No fim, apenas dívidas – Por José Maria Ramos Gagno
Quando Hugo Borges Filho me vendeu O DIÁRIO, em 1980, o jornal estava bem. Mas, caminhava paralelamente ao jornal uma dívida crônica com a Previdência Social, cujas contribuições tinham deixado de ser recolhidas havia mais de dez anos, da mesma forma que o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.
Além disso, era difícil conseguir o papel, que era vendido somente com pagamento antecipado. Os grandes fornecedores do Rio de Janeiro e São Paulo só mandavam as bobinas com a remessa do dinheiro. Se o pagamento fosse em cheque, só mandavam o papel depois que compensassem o cheque.
Era muito difícil manter o jornal. A tiragem no meu tempo chegava a uma média diária de cinco mil exemplares contra 10 mil exemplares de A Gazeta. Como apenas 4% da população lêem jornais, a nossa tiragem era considerada bem sucedida. E o jornal era feito a quente na fundição. As manchetes eram criadas, às vezes, de maneira a atrair a atenção do leitor. Quando nós preparávamos uma manchete apimentada, dizíamos que no dia seguinte ia sair lenha.
Tínhamos uma página policial e uma editoria de Política muito lidas. Havia uma preferência da população por nossas páginas policiais porque os nossos jornalistas de polícia eram muito corajosos e, além disso, nós lançávamos mão do trabalho de free-lancers, colegas de outros jornais que vendiam matérias para O DIÁRIO e garantiam um bom padrão editorial.
O mês de abril era a época de melhor faturamento porque a lei das S/A determinava que as sociedades anônimas publicassem seus balanços até o dia 30 daquele mês. Eu cobrava menos, mas esse tipo de publicação também não era suficiente para manter em dia as finanças, mesmo porque muitas empresas davam preferência aos jornais de maior circulação, como A Gazeta e A Tribuna.
Isto tudo foi complicando a vida do jornal. Chegou um momento em que a situação ficou praticamente inviável, embora fizéssemos todo o possível para não atrasar o salário dos jornalistas. A Consolidação das Leis do Trabalho permitia que se pagasse o salário até dez dias úteis após o vencimento do mês. Até aí nós conseguíamos pagar, além de dar um vale semanal, uma espécie de adiantamento. Mas chegou um momento em que não foi mais possível continuar. Começamos a atrasar. Algumas vezes, na véspera de um dia que ia fechar com muita publicação de balanço os jornalistas e gráficos não faziam o jornal, e isso dificultava ainda mais a situação.
Durante o tempo em que fiquei em O DIÁRIO, tive somente uma ação contra o jornal, ajuizada pelo governador Eurico Rezende porque, segundo o seu entendimento, o jornal o teria injuriado. Mas o juiz absolveu o jornal. Esperto, o autor da matéria localizou uma frase dita pelo governador, onde, segundo a língua portuguesa, havia uma incorreção de linguagem. O jornalista se defendeu argumentando que havia dito que o governador era corrupto no uso do vernáculo. Foi o único processo que o jornal sofreu na minha época.
Por ironia da vida, eu havia respondido a um processo criminal por causa de O DIÁRIO, que depois veio a me pertencer. Eu era advogado no processo do desaparecimento da menina Aracelli, de 8 anos, que, após algum tempo, teve seu corpo encontrado. Eu advogava para as pessoas envolvidas, e havia uma que era considerada testemunha chave: a Almerinda, cozinheira do Bar Franciscano, que afirmara ter visto a menina recolhida em cárcere privado no bar.
Eu fui à casa dela e lá tive dificuldades, pois ela não queria falar. A filha disse que Almerinda já tinha perdido o emprego e eu disse que arrumaria outro emprego pra ela. Então, a filha disse que a mãe estava doente, precisava ir ao médico mas não podia porque estava sob ordem do delegado, que havia proibido que ela saísse. Eu disse: "Não tem problema". No dia seguinte saiu a manchete: "Advogado tenta corromper testemunha". Na época, o promotor da 2ª Vara Criminal, onde corria o processo, apanhou o jornal e representou ao juiz com o jornal. A matéria tinha o meu nome. E por isso, eu fui processado criminalmente, mas acabei sendo absolvido.
No período em que eu dirigi o jornal, 64 famílias viviam dele. Mas a situação estava insustentável. Havia créditos, mas não se conseguia receber. Fechar o jornal com os funcionários dentro do jornal seria impraticável. Então, eu fui lá e deixei terminar a edição de domingo no sábado de madrugada. No domingo eu lacrei o jornal e na segunda não deixei que ninguém trabalhasse mais. Foi uma situação trágica, eu tive vigília noturna na minha porta. Tal fato gerou comoção social e foi objeto de notícia até no Jornal Nacional, porque O DIÁRIO circulava havia 25 anos e já era considerado uma tradição.
O Marien Calixte, coitado, que foi superintendente mais tempo do que eu, sofreu até pouco tempo atrás, tendo até obras de arte penhoradas por reclamações trabalhistas promovidas por jornalistas que estavam buscando os seus direitos.
Eu perdi um patrimônio, salas comerciais, telefones, carros. Perdi tudo. Mas, aos poucos fui me recuperando. Mantive meu escritório de advocacia, era procurador do Estado, vereador na Câmara de Vitória e professor. Trabalhava uma média de 17 horas por dia.
Até hoje, alguns jornalistas mais antigos são magoados comigo porque O DIÁRIO era uma fonte de emprego. Eu e Fernando Jakes ainda tentamos reeditar o jornal. Nós entregamos as máquinas aos jornalistas e fizemos uma cooperativa. Mas não deu certo. Eles fizeram alguns meses. Cada um buscando matérias para pagar a todos. Às vezes, um jornalista trazia uma matéria paga e, com o produto daquela receita, ele se pagava e pagava o outro mais amigo. Mas não queria pagar o gráfico. Apesar do esforço, a tentativa não deu certo. E aí eu decidi acabar com a Editora Gráfica O Diário.
Alguns profissionais ingressaram em juízo, mas a maior parte nos procurou. Nós tínhamos a documentação, foram feitas justificações administrativas perante o INSS e foram aposentados quase todos. Os mais novos também não ficaram no prejuízo. Estes nós pagamos porque até com a minha renda particular da advocacia eu fui acertando as contas com os funcionários.
Fonte: O Diário da Rua Sete – 40 versões de uma paixão, 1ª edição, Vitória – 1998.
Projeto, coordenação e edição: Antonio de Padua Gurgel
Autor: José Maria Ramos Gagno
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2018
GALERIA:
Plinio Marchini. Escritor e publicista. Dirigiu vários jornais no Estado, estando atualmente à frente do matutino “O Diário”
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