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Jogos de botões pelas calçadas... Por Marien Calixte

Jogo de Botões do Flamengo

"Jogos de botões pelas calçadas, eu era feliz e não sabia..."

Em 1957, Ataulfo Alves, o elegante mulato que foi um dos mais completos compositores brasileiros, compôs Meus tempos de criança, samba lírico relembrando sua infância e as personagens de sua cidade natal, a pequena Miraí, incrustada no interior de Minas Gerais. O estilo nostálgico do magistral Ataulfo está bem definido nesse samba-canção.

Com a ajuda da memória boêmia de Sérgio Egito, recupero esses versos de Ataulfo Alves: "Eu daria tudo que tivesse, para voltar aos velhos tempos de criança, eu não sei por que a gente cresce, se não sai da mente essa lembrança. Eu, igual a toda meninada, quantas travessuras eu fazia, jogos de botões pelas calçadas, eu era feliz e não sabia..."

E o que faz, caro leitor, um compositor mineiro —lamentavelmente esquecido — e um samba nostálgico num livro cujo tema é esportes na ilha de Vitória? Voilà! Marmanjo que botou os pés numa bola, se esse mesmo marmanjo morou na Vila Rubim, Santa Clara, Parque Moscoso, nos idos de 40, 50, passou pelo vestibular dos campeonatos de jogos de botões nas calçadas.

Limpava-se a calçada, bem limpinha. Vassoura, pano úmido no trecho escolhido para jogar, onde se demarcava o campo com giz retirado do quadro-negro da escola. A calçada escolhida deveria ser de cimento bem liso. Reservava-se lugar para os dois jogadores, que rodavam o campo de joelhos. Havia local para os jogadores reservas, os dirigentes, o técnico e alguma coisa vermelha à qual se apelidava de "guarda". A torcida sentava no chão ou ficava de pé. Alguns jogadores levavam moeda da sorte, a medalha do santo protetor, fotografia recortada de alguma revista ou jornal com o time inteiro ou de algum jogador, de preferência do time por que se torcia e dava nome ao time de botões. Havia quem levasse raminho de arruda, e até um fio de cabelo de alguma menina que a imaginação da gente elegia como namorada. A menina podia saber, a mãe ou irmão dela, nunca. Uma página de caderno e lápis para anotar as partidas e o placar.

A molecada era grande. Pela manhã, escola, à tarde, depois do dever-de-casa, pelada na rua ou jogo de botões. Os maiores e mais fortes jogavam primeiro, escolhiam seus adversários, davam ordens. Não havia sorteio para os jogos. Era tudo como os maiores ou mais experientes queriam. Às vezes alguns empurrões, sem maiores consequências. Se houvesse briga, mãe ou pai proibia o jogo. Vez ou outra algum menino mais atrevido rapava um botão de alguém que ele não gostava ou era menor que ele, disparando ladeira abaixo. Atrás dele iam o dono do botão e algum companheiro solidário, armados de pedras e gritando "ladrão, ladrão". Ou o moleque soltava o botão em algum trecho da correria ou levava-o, mesmo, como troféu. Para voltar ao bairro custava-lhe tempo.

Um ponto para vitória, zero para derrota e meio ponto para empate. O tempo da partida tinha variáveis como: partida de tantos gols, ou anoitecia e ninguém enxergava mais nada, ou a voz da mãe chamando para o banho e o jantar, a desistência de algum jogador, discussão e algum marmanjo que passava por perto e brincava de espalhar os botões. Não se podia bater no marmanjo, mas ele conquistava nosso ódio e muitas maldições, entre essas, a preferida: "Tomara que tenha uma coceira braba no cu."

