ES x BA - Limites (Capítulo I - Martim Affonso)
1 — Em 1530, Martim Afonso, com o titulo de Capitão-mór e amplos poderes conferidos em três cartas regias, deixou as praias do ocidente para tomar posse nas terras “que descobrisse na terra do Brasil”.
Acompanharam-no, nessa interpresa grandiosa, portugueses ilustres, e entre estes, Pero Lopes de Souza, em quem, sempre encontrou uma dedicação sem limites, ao lado de uma competência sem par. Quer estudando as costas do Brasil, quer brechando o sertão, subindo rios, penetrando a floresta, galgando contrafortes, fundando capitanias, nunca se poupou no serviço do Rei, nem no de seu irmão Martim Afonso, que a ambos serviu sempre com igual devotamento; a este com assumir as posições de maior perigo e responsabilidade naquela empresa, e ao Rei, em todos os trabalhos da navegação, em que se iniciou desde os mais verdes anos.
A sua competência de mareante mereceu conceito elevadíssimo de todos os historiadores ilustres, e entre, estes Varnhagen, que sobre ele avança as seguintes considerações:
"Só a teoria reunida à pratica podia ter formado em tão verdes anos — acrescenta — digamos adolescentes, aquele gênio perito e caráter afoito que se descobre em sua exposição (o Diário) e que o próprio grande D. João de Castro reconhece nas seguintes palavras de uma carta escrita da Índia e inserta no Patriota, do Rio de Janeiro (11. 6 de 1813 p. 21 e 22): “E porque Pero Lopes de Souza, a quem todos os portugueses devemos confessar vantagem e dar obediência no mister e ofício do mar"... etc. (1)”
II — Sábado, 30 de Abril de 1531, chegou a expedição ao Rio de Janeiro. Em 1 de Agosto panejou a frota rumo sul chegando a Cananéa em 12 do mesmo mês. Detiveram-se, ahi, os navegantes, por quarenta dias, e reencenaram a rota, alcançando o estuário do Prata, onde se perdeu o navio capitania e um bergantim.
O cuidado de Martim Afonso, segundo a afirmação de historiadores, baseados no próprio Diário de Pero Lopes, seria o de assegurar, desde logo, pela posse respectiva, o território reconhecido a Portugal pelo tratado de Tordesilhas. E depois de acautelados nessa região, os direitos da Coroa Portuguesa, retroceder para S. Vicente, onde realmente chegou a 20 de Janeiro de 1532, estabelecendo-se ai definitivamente.
Em Lisboa; sentiu-se, para logo, que não bastava a ronda da costa para assegurar-se a conquista. Urgia se evitassem as arremetidas contra o litoral, onde por vezes, velas anhotas singravam, rumo de feitorias clandestinas.
Viu-se, então, na ocupação efetiva a solução do problema, criando-se, em todo o litoral, núcleos de população, e nestes elementos aptos para a defesa da conquista. O sistema de doações, a semelhança de como se procedera na ilha de Madeira, foi logo posto em execução, e as terras distribuídas em capitanias, de cinqüenta léguas de costa, doadas a pessoas capazes de povoá-la e administrá-las a expensas próprias, defendendo-as do estrangeiro, e nelas, os interesses da real fazenda. Aplicou-se, assim, ao continente, o processo insular, com as desvantagens que o tempo não tardaria em acentuar.
