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Entrevista com Arnaldo Barros - Por Mônica Boiteux em 22/12/2005

Arnaldo Barros - Foto: Mônica Boiteux, 2005

Sr. Arnaldo Barros, atualmente com 63 anos, é poeta, memória viva de Vila Velha, e nos concedeu a entrevista a seguir sobre os festejos de Natal de Vila Velha. Esse é o nosso presente de Natal a todos os internautas. Aproveite!

Site: O sr. é de Vila Velha mesmo?
Arnaldo: Vim para Vila Velha em 1958, eu nasci em Itaquari, e, Cariacica, meu pai trabalhou em Itacibá. Nessa época eu conheci Tuffy Nader naquela região, ele era veterinário do Estado, amigo da minha família. Era ele que autorizava o abate de gado no matadouro municipal de Vitória.

Site: Ele já era político?
Arnaldo: Ainda não, isso foi antes de 1958. Em 1958 eu vim para Vila Velha. Logo depois de eu chegar em Vila Velha. Eu já conhecia a cidade, pois, já freqüentava o Convento.

Site: O sr. tinha quantos anos nessa época?
Arnaldo: Quando eu vim para cá, tinha 16 anos. No ano seguinte ao que eu vim para cá, houve alguns eventos interessantes: inauguração da escola de Aprendizes de Marinheiros do Espírito Santo, naquela época o Presidente da República era Juscelino Kubitcheck. Ele veio aqui para inaugurar a EAMES e nós participamos, eu estudava no colégio Marista e nós fomos lá para cantar o hino, foi em 1960.

Nesse mesmo ano, Vila Velha foi atribulada com uma enchente pavorosa, eu vivi todo aquele momento. Mas a Vila Velha sempre foi uma comunidade muito bairrista, então a gente chegava meio novo, eu tive que me adaptar, me entrosar com a turma de Vila Velha. Havia até uma rivalidade do Centro com os outros bairros como o Ibes. Havia sempre briga de rapazes de Vila Velha com os do Ibes.

O Ibes era Instituto do Bem Estar Social, foi um dos primeiros conjuntos na época de Jones dos Santos Neves, em 1952, eles estavam emergindo outras, que aquilo era feito para as classes trabalhadoras, bancários, comerciários, tanto é que a arquitetura lá é em forma de um hexágono. Então cada setor daquele, casa ala daquela de cinco pontas do hexágono, era uma classe de trabalhadores, bancários, comerciários, ferroviários. O único que ficou separado do hexágono são dos servidores do Estado que é o Santa Polônia, que é onde hoje está localizado o 4º batalhão da Polícia Militar. Era ali para os servidores do Estado, que o pessoal do estado era estatutário, não dependiam de carteira de trabalho e essa questão da distribuição de moradia era uma condição de habitação para o trabalhador de carteira assinada.

Site: O sr. veio de Cariacica e foi morar em qual bairro de Vila Velha?
Arnaldo: Eu vim pro Centro de Vila Velha, eu morei na Luciano das Neves em frente à Igreja Batista. Era vizinho do Tuffy Nader. Eu vim voltar a conviver com ele aqui já como prefeito.

Site: Hoje o sr. mora aonde?
Arnaldo: Hoje eu moro na Barra do Jucu, e estou com 63 anos.