O maior problema mesmo era o nome do time para registrar no campeonato. A maioria queria Flamengo, como eu. Os meninos maiores já vinham dizendo que eram Flamengo. Os demais recorriam à imaginação: Rubro-Negro, Gávea FC, até o exagero de Flamengo 1, 2, 3, etc. Lembro-me que se chegou a ter um campeonato com mais de quinze Flamengos para um total de vinte disputantes. O Flamengo tinha sido o primeiro tricampeão, na década de 40, um feito tão extraordinário para nós meninos quanto a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. A preferência pelo Flamengo foi se ampliando com os tri dos anos 50, 80. Bem, é chato ser Flamengo. O outro clube mais querido era o Vasco, seguindo-se o Rio Branco e o Vitória, estes dois, locais. Os clubes paulistas só começaram a aparecer com o Santos de Pelé e os estrangeiros, pelos ingleses e, depois, os italianos.

Nas ruas São João, São Pedro, onde mais se jogava, no morro do Quadro, e no alto da Santa Clara, no que restava da varanda de colunas do velho palácio que Nestor Gomes, quando governador, mandou construir para residência e despachos. A Vila Rubim foi o bairro pioneiro dos jogos de botões na ilha de Vitória. Naquela época era uma brincadeira de meninos. A partir dos anos 70 tornou-se esporte reconhecido oficialmente. O jogo em Vitória veio do Rio de Janeiro, como tantas outras coisas que a ilha importou por influência da Cidade Maravilhosa, hoje, de distantes "encantos mil". Mas o jogo de botão começou na França, no início deste século. Filhos de imigrantes franceses trouxeram o botão, inicialmente, para o Rio. Brincadeira ou esporte, foi contaminando Brasil acima: Vitória, Salvador, Aracaju, Natal, Fortaleza. Depois, desceu até o Rio Grande do Sul.

Quando cheguei do Rio, com minha mãe e meus dois irmãos mais velhos, fomos morar na Vila Rubim. Ali encontrei os futuros companheiros de calçadas. Havia aprendido o jogo nas calçadas da Rua Vilella Tavares, no Méier. O primeiro amigo mais solidário foi o Carlinhos, um dos chamados "fortes" pela molecada. Era minha primeira sorte. Mas o Carlinhos sempre estava mais preocupado com as meninas que circundavam os jogadores. "Menina não se mistura com menino", a advertência rompia de dentro de alguma casa, da janela ou da porta onde uma mãe precavida controlava o alarido. Mas os jogos de botões nunca foram perseguidos pelos pais, de maneira tão feroz quanto em relação ao jogo de ferrinho, e restrições aqui e ali para o esconde-esconde (que podia colocar um menino e uma menina em algum lugar distante dos olhos das mães e, se os tivesse, irmãos ciumentos ou delatores). Ou, ainda, para a bola de gude, esta, a única brincadeira em que se faziam apostas.

Quando algum menino perdia, por incontida insatisfação, cuspia no campo, provocando empurrões e o palavrão máximo: "Seu mulherzinha!" O bastante para uma boa briga, correrias. Quase me esquecia de dizer que se jogava com alguma ficha de ônibus, casca de coco bem afinada e polida, botão de capa ou vestido, para projetar o botão contra a bolinha. Esta podia ser de feltro, madeira ou botãozinho de camisa. Cada bairro tinha sua própria convenção quanto à bola. Depois dos jogos era obrigatório limpar a calçada ou a dona da casa não permitiria mais reuniões. Quando alguém ousasse armar o jogo sem permissão, a dona da casa vinha com balde de água e adeus campo.

Diferente de hoje, tem times à venda nas lojas ou fabricantes especializados (César Barros, engenheiro, jogador de muita técnica, juntamente com Joceli, nosso amigo do Ibes, foram os primeiros a organizar uma oficina no quintal da residência só para fazer botões de acrílico, na década de 70). Nos bons tempos da Vila Rubim e da Santa Clara fazíamos os times manipulando casca de coco, vidro de avião, tampa de relógio, fichas de ônibus (as mais usadas eram as vermelhas, azuis e pretas), botões grandes de paletós, vestidos e capas velhas. E também as tampas de vidros de brilhantina. A mais procurada era Colgate, cujo tamanho se prestava para o jogador de defesa. Quem tivesse um beque Colgate tinha supremacia para barreiras, escorar bolas contra o gol ou atrapalhar a visão do adversário. A partir dos anos 70, os botões passaram a obedecer a regras nacionais, feitos de acrílico, com o número, nome e até o escudo do time impresso.

