O índio na literatura do Espírito Santo - Por Francisco Aurélio Ribeiro
Coma, coma, enquanto há pão;
Beba, beba, enquanto há água;
Um dia virá quando o pó escurecerá o ar,
Quando uma praga debilitará o solo,
Quando uma nuvem surgirá,
Quando uma montanha se erguerá,
Quando um homem forte apoderar-se-á da cidade,
Quando a ruína cairá sobre todas as coisas,
Quando a tenra folha será destruída,
Quando os olhos se fecharão na morte;
Quando aparecerão três sinais numa árvore,
Pai, filho e neto pendurados mortos na mesma árvore;
Quando a bandeira da batalha será içada,
E o povo se espalhará por dentro das florestas.*
Há cerca de quinhentos anos, os brancos chegaram à América, trazendo na sua esteira civilizatória a ganância pelo ouro e pela prata, disseminando a miséria, as doenças, provocando o genocídio e sepultando a possibilidade de um desenvolvimento autônomo de milhares de pessoas, culturas e línguas.
O germe europeu de nossos ancestrais foi crescendo e multiplicando-se, de geração em geração, no ventre das mulheres índias e das negras trazidas como escravas da África. Darcy Ribeiro estima em 5 milhões de índios, no Brasil, na época da chegada dos portugueses, enquanto a população de Portugal não passava de 1.500.000.(1)
Segundo os historiadores, no atual Estado do Espírito Santo, habitavam os seguintes grupos indígenas: Tupiniquins (e outros), Temiminós e Goitacases, no litoral, Botocudos, nas matas do Norte: Aimorés e Uatus, às margens do Rio Doce, Puris e Tamoios, na região sul do Estado. A mesma fonte revela que os indígenas do Espírito Santo falavam a língua tupi, gê ou macrogê(2).
Mário Freire assim relata o encontro entre invasores e nativos:
Árduas deviam ter sido as lutas com os indígenas, relembradas pelo primeiro donatário, nos raros documentos conhecidos da época(...) Num ponto sempre agitado por aimorés, goitacases e tamoios, tribo dos tupinambás, difícil seria, naquele tempo, viver em paz.
Transmigrações anteriores à dos Tupis teriam trazido do sul, até esta parte do litoral, alguns indígenas cuja inicial "gua"(mau) atestava-lhes as disposições, dessa forma teriam surgido os goitacases, e, vindos pelo sertão, os guaimorés ou gaimurés, como pronunciavam os antigos. Desafeitos à navegação, os últimos preferiram as matas do interior, onde se viram comprimidos pelos tupiniquins, quando estes, hábeis na caça e na pesca, buscaram o Cricaré. Os últimos eram vulgarmente denominados botocudos: e os aimorés também conhecidos como coroados.
Destacaram-se depois os puris, na região do Castelo, e registram nossas crônicas alusões aos temiminós (sic).
A enumeração permite imaginar o que devia ter sido no Espírito Santo, a luta dos primeiros colonos aventureiros.(3)
Maria Stella de Novaes assim se refere àqueles primeiros tempos:
Os goitacás, porém, que viviam na costa do mar, no campo e, segundo Fernão Cardim, não queriam viver nas matas, estranharam o recesso da floresta e, tomados pela saudade do seu habitat saturado pela magia das ondas, regressaram cautelosamente à praia. Mboab !... exclamaram, atraídos pelos agrados e acenos do estrangeiro e exemplo do trabalho organizado.
E mais à frente:
O cativeiro e o extermínio do índio, a imposição do vestuário, à moda europeia, em clima tropical, e outras normas coercivas e absurdas que, posteriormente, chegaram até à proibição de falar-se a língua tupi, atestaram, às gerações seguintes, o atraso, a visão estreita dos colonizadores.
Quanto não se perdeu, no Espírito Santo (talvez, no Brasil inteiro...), do artesanato, da bromatologia, da terapêutica, da religião, do próprio conhecimento da língua tupi e outras fontes de estudos indianistas, hoje, prezadas e investigadas pelos sociólogos, poliglotas, folcloristas, antropólogos, etc !...(4)
Apesar das diferentes posições dos dois historiadores, ambos se identificam pela visão colonialista da questão indígena. O primeiro adota o ponto-de-vista do branco conquistador; a segunda, lamenta a perda do índio como "objeto científico" de análise.
O certo é que a primeira reação indígena contra os portugueses foi de espanto e fuga: a segunda, foi de volta e reconciliação; pelos maus tratos recebidos, reagiram violentamente, dificultando o máximo possível a dominação, Saint-Hilaire, 300 anos depois, assim o relata:
Os portugueses conseguiram, inicialmente, muitas vitórias sobre os apavorados indígenas; fundaram, perto da Baía do Espírito Santo, a cidade que se chama Vila Velha; construíram um forte e plantaram cana-de-açúcar.
Esta situação favorável não foi, porém, duradoura. Exasperados pelas crueldades dos portugueses, que, segundo a expressão de um dos seus historiadores, se revelaram mais bárbaros que os próprios bárbaros, os índios destruíram as plantações de seus inimigos, queimaram-lhes as casas e massacraram todos quantos lhes caiam nas mãos.(5)
Na luta contra os indígenas, no Espírito Santo, morreram os dois únicos nobres vindos com Vasco Fernandes Coutinho, o primeiro donatário do Espírito Santo, em 1535: D. Jorge de Meneses e D. Simão de Castelo Branco. Também Fernão de Sá, filho de Mem de Sá. Governador Geral do Brasil, morreu na guerra contra os índios, na capitania do Espírito Santo, em 1558, no rio Cricaré.