Então nessa época que eu vim para cá a gente foi se enturmando, e foi participando de todos eventos sociais. Naquele tempo era muito comum as domingueiras, se hoje você tem tênis, celular, naquela época tinha o seu modismo, que era alpargata roda, é um calçado feito de sisal. O solado dela era de sisal e uma lona por cima e era muito barato. As pessoas podiam adquirir com muita facilidade e era vendida na vendida na venda do Zezeu (Elizeu Pedro de Queiroz), o Antenor Braga, essas lojas. Antigamente não tinha supermercado, havia vendas, que vendia de tudo, secos e molhados e alpargatas roda ficavam lá com aqueles montes amarrados numa corda e a gente ia até lá e comprava, aquilo fazia sucesso com as meninas. Tinha o banlon, que era uma camisa de cores variadas de um tecido especial sintético, mas ele ressaltava muito. O banlon era um padrão de status dos jovens. Foi nessa época que começou a aparecer por aqui o Roberto Carlos apresentando suas musiquinhas. Ele não era famoso. Veio apresentar as musiquinhas dele no Boris Castro Show que era da Rádio Espírito Santo, que era um programa de auditório que distribuía prêmios, e nessa época vieram vários, essa turma que faziam parte dos “The Fivers”, o Ademir, o Almir, moravam ali na Toca. Eles vieram do nordeste e moraram muito tempo ali na toca.

Roberto Carlos veio aqui várias vezes procurar Ivan Reis para apresentar ele lá no Bonfim, onde ele foi até vaiado, coitado, ninguém o conhecia, também ele não cantava nada, como não canta até hoje. O tipo da música dele é agradável, vale apenas o estilo, mas voz mesmo, vale o recurso eletrônico, que naquela época não tinha.

Mas o que era gostoso na época era o aspecto urbano da cidade, nós não tínhamos prédios, era tudo casa baixa era aquele ambiente familiar, ainda como na cidade do interior, todo mundo conhecia todo mundo.

Site: Quais eram as diversões?
Arnaldo: Para os jovens havia as domingueiras. Domingueiras eram em vários clubes que nós tínhamos por aqui. Nós tínhamos o Golfinho Iate Clube, o Olímpico, o Atlético, o Clube dos Sargentos e o Arci lá no Ibes. As domingueiras eram o seguinte: quase não era música ao vivo, colocava o aparelho de som e reproduzia em disco - vinil, naturalmente, na época -, todas as músicas que estavam fazendo sucesso no momento. Então tinha Jairo Maia Disco o Cassino Pinheiros, outras lojas que vendiam e os clubes adquiriam, faziam grandes coleções para ficar rodando aquilo o dia todo, até de manhã.

Site: O Clube Golfinho era aonde?
Arnaldo: O Golfinho Iate Clube ele começou na estrada da Marinha, na antiga rua São João na época da colonização, lá em Inhoá, logo depois da casa de Homero Massena, aquela ruazinha que vai pro Godofredo Schneider, era logo na frente já quase chegando no portão da Marinha, o Golfinho Iate Clube era por essa razão, pertinho do mar. Depois foi para onde é a Câmara Municipal, hoje.

Nessa época a Prainha era prainha, praia, de um lado praia, do lado direito mais para fralda do lado do morro do Convento que onde tem hoje aquela quadra poliesportiva, aquilo ali era um cais de atracamento de barcos de portos que conduzia pessoas para baía de Vitória, sobretudo os pescadores. As donas de casas iam lá diariamente, escolhiam os peixes fresquinhos que chegavam, os senhores aposentados também. O que a gente mais via por ali era as donas de casa, antes do almoço, irem lá esperar chegar os barcos, e às vezes eles passavam a noite e chegavam de madrugada e vendiam ali mesmo. O que sobrava lá, logo depois de 9, 10 horas, eles traziam para o mercado da capixaba, uma parte, a outra parte ia para o mercado de Paul.

Aqui nós tínhamos vários mercadinhos, pois como não tinha supermercado, era pulverizado aqueles mercadinhos, era tudo padronizado. O mercado ali da Prainha onde é hoje a Secretaria de Saúde, aquilo ali era um mercado. A outra parte ia para pro mercado de Paul que ficava naquele canto onde tem o cais da lancha em Paul. Ali havia uma integração da linha de bonde com a linha de lancha lá em Paul. A pessoa ia de bonde, a linha de bonde terminava em Paul e ali ele pegava a lancha e atravessava.

