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Lembranças de Marien Calixte, o doce imortal - Por José Roberto Santos Neves

Marien Calixte e José Roberto Santos Neves

Nunca tive a pretensão de entrar para uma Academia de Letras – e essa afirmação não representa exercício de falsa modéstia, embora saiba que não sou o primeiro nem serei o último a fazer uso dela. Considerava instituições literárias algo distante da minha realidade, talvez devido à vivência no jornalismo, onde somos reféns do tempo e convivemos diariamente com o status do descartável, uma dinâmica que é diferente do livro, perene em sua natureza. Sequer tinha conhecimento de como se procede o ingresso de um autor numa academia de letras, com seu ritual de inscrição, envio de carta de apresentação aos acadêmicos, eleição, cerimônia de posse, discurso, padrinho... Especificamente falando da Academia Espírito-Santense de Letras, já conhecia boa parte de seus escritores, dos quais tinha, inclusive, recebido o simpático título de “Amigo da AEL”, em função de minha colaboração na divulgação de suas atividades em A Gazeta.

No entanto, em 2014, quando a AEL publicou edital para preenchimento da cadeira de número 26, que pertencia a Marien Calixte, confesso que senti um frio na barriga. Marien foi o mestre com quem tive a satisfação de conviver em seus últimos 15 anos de vida, o orientador a quem recorria para checar alguma informação sobre a música do Espírito Santo, o jornalismo, a poesia ou o jazz, conhecimentos que ele dominava tão precisamente em sua cordial gentileza.

Submeter meu nome à apreciação dos acadêmicos para sua sucessão se tornara, para mim, uma forma de reverenciar o talento de Marien e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de dar sequência à sua notável contribuição para a cultura do Espírito Santo, especialmente na interseção entre a música, o jornalismo e a literatura.

Lembro-me como se fosse hoje de receber seus telefonemas com alguma novidade sobre música, algum disco lançado, um livro novo no forno.

- José Roberto – dizia a voz mansa do outro lado da linha, seguida de uma delicada pausa.

- Marien – completava ele – para, em seguida, perguntar:

- Como está a família?

Por vezes, tive a oportunidade de visitá-lo na casa da Mata da Praia, onde o mestre passeava no jardim, entre pés de manacás e murtas, uma bananeira e um pequeno coqueiro, e depois conversávamos em seu escritório, no segundo piso, espécie de refúgio encantado onde a exuberante coleção de discos dividia espaço com livros de poesia, ficção científica, pinturas, revistas sobre cinema e quadros com fotos de ídolos do jazz. Em uma dessas ocasiões, no ano de 2004, recolhi seu depoimento para a biografia “Maysa”, sobre a cantora que ensinou o Brasil a amar e a sofrer por amor. Contou-me que, no final dos anos 1950 ou início dos 1960, então repórter de O Diário, fora pautado para entrevistar a deslumbrante e temperamental Maysa Figueira Monjardim – ela detestava ser chamada pelo sobrenome Matarazzo - no auge dos sucessos de “Ouça” e “Meu Mundo Caiu”. Ao final, um pouco tímido, pediu a ela uma foto.

- Serve esta? – respondeu Maysa, estendendo a mão para entregar- -lhe uma 3/4, de um documento de identidade.

Em 2007, o mestre proporcionou-me a honra de assinar a orelha do livro “A MPB de Conversa em Conversa – 40 entrevistas com grandes nomes da música popular brasileira”, no qual assinalou:

“A entrevista é um trabalho jornalístico-literário. Coloco-me entre os que acreditam que o jornalismo é uma espécie de literatura e, assim, estou seguindo os passos do mestre Alceu Amoroso Lima. Os jornais estão hoje muito próximos das revistas, da mesma forma que as revistas giram no tempo e se inspiram no livro.”

Na Rádio Universitária FM, derradeira estação do seu programa “O Som do Jazz” – que manteve no ar por 55 anos ininterruptos no dial capixaba, o que deveria ter-lhe rendido uma inclusão no Guiness – O Livro dos Recordes –, desfrutávamos da companhia de Marien nas noites de segunda-feira, deliciando os ouvintes com standards de Duke Ellington, Chet Baker e Miles Davis. Havia mesmo quem dormisse com sua voz de travesseiro – meu pai, João Luís, era um desses habitués que chegava a gravar os programas em fitas cassete.

Como se vê, é impossível falar sobre o desenvolvimento das artes no Estado nas últimas décadas sem passar por Marien Calixte: jornalista, radialista, escritor, produtor cultural, gestor público, pintor e pesquisador musical, ele deixou um legado admirável em todas as áreas em que atuou, conciliando o olhar cosmopolita de quem sempre vislumbrou o futuro com o amor declarado pela terra que o acolheu desde a mais tenra idade, e para a qual teceu as mais diversas homenagens; uma das mais conhecidas é o slogan “Viver é ver Vitória”, criado em 1968, época em que exercia o cargo de diretor de Turismo e Certames da Prefeitura Municipal de Vitória.

