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Bota Muito - Por Cariê Lindenberg

Mercado da Vila Rubim, anos 1970 - Foto pesquisada no FB, Memória Capixaba

Éramos um grupo tão grande quanto heterogêneo, e durante seis dias na semana cumpríamos um ritual quase religioso: frequentar o botequim do mercado da Vila Rubim apelidado pelo pessoal de, "Bota Muito", por razões que acredito óbvias. Nas imediações, havia pelo menos mais quatro bares igualmente muito frequentados pelos notívagos: bar do Bigodinho, do Machado, do Olívio e do Frederico. O nosso grupo bastante unido era constituído de funcionários de A Gazeta. Gráficos, jornalistas e outros como eu, da área comercial, irmanados, podíamos ir a pé para o botequim graças à proximidade de nossa então sede na General Osório.

Em vez dos gráficos tomarem leite, o que seria mais do que recomendável para quem mantinha uma constante intimidade com o chumbo derretido e sua fumaça tóxica, enchiam mesmo a cara era de cachaça. Os demais, que não tinham mesmo nenhuma razão para beber leite, acompanhavam os amigos e quase sempre se excediam.

Aquele recinto do mercado da Vila Rubim foi palco durante muitos longos anos de fantásticos porres dos componentes do grupo animado e outros frequentadores do local. Ainda me lembro de um sábado, manhã já clara, quando convidei o pessoal para à tarde ir à minha casa. Ao Nabor Vidigal, um dos melhores repórteres que já passaram pela Gazeta, pedi que comprasse duas dúzias de siris, razão de nossa reunião. Quando, mais tarde, Nabor chegou em minha casa é que pude aquilatar o tamanho do porre que ele tinha tomado pela manhã: chegou com 600 siris... para não mais do que umas 20 pessoas.

Mas, nem só de porres vivia o Bota Muito. Em outro sábado, início de noite abafada de final de janeiro, cheguei no bar e me surpreendi com a presença de Darly Santos, já então comunista convicto e irredutível. A minha surpresa foi porque Darly não costumava nos acompanhar na boemia, pois sua coluna "Binóculo" era entregue antes das 16 horas, o que lhe permitia pegar, na Praça Misael Pena, o último ônibus para Barra do Jucu, onde morava. O nosso casual e agradável encontro, afinal, se deu em virtude do jornal aos sábados fechar à tarde e não de madrugada, como nos demais dias, e do Darly haver perdido o último ônibus para seu bairro.

Corria o ano de 1963 e eu estava chegando de uma solenidade comemorativa de mais um ano de Folha Capixaba, semanário do Partido Comunista Brasileiro, cuja sede era na Rua Duque de Caxias. Compareci à comemoração representando a direção de A Gazeta e, nesta condição, discursei elogiando os progressos jornalísticos daquele jornal, bem como desejei êxito aos futuros projetos da empresa. O meu copo já estava servido da tradicional forma do Bota Muito e quando ia alcançá-lo o Darly, em gesto decidido, adiantou-se, tirou o copo da mesa e exigiu do dono do bar a substituição da pinga por uma generosa dose de vodka.

— Não estou a fim de vodka, Darly — falei.

— Meu camarada, depois de participar de uma solenidade na Folha e discursar desejando êxito ao nosso jornal na sua luta contra a burguesia, tomar vodka é apenas um complemento

— disse Darly.

Naquela noite, até bem alta madrugada, a pinga não saiu mais da prateleira. Os anos que antecederam a revolução de março de 1964 foram muito férteis em movimentação político-ideológica. Comícios, reuniões, seminários e as mais diversas formas de influir e conquistar a opinião pública foram exercitadas sem reservas. É claro que a imprensa era o alvo maior pela sua capacidade de difusão de ideias.

Numa quinta-feira chuvosa, cheguei um pouco mais tarde no Bota Muito e fui logo me desculpando por não poder ficar mais tempo.

— Vou deixá-los mais cedo hoje, — disse. — Não quero nem beber, pois tenho de, logo pela manhã, começar a preparar um discurso para fazer à noite, na solenidade da Frente de Mobilização Popular — expliquei.

A solenidade era uma das mais importantes já realizadas pela Frente em Vitória, que tinha como diretores, além de sindicalistas, empresários, profissionais liberais, professores, etc. Da solenidade iriam participar o já senador Nelson Carneiro e outros expoentes da política nacional, além de estrelas locais.

Jackson Lima, nosso editor-chefe, ficou entusiasmado com a notícia e, além de exigir de Nabor total cobertura da solenidade, sugeriu que o discurso começasse a ser elaborado ali mesmo, a seis mãos.

Todos toparam e iniciou-se uma ampla e interminável discussão. Jackson argumentava que eu deveria dar ênfase às reformas de base, atacar a remessa de lucros e pedir mais apoio ao governo de João Goulart. Falou mais de meia hora, sem interrupção.