Nas domingueiras os jovens iam para o Clube Golfinhos, se divertiam, passavam o dia todo dançando. Era o primeiro ritual de passagem da adolescência, que ele começava a namorar, muitos desses aí hoje são casados com as meninas que conheciam.

Site: O sr. também casou com alguma menina dessas domingueiras?
Arnaldo: No meu caso não, pois eu fui para Minas e me casei lá. Mas a maioria deles, como Reinaldo Passos Vieira que casou com Vivi, separou depois, mas se conheceram nessa época das domingueiras. A Aldinha que namorava com Espaquete, e assim por diante. Tinha aquela turma do colégio Marista.

Vila Velha era uma cidade muito familiar sem prédio sem nada, quando você tem esse tipo de urbanismo, de arquitetura, com as janelas abertas de frente pra rua, você visualiza as pessoas, as pessoas se cumprimentam, se conhecem, se cruzam sempre na rua. Ainda que você mora numa rua muito distante, a cidade parece perto. Hoje não, pra chegar na outra esquina tem que pegar um ônibus, porque você não consegue atravessar, a infra-estrutura urbana está toda voltada a um tipo de transporte que conduz a gente a algum lugar, ou pelo metrô ou pelo ônibus. Antigamente não tinha isso, você escolhia seu caminho, você tinha liberdade e ia encontrando todo mundo por aí, e aí que você ficava sabendo das coisas.

Como não havia televisão nem outra atividade, era comum a gente ouvir as histórias dos mais velhos e começava a tomar conhecimento das lendas de Vila Velha, que o morro da Mantegueira, naquele casarão, é mal assombrado, mas tem um tesouro lá, e a gente ficava curioso de ouvir e ir lá, de vez em quando a gente ia até Inhoá.

Site: E as histórias dos túneis?
Arnaldo: Os túneis do Convento ... Ronilson era um camarada que morava ali na Prainha, que era vidrado nesse negócio, ele ira pra Iriri, na ilha dos Franceses ver se achava tesouro dos piratas, e aí viajava naquilo, eu já sabia dessas lendas do Convento, dos túneis que os jesuítas fizeram para escapar de ataques, que esconderam seus tesouros, tem aquela história do santo do pau oco, então vai ver que tem muitas imagens lá cheias de ouro. O Ronilson andou procurando isso e uma vez ele chegou a falar que entrou em uma gruta (o Convento tem várias grutas, já entrei em várias lá) e encontrou uma gruta com uma inscrição com o nome de Frei Pedro Palácios. A gente era estudante na época, vidrado nessas histórias, nessas lendas fantásticas da época da invasão holandesa em Vila Velha, retratados pelo Benedito Calixto em seus quadros, então a gente ia futucar, ver se achava alguma coisa. E olha, deu muito trabalho: sábado, domingo... E eu trabalhava na época, trabalhava na feira porque a renda familiar era pequena e a gente estudava num colégio caro (Marista), então tinha que complementar. Meu pai trazia algumas mercadorias do interior para a gente revender e eu vendia na feira. Toda hora de folga que eu tinha, ia com o Gilson procurar o tesouro. Tinham muitas lendas.

Inclusive, a do lendário Padre José. Era um padre que ajudava na missa do Convento. Ele não era franciscano, era outra ordem religiosa, era padre mesmo. Mas ele era um padre meio pra frente, tomava cachaça, fumava, tinha uma orelha grande, andava de batina por aí, tinha um furo na orelha. Chegava no Simões, que tinha uma loja na esquina da rua Antônio Ataíde com a rua Castelo Branco e estava sempre lá tomando uma pinguinha. Ele morava dentro da mata do Convento, onde o pessoal fazia ofertas de animais. Tinha gente que vinha cumprir promessa, do interior, trazia bezerros, cabritos, oferecia alguma coisa a Nossa Senhora, e chegava aqui, não tinha onde colocar esses animais, colocavam na mata do Convento. Lá então os padres fizeram um cercado que abrigava esses animais. O padre José morava ali. Ele era um padre que tinha muitas amantes - não era lá um padre muito certinho -, e que tinha muitos filhos aí por Vila Velha. A gente ficava catando quem eram os filhos do Padre José, pelo tamanho das orelhas.