Nascido no Méier, Rio de Janeiro, a 20 de outubro de 1935, Marien Calixte herdou do pai francês o patronímico – uma mistura de Marien, nome franco-austríaco que significa Mariano, e Calixte, de origem árabe – e também a arte da jardinagem, que cultivou durante anos.

O amor a Vitória e ao Espírito Santo resplandece em sua obra. Definitivamente, Marien foi muitos em um só. Sua contribuição para a construção das identidades culturais da Capital perpassa em sua visão de mundo humanista e no seu exemplo de ética, liderança e excelência. E qual era a visão de mundo de Marien? Um mundo, eu me arriscaria a dizer, onde prevalecesse o respeito e a gentileza entre as pessoas; onde as artes desempenhassem o papel de força motriz da sociedade; onde todo tipo de hostilidade desaparecesse nas cinzas de um carnaval; onde tivéssemos a consciência de que o silêncio é necessário para que se possa ouvir o outro, e que o capixaba aprendesse a amar a abençoada ilha de Vitória da mesma forma como ele a amou.

De sua trajetória vitoriosa – com trocadilho, por favor – podemos elencar alguns pontos-chave:

Em 1943, juntamente com o amigo Oswaldo Oleari, conquista o posto de locutor no serviço de alto-falantes de Jardim América, em Cariacica, onde exerce também a função de locutor de parques de diversão.

Em 1955, estreia no jornal A Tribuna, então situado na Av. Capixaba, entrevistando um violonista capixaba que acabara de retornar da Polônia com o troféu de segundo lugar no Festival de Música de Varsóvia. Seu nome? Maurício de Oliveira. Foi o embrião de uma bonita amizade que cultivariam por toda a vida.

Em 1958, inicia na Rádio Espírito Santo a produção e apresentação do supracitado programa “O Som do Jazz”.

No final dos anos de 1950, firma-se como um dos primeiros disc-jóqueis de Vitória, promovendo a trilha sonora da boate do Clube Vitória, em sintonia com os novíssimos ares da Bossa Nova.

Nos anos 1960, desempenha as funções de Chefe de Redação, Secretário de Redação, colunista e crítico de cinema em “O Diário”, onde amplia o espaço para o noticiário cultural e introduz a poesia no periódico.

Em 1973, atendendo ao chamado de Carlos Lindenberg Filho, o Cariê, Marien Calixte chega à redação de A Gazeta com a tarefa de implementar uma grande reforma no jornal. Entre suas principais intervenções destacam-se o moderno projeto de diagramação, inspirado em O Jornal do Brasil; a criação do segundo caderno, com o nome de Agenda; a divisão do periódico em editorias, as mudanças na editoria de Economia, a criação da charge e da tira em quadrinhos de Milson Henriques, com a personagem Marly.

Diante desse conjunto de ações, é justo que Marien Calixte receba o título de “pai do jornalismo cultural do Espírito Santo”, honraria que o próprio recusou em vida, apesar de ele reconhecer o seu papel na construção de um conceito voltado para a difusão das artes na imprensa capixaba.

Nos anos 1970, torna-se diretor do Teatro Carlos Gomes e diretor-presidente da Fundação Cultural, atual Secretaria de Estado da Cultura, na gestão do governador Elcio Alvares (1975-1979). Durante os dois últimos anos de governo, desenvolve uma série de ações que marcaram profundamente a vida cultural do Estado, como a reforma no Teatro Carlos Gomes, o Projeto Pixinguinha, o Projeto Moqueca e a vinda de astros da música mundial a Vitória: Sarah Vaughan, Dave Brubeck, Art Blakey and Jazz Messengers, Astor Piazzola. Outro marco indelével de sua passagem à frente da Fundação Cultural é a construção, com verbas federais, da sede da Biblioteca Pública do Espírito Santo Levy Cúrcio da Rocha.

Nos anos 1980, cria o Vitória Jazz Festival, que ganhou uma série de 10 edições anuais, encerrada no início dos anos 1990 por falta de apoio governamental.

 

O literato

 

Em sua vasta produção literária, Marien Calixte é o responsável por introduzir dois gêneros na literatura capixaba: a ficção científica e a poesia haikai. O primeiro teve como marco o livro “Alguma coisa no céu”, de 1985, que ganhou três edições: no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Itália. Composto por seis contos, o volume conjuga nomes e lugares verdadeiros com narrativa ficcional, valendo-se da beleza geográfica do Espírito Santo como cenário.