Encontrou tal resolução um ambiente favorável ao mais franco desenvolvimento. O comércio das Índias e da África havia aumentado, consideravelmente, o numero das fortunas improvisadas. Em torno das capitanias, gravitaram para logo as ambições, pelo que o Rei fez a divisão da costa em partes iguais, em 1831, na forma porque se vê da carta regia de 1532, endereçada a Martim Afonso, à qual pertence o seguinte trecho: (2)
“Depois de vossa partida se praticou se seria meu serviço povoar-se toda essa costa do Brasil e algumas pessoas me requeriam capitanias em terra dela. Eu quisera, antes de nisso fazer coisa alguma, esperar por vossa vinda, para com vossa informação fazer o que me bem parecer, e que na repartição que disso se houver de fazer, escolhais a melhor parte; e porém, porque depois fui informado que de algumas partes faziam fundamento de povoar a terra do dito Brasil, considerando Eu com quanto trabalho se lançaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentada na terra e ter nela fortes e algumas forças, como já em Pernambuco começavam a fazer, segundo o Conde da Castanheira vos escrevera, determinei de mandar demarcar de Pernambuco até o rio da Prata cinqüenta léguas de costa a cada capitania, e antes de se dar a nenhuma pessoa, mandei apartar para vós cem léguas, e para Pero Lopes vosso irmão, cinqüenta, nos melhores limites dessa costa por parecer de pilotos, e de outras pessoas, de quem o Conde, por meu mandado se informou, como vereis pelas doações, que logo mandei fazer, que vos enviará, e depois de escolhidas estas cento e cinqüenta léguas de costa para vós e para vosso irmão, mandei dar a algumas pessoas, que requeriam, capitanias de cinqüenta léguas cada uma; e segundo se requerem, parece que se dará a maior parte da costa; e todas fazem obrigações de levarem gente e navios à sua custa em tempo certo, como o Conde mais largamente vos escreverá: porque ele tem cuidado de me requerer vossas coisas, e Eu lhe mandei que vos escrevesse Pero Anriques a fez em Lisbôa, aos 28 de Setembro de 1532—Rei.”
III — As capitanias, em que, desde 1531 já se achava dividido o território de Pernambuco para o Sul, foram doadas ou prometidas, não obstante, somente anos depois, haverem sido assinadas as respectivas cartas. (3)
Assim é que a carta de doação da capitania de Coutinho é datada de 10 de Janeiro de 1534 e a de Pero de Campo de 27 de Maio desse mesmo ano. Sem embargo do que aquela doação se contem nos seguintes termos:
"...cinqüenta léguas de terra na dita costa do Brasil, as quais se começarão na parte onde acabarem as cinqüenta léguas de que tenho feito mercê a Pero de Campo Tourinho e correrão para a banda do Sul tanto quanto couber nas ditas cinqüenta léguas..."
A esse tempo, ainda não existia a carta de doação de Pedro de Campo que foi passada somente oitenta e sete dias depois, e só o fato das doações terem sido feitas antes de lavradas as respectivas cartas, explica esta referência feita ao donatário do norte.
O mesmo se verifica entre a de Porto Seguro, (carta de, de o de 1534) e a de Ilhéus (carta de 26 de Julho de 1534).
A posse do Governador da Capitania do Espírito Santo foi também anterior à ocupação feita por Tourinho.
Quando o donatário de Ilhéus começou a colonização e povoamento de sua capitania, sugeriu-se uma duvida sobre o seu limite ao norte, “mas logo que se estabeleceu o Governo Geral, trataram os respectivos donatários de resolver tais duvidas, determinando-se por sentença de Mem de Sá e do ouvidor geral e provedor-mór Braz Fragoso, que a Capitania de Ilhéus começa da ponta, da Bahia do Salvador da banda do sul, que se estende da ilha do Tinharé, e vai correndo ao longo da costa cinqüenta léguas." (4)
Entre o Espírito Santo e Porto Seguro, no direito colonial; nunca houve duvida sobre limites, conformando-se sempre aquela capitania com a divisa pelo Mucury.
Rezava a carta de Porto Seguro. (5)
"...Item me praz, e hei por bem que o dito Pero de Campo e todos os seus sucessores a que esta Capitania vier, usem inteiramente de toda jurisdição, poder e alçada, nesta doação conteúda, assim e da maneira que nela é, declarado, e pela confiança que dele tenho que guardarão nisso tudo o que cumprir ao serviço de Deus e meu, e bem do povo e direito das partes, hei outro si por bem e me praz, que nas terras da dita Capitania não entrem nem possam entrar em tempo algum Corregedor nem alçada, nem outras algumas justiças possam usar de jurisdição alguma que seja, nem menos será o dito Capitão suspenso da dita Capitania e jurisdição dela...