E o padre sempre misterioso. Depois que o padre José morreu, nós ficamos em busca do que ele deixou e não falou com ninguém.

Site: Como o Sr. se envolveu com a cultura de Vila Velha?
Arnaldo: Além dessa diversão, havia os Ternos de Reis (Reisados). Eu já conhecia alguns fatos folclóricos do interior, Não que eu participasse diretamente, mas apreciava. Estranhamente, quando cheguei aqui em Vila Velha, que a gente imaginava uma Cidade, ao lado de Vitória (não era o interior), a gente nem imaginava que ia encontrar isso aqui. Mas chegamos aqui e encontramos, então a gente se identificou com isso.

É muito interessante essa questão do fato folclórico, pois tem uma função pedagógica, educativa, por exemplo: No interior, o Estado mandava uma professora para ficar na casa de um fazendeiro, num cômodo qualquer e ensinar as crianças. Essa era a escola do interior. Muitas vezes elas chegavam lá e utilizavam como método pedagógico as coisas da roça mesmo. Então essas manifestações são formas de ensinar e até mesmo de intimidar às vezes. Como por exemplo: - Olha não vai lá, que tem a mula sem cabeça, o lobisomem, o bicho-papão. Ao invés de dizer que é perigoso, você pode morrer, dizia que tinha o bicho-papão. Tinha também o carcaieiro. Os carcaieiros são esses mendigos que andam com um saco. O que em alguns lugares é Homem do Saco, em outros é chamado de carcaieiro, cheio de carcalhos.

Então nós chegamos aqui e encontramos essas festas bem parecidas com o interior que eu conhecia. Foi quando eu conheci o Seu Benedito, ali perto do Canal Bigossi. Ele tinha um boteco, uma vendinha que vendia raízes, cachaçinha, vela, coisa pouca, só para ele se sustentar. O seu Benedito, como o nome indicava, era devoto de São Benedito. Era comum as mães batizarem os filhos com nome de santo e depois o filho ficava a vida toda fazendo reverência ao santo. E ele conhecia a congada, era mestre de congo.

Site: E a história de que mataram o Benedito?
Arnaldo: Mataram o Benedito. Infelizmente teve um dia que houve um desentendimento na venda dele, e mataram o Benedito. Foi um corre-corre, porque os grandes e pequenos da sociedade conheciam o Benedito porque ele fazia a festa dele, uma vez por ano, com sua banda de congo, e trançava Vila Velha toda. Não tinha nada para fazer, não tinha televisão, tinha no máximo um rádio, ou um futebol no campo do Tupi. E a procissão era interessante, porque percorria as ruas de Vila Velha. Mas o Benedito morreu, aquilo foi acabando e esse fato folclórico sumiu. Ele não deixou substituto. Depois eu terminei comprando o rádio do Benedito, que nem tenho mais, um rádio de válvula.

Site: Quais eram as festas mais tradicionais de Vila Velha no Natal?
Arnaldo: Tinha esse Congo, tinha o Reisado, que a Dona Maria, de Seu Tanêgo, tocava o bandolim com o grupo do Reisado. O Reisado é uma cantoria que conta a história do nascimento de Jesus, e vai de porta em porta. Tinha a Lapinha, que era ensaiada pelo seu Clementino Barcelos, era o mestre de Lapinha. A Lapinha é um auto de Natal. Também tem uma função pedagógica, pois além de mostrar o presépio, era constituído de dois grupos: um chamado de Azul e o outro de Encarnado. Tradicionalmente, todas os outros eventos que tem esses cordões, nessas duas cores, têm um sentido antecedente, relacionados à guerra entre mouros e cristãos, que vem de Portugal com a história de Dom Sebastião que foi abatido em uma batalha, nas Cruzadas. Vem essa tradição das Cruzadas que tinham cores diferentes: os Mouros eram os vermelhos, encarnados, e os Cristãos eram os azuis.

