção do cadáver do devedor em garantia do direito creditório, entre os romanos” (1916); “Bosquejo biográfico do Dr. Clóvis Bevilaqua” (1916); “Da exterritorialidade das leis reguladoras do Estado e capacidade das pessoas”; “Do divórcio e da conversão das sentenças de separação de corpos em dissolução do vínculo matrimonial, na jurisprudência internacional (1916); Comentário às leis do estado civil” (1917); “Discurso sobre o fuzilamento de Domingos Martins” (1917); “Da expressão do ideal no paganismo e no cristianismo” (1918); “Consultas e pareceres” (1919); “Do domínio e sua evolução no direito antigo e moderno: da preferência condominial no direito civil pátrio”(1920); “Gênesis da obrigação jurídica: do verdadeiro suporte psicológico da obrigação jurídica” (1921); “Trovas e cantares capixabas” (1923); “Elogio histórico do padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte” (1924); “Direito romano: direito das coisas” (1927); “Comentários ao Código Civil Brasileiro” (1930); “Ensaios de sociologia, etnografia e crítica” (1931) e “Rudimentos sobre a teoria dos contratos” (1934).

Na dedicatória de uma de suas mais robustas obras - “História da literatura Espírito-santense” (publicada em 1912, com quase 600 páginas) – encontra-se um desafio: “À mocidade Espírito-santense, a quem incumbe a glória e o dever de venerar e aumentar o patrimônio literário que lhe transmitiram seus antepassados”.

Escrito há 109 anos, esse texto reforça o caráter vanguardista de seu pensamento, garantindo o tônus literário que o levou ao mérito do reconhecimento imortalizado: “Servindo à causa das letras de minha Pátria e em particular do meu torrão natal, a animação com que meus conterrâneos e amigos acolheram este livro e as expressões gentis com que acariciaram a leitura que do original fizeram, confortando-me em um estado da vida em que as desilusões fanaram todos os ideais, constituem um incentivo poderoso para que as profícuas pesquisas literárias prossigam e novos achados venham avolumar o acervo do nosso tesouro intelectual, fragmentado em monumentos que atravessaram mais de dois séculos, expostos a todas as vicissitudes. Essa tarefa pertence à mocidade; eu dou-me por satisfeito com a pequena contribuição que as páginas a seguir imperfeitamente condensam, certo de haver o assunto sido tratado por escritores de reputação feita no mundo literário em que vivemos; sem temor, porém, posso confessar que por esse motivo arrisco o meu obscuro nome, o brilho e a grandeza daqueles que o tenham de o eclipsar, servir-me-ão de consolo, ou na belíssima linguagem do maior historiador de Roma: ‘Si in tanta scriptorum turba mea fama in obscuro sit, nobilitate ac magnitudine eorum, neo qui nomini officient, me consoler’ (Tito Livio).”

Os clássicos têm a incrível capacidade de continuar dialogando com um tempo ao qual não mais pertencem. Adjetivar Affonso Cláudio é uma missão que incorre na área superlativa. Não temo transgredir para o terreno do exagero ou da falsa modéstia em relação ao nosso parentesco, visto que estou amparada em registros documentais de uma obra de expressão inquestionável. Homenagear a história de uma vida cuja vida é a própria obra significa apontar para a eternidade.

Somos todos sucessores da ancestralidade. É na literatura que encontramos a escrita de todas as lembranças. E é na história que resgatamos as raízes da transcendência. Através delas, ouvimos a ressonância de toda uma tradição. É nosso dever caminhar empenhados em assegurar às novas gerações o registro das características essenciais que nos tornam humanos.

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-santense de Letras / 100 anos – Vol 26. (2021) - Vitória
Autor: Manoela Ferrari
Jornalista. Escritora. Correspondente da AFEL e da AEL
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2022

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