A excelência de suas narrativas curtas rendeu-lhe o convite para integrar as antologias “Enquanto Houver Natal – Oito estórias de ficção científica” (1989, Editora GRD); “Estranhos Contatos: Um Panorama da Ufologia em 15 Narrativas Extraordinárias” (1998, Caioá Antologia) e o segundo volume dos “Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica” (2010, Editora Devir).

A poesia haikai entrou na sua vida na década de 1950, por meio de um filme de Akira Kurosawa. Desde então, o jornalista sempre manteve o encantamento por essa forma poética de origem japonesa, que valoriza a concisão e a objetividade. Em 1990, incentivado pelo editor Massao Ohno, reuniu algumas dessas criações acalentadas há anos na obra “O Livro de Haikais”, que ganhou versão bilíngue, em português e italiano, em 1994, denominada “Atlântico”.

Complementam a produção poética de Marien Calixte as obras “Não Amarás” (1991), São Paulo, editada por Massao Ohno; “Lua Imaginária” (1994), São Paulo, novamente pela Editora Massao Ohno; “Le Vent de L’Autre Nuit - O Vento de outra Noite” (1996): poemas bilíngües: francês e português, Vitória: Aliança Francesa; a edição alemã deste livro, de 1997; e “Evocação da Ilha de Vitória”, em duas edições, de 1995 e 1999, do qual extraímos esta singela demonstração de amor pela capital do Espírito Santo:

 

Para apreciar uma ilha

recomenda-se ficar a sós

Quando partilhada,

Uma outra ilha será.

 

O derradeiro livro, “Herança do Vento”, foi lançado em 13 de dezembro de 2006, sob a chancela da editora Cidade Alta. Trata-se de uma coleção de haikais de seus livros anteriores que traz, ainda, poemas avulsos do autor publicados em coletâneas na Itália, Alemanha e França, e dois artigos da escritora e tradutora Olga Savary.

No campo da biografia e dos estudos sobre a história do Espírito Santo, a contribuição de Marien Calixte também se faz significativa. A mesma se verifica, inicialmente, com a biografia “Florentino Avidos: Um Homem à Frente do seu Tempo”, publicada em 1988, sobre o presidente do Espírito Santo (1924-1928) e senador (1929-1930) durante a República Velha.

Por sua vez, “Maurício de Oliveira - O Pescador de Sons” (2001) representa o reencontro do jornalista e escritor com o seu passado afetivo e a celebração de uma amizade de cinco décadas com o violonista e compositor Maurício de Oliveira, considerado o maior músico do Espírito Santo.

Completam suas obras biográficas o livro sobre o promotor público e deputado estadual Edson Machado e o perfil de Alfredo Copolillo, o primeiro distribuidor de jornais e revistas do Espírito Santo, retratado no volume “Imprensa” da Coleção “Escritos de Vitória”.

O espectro literário de Marien Calixte estendeu-se à literatura infantil, gênero no qual o autor desenvolveu, juntamente com Milson Henriques e Celso Mathias, uma coleção de títulos de caráter eminentemente lúdico, entre os anos de 1970 e 1980. Compõem esse mosaico de letras e ilustrações voltados para a pureza das crianças os volumes “Os dois anjos da guarda de Luísa”, “O vagalume e o violinista”, “O caracol e a plantinha”, “O Coelho Zélio inventa uma orquestra” e “O cabrito bebê passeia na nuvem”, todos publicados pela editora Sem Fronteiras.

Das letras, partimos para a pintura, território em que Marien Calixte participa da primeira geração de modernistas no Espírito Santo ao lado de Maurício Salgueiro, Raphael Samu e Carlos Chenier. Incentivado pelo artista espanhol Robert Newman, que se radicou em Vitória nos anos 1960, Marien arriscou-se a transpor suas emoções para a tela, e o resultado de sua primeira série de cinco quadros foi o prêmio de Menção Honrosa no Salão Nacional de Artes.

Após essa viagem pela vida e obra de Marien Calixte, voltemos então ao início deste texto, mais precisamente a 09 de junho de 2014, data em que fui eleito para ocupar a cadeira de número 26 da Academia Espírito-Santense de Letras, sucedendo o doce imortal na instituição que comemora agora o seu centenário. Recebo um telefonema de sua esposa Terezinha Calixte, companheira de 50 anos e responsável pela sólida base emocional e amorosa sobre a qual o mestre edificou sua notável carreira.

Com a voz embargada pelo pranto incontido, Terezinha comunica a minha eleição para a AEL, emendando em seguida:

- Marien deve estar feliz. Ele o considerava como um filho.

Ao receber a boa nova da querida amiga, me veio à mente uma única resposta:

- Então estamos em sintonia: eu tinha por Marien a mesma admiração que um filho tem pelo pai.

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-santense de Letras / 100 anos – Vitória (ES) Vol 26 -2021
Autor: José Roberto Santos Neves. Cadeira 26 da Academia Espírito-santense de Letras
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2022

 

 

 

 

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