Site: Mas o que eles fazem?
Arnaldo: Além de ter os bailados e as brincadeiras, se montava o presépio e tinha os personagens. Agora veja a função pedagógica: tinha a Libertina que era uma moça toda sirigaita e se volta dando bola para o Satanás. E o Satanás ia atentar a Libertina. Isso mostrava para as mocinhas da época que o comportamento da Libertina era condenável. Então vinha o Anjo Gabriel e tentava proteger a Libertina de Satanás. Tinha a Flora, que era outro personagem. Ia para o campo e pegava flores para depositar no presépio, na lapinha, lapa, que significa pedra.
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Site: Onde a Lapinha era apresentada?
Arnaldo: Em vários lugares. Eu já vi a Lapinha na Prainha, perto da gruta de Pedro Palácios, no Marista, em frente à casa de seu Clementino Barcelos, na Prainha, no Clube Olímpico. Variava de lugar conforme o tempo. Se chovia, ia para um lugar coberto.

Site: E o congo do Benedito, passava por onde?
Arnaldo: Saía lá de perto do Canal Bigossi, passava pela Toca, rua dos Canecos, pela 7 de Setembro, rodava a Antônio Ataíde, vinha na Luiza Grinalda, saudava o Delegado – autoridade -, ia embora pela Luíza Grinalda até a Prainha, depois circulava por umas ruas internas, reverenciava o Dr. Nilton de Barros que era o médico, passava pelo Dr. Teixeirinha, que era o dono do cartório, as autoridades principais com seu congo. Depois ia para a Pracinha Duque de Caxias e ficava um longo tempo com seus batuques. À tardinha voltava para o seu cantinho carregando a bandeira do congo.

Site: E o Reisado, era aonde?
Arnaldo: O Reisado era sempre na Prainha, perto da Igreja do Rosário.

Site: O sr. já participou de algumas dessas folias?
Arnaldo: Não, só via como apreciador, tinha muita vontade, mas nunca entrei.

Site: Por que não entrou?
Arnaldo: Por que esses eventos já tinham as pessoas treinadas, que participavam há mais tempo. Só quando um saía ou mudava é que se abria a vaga.

Site: O sr. faz poesias?
Arnaldo: Ali onde é o Colégio Vasco Coutinho era uma quadra enorme. O colégio ficava de um lado e a Prefeitura de outro, tudo aberto, não tinha nada. A primeira coisa que a gente avistava, ao olhar de qualquer ângulo, era o Convento, a mata verdinha. Naquele tempo, de manhã cedo, fosse no verão ou inverno, você via a neblina sobre a mata do Convento, a mata do Morro do Jaburuna, Olaria e o do Moreno. Foi justamente nessa época que começam a aparecer as pessoas que conviviam com aquilo, eu, a Tereza, outros colegas de escola, aprendendo a linguagem, e a gente começa a externar essas coisas, escrevendo alguma coisa, um teatro, e eu como gostava de poesia, fiz a poesia “Vila Velha Minha Terra”. Passou um tempo e eu fiquei envergonhado, achei muito ruim. Depois, à medida que fui mudando minha faixa etária, eu fui achando que aquilo não estava ruim não. Que era aquilo mesmo.