A própria carta de doação, pois, previa e coibia a invasão territorial, intromissão de justiça, uso de jurisdição, no território da capitania vizinha.
A fiscalização dessa interdição, que a não existir daria margem a repetidos conflitos, cabia ao governo geral, a quem a Coroa dera poderes muito especiais sobre este assunto, e instruções expressas para evitar e punir incursões tão prejudiciais.
Assim é que, no regimento do Governador Geral, de 17 de Dezembro de 1548 constava:
Ninguém poderá ir pelas terras a dentro, e comunicar de umas para outras capitanias pelos sertões, visto os inconvenientes que daí se seguem, sem licença do Governador, dos capitães ou provedores; pena aos contra-ventores, sendo peão de açoites; e sendo pessoa de mor qualidade — de vinte cruzados. As licenças só serão concedidas, a pessoas de muito recato, informando-se primeiro a autoridade si elas não são necessárias na respectiva capitania e si não estão nelas sujeitas a alguma obrigação. (6)
E não seria Mem de Sá, por certo, quem consentiria habitantes do Espírito Santo no Cricaré, e lhes garantisse a ocupação, se este não pertencesse ao Espírito Santo, conforme os seus depoimentos, que revestem a verdade histórica de uma couraça inatacável. Mem de Sá, em cuja carta de nomeação dizia el-rei:
"...como para os cargos de capitão da cidade do Salvador da capitania da Bahia de Todos os Santos, na costa do Brasil, e de Governador Geral da dita capitania e das outras capitanias e terras da dita costa, é necessário uma pessoa tal, e de tanto recado e confiança, que nisso me possa e saiba bem, servir e pela muita confiança que tenho em Mem de Sá, fidalgo da minha casa e do meu conselho, nas coisas de que o encarregar me saberá bem servir, e o fará com o cuidado e diligencia que se dele espera, e como até aqui o tem feito nas coisas de meu serviço de que foi encarregado...”
Mem de Sá a quem todos os cronistas coevos fazem os melhores elogios, e entre outros Fr. Vicente que começa assim o seu cap. VI, II: “A dom Duarte da Costa sucedeu o doutor Mem de Sá, que com razão pode ser espelho de Governadores do Brasil; porque concorrendo nele letras e esforço, se assinalou muito na guerra e na justiça.
NOTAS
(1) Rocha Pombo — "História do Brazil", vol III. p. 50 – nota
(2) Rocha Pombo. ob. cit.
(3) Rocha Pombo—ob. cit. vol. III p. 127.
(4) Rocha Pombo—ob. cit. vol. III. p. 243.
(5) Na carta de doação a Coutinho havia igual prescripção, talvez redigida em termos mais rigorosos.
"Item me praz e ey por bem que o dito vasco fernandez e todos seus successores a que esta capitania e governança vier usem inteiramente de toda a jurisdiçam poder e alçada nesta doaçam conteuda assi o da maneira que nella he declarado e pela confiança que delle tenho que guardarão nisso todo o que cumpre a serviço de Deus e meu e bem do povo e direito das partes ey outro sy por bem e me praz que nas ditas terras da dita capitania não entre nem possa entrar em tempo algum corregedor nem alçada nem outras algumas justiças pera nella usar de jurisdição alguma per nenhuma via nem modo que seja nem menos será o dito capitão suspenço da dita capitania e governança e jurisdicçao dela..."
(6) Rocha Pombo—ob. cit. vol. III p. 301.
Fonte: O Direito do Espírito Santo àmargem meridional do Mucury – Espírito Santo – Bahia Limites – 1918
Autor: Bernardes Sobrinho
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2018
A Capitania do Espírito Santo foi doada, em 1534, por D. João III ao fidalgo luso Vasco Fernandes Coutinho, que a ocupou em 23 de Maio do ano seguinte
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