A gente era feliz e não sabia... como diz Ataulfo Alves no seu samba nostálgico e boêmio.

O jogo de botão alastrou-se pela ilha. Ronaldo Nascimento, meu primo Zezé, outros mais, em Santo Antônio. Na zona norte da cidade, o Sérvio Túlio Moreira, César Barros, Zé Maria Feu Rosa. No Moscoso, lideravam os refinados Helder Varejão e Luís Sarlo. Em 1972, eu, meu cunhado Luizinho Brito e Zé Maria Feu Rosa, mais o Pedrinho de Zé e meu filho Luís Henrique, fomos bater no Ginásio Mackenzie, no Méier, Rio de Janeiro. Entramos e fomos surrados num campeonato nacional, mas aprendemos tudo e trouxemos a regra. Formou-se a Associação Capixaba de Futebol de Mesa, com nós três, mais Adiomar Malbar Silva, Alexandre Barroca, César Barros, Rubinho Ferreira Filho, Edsel Pagani, Leomar Barreto, Helder Varejão e, atenção leitor, Élcio Álvares, exatamente o ex-governador e hoje senado e líder do governo.

O movimento da ACFM começou na garagem do prediozinho Nº10 da rua Padre Nóbrega, Cidade Alta, onde eu e Luizinho morávamos. Élcio aparecia por lá quando, à noite ou feriados, a papelada do governo deixava. Élcio jogava bem, mas também discursava para "cantar" sua jogada e, principalmente, quando fazia um gol. A Associação cresceu muito com bons companheiros: Zé Maria Gaguinho e seu filho, Silvino Faria Junior, o Juninho, Luiz Heliodoro Sarlo, Manoel Macedo Gomes, Modenese, Rodrigo, Tironi, Deus meu!, tanta gente mais. O sócio de honra era o baiano Jomar Moura, primeiro campeão brasileiro, gente finíssima. Rico, Jomar andava de carro com a família pelo Brasil procurando onde se estivesse jogando futebol-de-mesa, como assim passou a se chamar o jogo de botões. Em julho de 1978 fizemos em Vitória um campeonato nacional no Ginásio Santos Neves, graças ao apoio do governador e jogador de botão que o leitor já sabe quem é.

Regras, tamanho do campo, formas dos botões, tudo foi mudando. Não mudou ainda a ingenuidade das apostas: rodada de picolé, pizza ou guaraná que o perdedor paga ao vencedor e seus convidados.

Voltemos ao samba do companheiro Ataulfo Alves...

 

ESCRITOS DE VITÓRIA — Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar
Diretor do Departamento de Cultura - Rogerio Borges De Oliveira
Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici
Conselho Editorial - Álvaro Jose Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Bibliotecárias - Lígia Maria Mello Nagato, Elizete Terezinha Caser Rocha, Lourdes Badke Ferreira
Revisão - Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla
Capa - Remadores do barco Oito do Álvares Cabral, comemorando a vitória Baía de Vitória - 1992 Foto: Chico Guedes
Editoração - Eletrônica Edson Malfez Heringer
Impressão - Gráfica Ita
Fonte: Escritos de Vitória, nº 13 – Esportes- Prefeitura Municipal de Vitória e Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1996
Autor: Marien Calixte
Nascido no Rio de Janeiro (RJ).
Jornalista, radialista, publicitário, promotor cultural e escritor. Autor de Livro dos Haikais, Não Amarás, Alguma coisa no Céu e outros.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2020

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