Site: Como era?
Arnaldo: 
Eu lia muito os autores brasileiros e me lembro muito do Casimiro de Abreu, que fazia aquelas apologias da minha terra: “todos cantam a sua terra, também vou cantar a minha.”. Então eu pensava, quem dera se eu fizesse um negócio assim, como Camões... E como eu conhecia Vila Velha como ninguém, ficava o dia todo na Prainha, Praia da Costa, Morro de Jaburuna, pegava o bonde, os canais do rio Aribiri, a gente rodava isso tudo pescando siri, caranguejo, burdigão para fazer coisas na Semana Santa. Era isso que eu vivia e tentei retratar o lado bom:

Vila Velha minha terra
De lendas tradicionais
Com braços de mar esparsos
Entre as rochas colossais.

Ó Moreno, Ó Penedo
Ó sósias do Corcovado
Maravilhas do presente
Sois relíquias do passado.

E o penhasco do Mosteiro
Real valor de sua história
Abrigo da cristandade
Da baía de Vitória.

Sempre alegre a minha terra
Nas quatro festas de abril
E em 23 de maio
Tradições do meu Brasil.

O Ivan Reis achou uma maravilha, os outros colegas também, João Batista Valadares, Marciano, filho de Tuffy, que era meu colega também, Nanando, que era filho de Dr. Nilton (Luiz Fernando), todos tentaram fazer a sua. Tinha um grêmio do Marista, a gente apresentava aquilo e era um negócio extraordinário. Eu terminei durante um certo período ficando famoso. Veio muita gente me procurando, achando interessante, elogiando, e eu estava achando que estavam era me gozando. Na época eu fiquei envergonhado, depois, revendo em minha mente a Vila Velha antiga, achei que era bonito. É bonito.

Eu tinha o costume de ir para a Prainha, que era uma maravilha, tinha a Praça Otávio de Araújo, a Praça da Bandeira, a Tamandaré. E eu gostava de ficar ali, lia o jornal todo domingo. Eu era novo, mas gostava de ler jornal. E só domingo porque custava caro, hoje a reprodução do jornal é em série, antigamente era quase artesanal, então saía muito caro. Então eu ia para lá ler o jornal, me informar, menos de futebol, porque não gostava muito, e ali era aquela tranqüilidade.

Vila Velha, quando dava aquele vento em determinados horários, a Prainha jogava areia em toda a rua Luciano das Neves e espalhava por tudo quanto era lugar. Às vezes, a antecessora da Escelsa, Companhia Brasileira de Forças Elétricas, que era proprietária do bonde, tinha que pagar e junto com a Prefeitura recolher a areia para não atrapalhar a linha do bonde, de tanta areia que dava, era tudo aberto, não tinham os prédios. Às vezes ventava e fazia frio mesmo. E eu ia ler na praça e começava aquele ventinho e vinha aquele momento de inspiração. Nessa época eu fiz “A Praça de Vila Velha”:

A Praça, as árvores
O vento sereno
O banco
E o gato morto

Era uma gato que amanheceu morto lá. Então eu guardei e pensei, como a outra: esse troço não é lá muito bom não. Sempre naquela região da pracinha da Bandeira, perto do Convento, me vinha uma inspiração. Até hoje é um lugar que dá muita sombra. Na época era mais arborizado, tinham oitis, cortados em forma de bichinhos, e ficava aquele enfeite em volta da Igreja do Rosário, que era a igreja mais freqüentada de Vila Velha. Só mais tarde, que foi feito o Santuário (que eu participei da construção, levando os tijolos), é que o pessoal começou a despertar mais para outras igrejas que foram surgindo nos bairros.

Site: A Igreja Católica tinha parte ativas nas encenações de Natal?
Arnaldo: Tinha, A iniciativa era popular, mas os padres apoiavam. Eu me lembro que tinham alguns padres que iam lá assistir essas manifestações, com exceção do congo, que eu não me lembro deles participarem da congada do Benedito. Mas da Lapinha e do Reisado sim. A Lapinha era próxima à Igreja ou perto da praça da Igreja.