A seguir foi Nabor que começou a fazer sugestões. Como getulista, Nabor queria que eu lembrasse as conquistas trabalhistas do getulismo, principalmente o salário mínimo e a CLT. Jackson não aprovou, achando que a tese, além de extemporânea, desvirtuaria a reunião.

Travou-se, então, um debate entre os dois que varou a madrugada e fez com que eu tivesse mesmo que preparar sozinho, em casa, no dia seguinte e de ressaca, é obvio, o discurso, que foi bastante aplaudido pelos participantes do encontro realizado no auditório do Sindicato dos Estivadores, em 63.

Os gostos do grupo eram muito variados e, por isso mesmo, agradou a promessa de James Villas-Boas, chefe das oficinas de A Gazeta e um contumaz frequentador do Bota Muito, de fazer uma seresta naquele tradicional recanto dos notívagos do mercado da Vila Rubim. Agradou porque James, além de um exímio tocador de banjo e mestre da Batucada Chapéu de Lado, também convivia com conhecidos seresteiros capixabas da época, como Nestor Lima, e músicos de renome, como Paulo Serapião. Na verdade, todos ficaram animados com a perspectiva de uma grande noitada.

A cobrança da seresta passou, então, a ser diária, principalmente por parte de Bonelli e João Careca, ambos linotipistas que integravam a equipe de gráficos de A Gazeta chefiada por James. Este apenas sorria e pedia um pouco de paciência, como se estivesse adorando a grande expectativa gerada em torno de seu prometido show.

Na data da seresta, o grupo foi completo para o Bota Muito. Lá estávamos eu, Jackson, Nabor, Bonelli, João Careca, Audífax Nascimento, José Luiz Rosetti e quase toda a oficina de A Gazeta em peso. Até Darly Santos preferiu a noitada, ao recanto sossegado da Barra do Jucu.

James chegou um pouco mais tarde sobraçando o banjo. De imediato, a sua chegada sozinho causou estranheza no grupo, pois pensava-se que viria acompanhado de outros músicos e alguns cantores.

— Eu não preciso de mais ninguém para fazer uma boa seresta — garantiu James, começando a paletar o banjo. Junto com o som estridente do instrumento logo se ouviu a voz cavernosa de James cantando a marchinha da Batucada Chapéu de Lado:

"Quem é, que é,

 
que vem trazendo

 
tanta animação?

 
Quem é, quem é...


Chapéu de Lado do

 
meu Coração."

Achando que era apenas um introito e por ser James um fiel defensor da Batucada Chapéu de Lado, uma das mais festejadas agremiações carnavalescas da década de 50, ninguém reclamou. A reclamação contudo se generalizou quando, já alta madrugada, a música ainda continuava a mesma.

Foi Bonelli quem acabou com a festa prometendo que, na próxima vez que James falasse em seresta, o cobriria de porrada.

Frequentar o mercado era um prazer sem igual para aquele seleto grupo. De madrugada, ainda escuro, começavam a chegar aos poucos os donos das bancas e a armar as barracas e arrumar os seus produtos nas prateleiras. Aquela algazarra aparentemente desordenada ia ganhando consistência, na medida em que os primeiros raios de sol apareciam e com eles os fregueses. Para a maioria dos frequentadores do Bota Muito essa era a hora de encerrar a noitada. Alguns continuavam firmes, mas outros saíam trocando os passos de forma cadenciada. Mas todos, depois de uma inspeção rotineira pelas diversas bancas, à vista ou fiado, levavam nas mãos ou debaixo do braço um infalível álibi para entrar em casa, contando a mesma história de sempre: demoraram esperando o mercado abrir.

Membros do grupo: eu, Army Ribeiro, José Alves, Nelson Bonelli, Celso Caminhão, Jackson Lima, Antônio Barcellos, Chico Flores, Olair Rodrigues, Hélio Afonso, Neumir, Nezinho, Miguel, James Villas-Boas, Nelson Penha, Gerson Freire, Altair Augustinho de Paula, Antônio Cunha, Expedito (sem braço), João Corrêa, Vivaldo...

 

 

Autor: Cariê Lindenberg
Fonte: Escritos de Vitória 11 - Mercados e Feiras
ESCRITOS DE VITÓRIA - Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES,1995
Prefeito Municipal: Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo: Jorge Alencar
Coordenadora do Projeto: Silvia Helena Selvátici
Conselho Editorial: Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Bibliotecárias: Lígia Maria Mello Nagato, Cybelle Maria Moreira Pinheiro, Elizete Terezinha Caser Rocha
Revisão: Reinaldo Santos Neves
Capa: Mercado de São Sebastião restaurado pela Prefeitura Municipal de Vitória (1995)
Foto: Leonardo Bicalho
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer
Impressão: Gráfica Ita
Compilação: Walter de Aguiar Filho, Junho/2022

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