Site: Onde eram feitos os ensaios, na Igreja?
Arnaldo: Não. A igreja fazia os seus presépios, com papel crepom, aquele papel simulando uma pedra. Todas as igrejas faziam, então tinha um interesse da Igreja em manter essa tradição. Não da parte profana, mas da parte religiosa. A Missa do Galo era obrigatória, mas era gostoso, era a oportunidade que a gente tinha de ficar na rua até 1 hora da manhã. Naquele tempo, eu era adolescente, nossos pais não deixavam ficar na rua por um período superior às 9 horas da noite. Era uma vez no ano e era uma maravilha!

Nós temos períodos de nossas faixas etárias que estamos sempre passando por um ritual de passagem: a mocinha quando está debutando, depois quando está noivando, depois ela casa, tem filho, vira avó... E o rapaz também. Então essa vivência toda a gente pode perceber que de um determinado período para cá, Vila Velha começou a se transformar um pouco.

Site: Como assim?
Arnaldo: 
Vila Velha era uma cidade dormitório. Os empresários, as empresas, tinham suas atividades na região de Vitória e Cariacica, e morava todo mundo aqui. Era o Juiz, o Advogado, que trabalhava no Fórum de Vitória, o Juizado era lá, o Fórum era lá. O Schuambach, que era o dono do frigorífico que abastecia a cidade, morava aqui. Entre a década de 50 e 60, começa a transformação. Começa a aparecer gente nova de Minas, investidores. Vila Velha era uma região ampla, com muita terra e terreno disponível e começou um novo programa de desenvolvimento social e econômico.

E aí começa a vir gente diferente. E Vila Velha que era extremamente bairrista, que todo mundo conhecia todo mundo, chegava a época da política e todo mundo começou a estranhar. Foi justamente a atividade política que foi mostrando isso pra gente, e a gente se assustou. Pessoas diferentes, que não eram daqui, começaram a entrar na política e a ganhar. E a gente pensava: o que está acontecendo? Já não sou mais daqui!

Os mais pobres, que moravam na cidade, foram obrigados a ceder lugar para os outros que tinham mais dinheiro, a vender seus imóveis e a se mudar para os bairros da periferia, ofertados pelo Coqueiral de Itaparica, pelo BNH, pela COHAB, dos grandes conjuntos do Grande Ibes, como por exemplo, Guadalajara, Novo México, Jardim Colorado, Jardim Asteca, Araçás, Guaranhus, aquela região toda que surgiu justamente na década de 60.

O pessoal começa a se espalhar, o pessoal do centro começa a perder seu poder de compra, não consegue mais ficar no centro de Vila Velha, pressão em cima dele para vender seu imóvel, e ele precisando de dinheiro. O pessoal daqui antigo foi saindo, os outros foram morrendo, foi chegando gente nova e essa gente nova não assimilou a cultura e começou a morrer os festejos de Natal.

Hoje você ouve uma vez ou outra falar da Lapinha, do Reisado.

Site: O que Vila Velha tem feito para retomar esses festejos de Natal?
Arnaldo: Eu tenho notado, sobretudo agora na gestão desse último Secretário de Cultura, que é o Alvarito Mendes, que ele tem dado muita atenção às tradições locais. Ele começou a fazer um trabalho interessante em Vila Velha. Não é só a televisão que atrai a criançada. Esses eventos de Natal, como as Cantatas, chamam a atenção das crianças e levam os adultos de volta a estas festividades.

Eu não conheço os projetos da secretaria dele, mas pelos eventos que eu tenho visto acontecer durante a gestão dele, estou notando que ele está valorizando as tradições locais. É bom que ele procure as pessoas que conhece, que queiram reviver esses eventos folclóricos, folguedos em geral, e obtenha sucesso com isso, como eu disse, quando descaracterizou a antiga população de Vila Velha com a nova geração, onde começa a ação da Sigma, Garante, Littig, prédios de apartamentos, em que a pessoa entra dentro do prédio e fecha a porta do apartamento, quando chega essa nova geração, a tendência dessa integração das pessoas, das famílias, começa a desaparecer um pouco. E evidentemente que a proximidade é que fazia manter essa tradição.

Como é que se forma um grupo? Você chama a pessoa que você conhece. Quando você começa a não conhecer mais as pessoas, você não tem mais essas manifestações coletivas. É interessante que elas possam voltar. Há uma grande chance de elas virem a substituir essa coisa tediosa que está a televisão, sempre aquela mesmice, o mesmo apresentador, a mesma coisa, que parece que a gente está vendo de novo, embora com outros personagens.

Site: Se o sr. fosse prefeito de Vila Velha, o que faria nessa época de Natal?
Arnaldo: Eu não sou voltado muito para esse tradicionalismo do Papai Noel em si. Quando a gente é criança tem aquela esperança de ganhar o presente, acreditar realmente, mas o espírito natalino, que eu me lembre, é a questão da solidariedade. Eu penso muito nesse aspecto, desde jovem. Eu ficava muito preocupado, quando via as pessoas almoçando no Natal e depois pegando aquilo tudo e jogando fora, pois ninguém mais agüenta comer, e você vê que foi gente no dia seguinte atrás daquilo que você jogou fora. Isso me entristecia muito, e eu ainda vejo muito isso. O Natal tem que ser uma coisa mais solidária. O nascimento de Cristo tem que transmitir essa questão do socialismo que ele pregou. Tem que ser mais solidário.

Apesar de às vezes até me entristecer com essa história, mas o prefeito, no âmbito do município não teria condições de matar a fome de todo mundo, nem pensar em solidariedade só no Natal.

Mas digamos que eu fosse o prefeito de Vila Velha nessa época. Eu faria um negócio legal, podia até gastar dinheiro, mas eu ia enfeitar a cidade, colocava tudo muito iluminado para dar mais vida à cidade, chamar atenção, e quem sabe até, começar uma nova tradição. Quando chegasse na época do Natal, as pessoas diriam: - Eu vou para Vila Velha porque lá o Natal é todo iluminado, todo bonito, reviveria os grandes eventos folclóricos, a Lapinha, vamos voltar à Lapinha, vamos incentivar isso aí. Quem sabe o atual Secretário de Cultura, Alvarito, que é um ator, e os folguedos folclóricos nada mais são do que isso, são peças teatrais que as pessoas representam, personagens religiosos ou da sociedade, que mostram uma história. O Natal é a história do nascimento de Jesus! A Lapinha mostrava isso, os Reisados sempre lembram isso. Quem dera... Se eu fosse prefeito, eu ia dar muita atenção a essa parte: voltar às tradições populares de Vila Velha. Eu creio que o prefeito tem feito isso.

Hoje, na Barra do Jucu, que é onde me sinto à vontade, tem a Casa da Cultura, que ajuda a preservar o congo. A atividade cultural atinge as crianças, tem várias bandas de congo mirins, que vai proporcionar longa vida às tradições de Vila Velha.

Tem a cigana da Barra do Jucu. E quem é a cigana? É a Narlice, você vai lá e ela está lá até hoje. A Narlice é parente do Tuffy Nader, e a Dona Nair, mãe dela que faleceu recentemente, vinha trazê-la todo dia para estudar no Colégio das Irmãs. Vinha no carro de leite, que naquele tempo não tinha ônibus, de manhã, e de tarde voltava. A Narlice se vestia com aqueles trajes estereotipados ciganos (Ela nunca foi cigana!). Ela é até hoje uma mulher bonita. Então, inspirado na Narlice, eu fiz “A Cigana da Barra do Jucu”.

Lá, tem uma cigana, lá isso tem
Que é uma cigana bonita, lá isso é
E ela já leu a minha mão, isso leu
Lendo e falando, me convenceu
Me convenceu da sina, da sorte
Da vida e da morte,
Mas do amor não.

 

Entrevistado por Mônica Boiteux, dezembro,2005



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