Não se pode precisar o número de índios existentes no Espírito Santo, na época da chegada dos portugueses mas era muito grande, visto que toda a região era habitada por eles, pela abundância de matas, rios, caça e pesca. Foram os jesuítas os verdadeiros conquistadores desses povos, com sua persuasão, tendo chegado ao Espírito Santo, em 1549, quando o Pe. Afonso Brás afirma ser esta "a melhor e a mais fértil Capitania de todo o Brasil", e o seu donatário a chamava "meu vilão farto".(6)
Vilão Farto é o nome, também, da narrativa romanceada em que Renato Pacheco pretendeu recontar a vida de Vasco Fernandes Coutinho, o infeliz primeiro donatário da capitania do Espírito Santo. Assim descreve o romancista o primeiro encontro de portugueses e índios, no Espírito Santo.(7)
Nas praias do litoral viam homens de cor parda, de bons corpos, nus como quando foram paridos. Alguns portavam arcos pretos compridos e lançavam sobre a Glória flechas pontudas, que não causaram, nos tripulantes, lesão alguma(...) (p.27)
Depois de passarem pelo Mucuri, limite legítimo de sua Capitania, tentaram subir o Rio Cricaré, mas os bravios nativos e o mar baixo que encontraram, com perigo de se perderem, impediram-nos de ali passar.(...) (p. 28)
23 de maio de 1535. (...)
Mais uma vez, os nativos, em terra, lançavam-lhe flechas, mostrando que não queriam amizade com os recém-vindos.
À ordem de Dom Vasco, duas peças de artilharia vomitaram fogo e ferro, surpresa e correria, na prainha!(...) (p.28 e 29)
Os nativos, ante o poderio dos portugueses, fugiram para as ilhas encravadas nos manguezais, onde conseguiram farta e fácil alimentação. (p. 29)
Os primeiros navegadores que chegaram à América foram amigavelmente recebidos pelos povos aborígenes. Suas lendas diziam que, um dia, deuses desceriam do céu, ou da terra sem males, onde o sol nasce. Não seriam aqueles estranhos de pele branca os anunciados deuses?
A cordialidade que se nota nos relatos de Colombo, Vespúcio, Pigafeta, Caminha, em relação ao primeiro encontro de culturas diversas, já não existe mais em 1535. Em poucas décadas, o bom selvagem se transforma em ser "bestial".
O branco, destruidor apocalíptico, com suas armas de fogo, dizimava o gentio, numa verdadeira chacina genocida. O índio tentava reagir mas a superioridade das armas dos brancos era notória.(...) (p. 31)
O mundo, no mito do índio, está prestes a acabar (...) (p.31)
O vilão farto era, no século XVI, um ponto de encontro das mais variadas tribos indígenas, impressionando os portugueses com seus cantos e danças, com sua nudez, com sua valentia na guerra.
Eram os tupinaés, da Vila Velha, até a Capitania de Pero Goes, os tupiniquins, ao norte, os Aimorés, tapuias vindos do longínquo oeste amazônico, ora nos sertões do Rio Doce, e os puri, no extremo sudoeste, além de muitos outros grupos culturais de fala tupi, em busca de bons territórios de caça e pesca. Moravam em malocas os índios, alguns índios se aproximavam da vila dos “mboab”, ficavam maravilhados com as novidades, faziam pequenos furtos e, muitos lá se fixaram como semi-escravos, pau para toda a obra, ensinando aos brancos como viver no ambiente novo, pescarias, preparo de algodão nativo, pescar, tirar palmitos das abundantes palmeiras, a sobreviver.
E logo se iniciou um intenso escambo de mercadorias: anzóis, facas, espelhos, tesouras, guizos, cintos, cartas de baralho, em troca de boa e fresca carne de caça, raízes de inhame, milho. Um rei de ouro, do baralho cigano, com sua lourice, valia seis abacaxis apetitosos.
E o escambo do sexo, nas praias, o mar por testemunha: os portugueses vão topar com as formosas índias despidas, bem moças, com seus cabelos compridos muito pretos, que se banham alegre e inocentemente. Dão-lhes famintos beijos, iniciando-as num agrado desconhecido e delicioso. Elas choram e logo riem, e com esquivanças de corpo, de quem não quer ir mas vai, acabam voltando aos braços dos colonos. (p.32)
Pode-se observar a visão preconceituosa, machista, colonialista do branco, na descrição imaginária feita por Renato Pacheco da "conquista das índias". Na verdade, as nativas foram violentadas pelo invasor. Não se entregaram a ele com a volúpia, a aceitação passiva descrita pelo ficcionista historiador. Tudo isso não passa de uma "invenção" e deturpação da verdadeira história da conquista das Américas.
Vasco Fernandes Continha escreveu para Dona Ana Vaz:
Sem rei, nem limites de Reino, vivem os índios em constantes correrias, em busca de terras de caça e pesca. Cavoucam o chão com bastões, usam machados de pedra, caçam com arcos e flechas, e pescam com redes e armadilhas. Estão cortando pau-brasil para nós, quando não estão em suas capixabas, pequenas roças de algodão, milho e uma raiz daqui muito apreciada, a mandioca. Dormem em redes tecidas de algodão, estendidas no ar. Comem sentados no solo: raízes, frutas, peixes, carne de caça, ostras e mais frutos do mar. Obedecem a caciques e pagés, pois crêem que se não obedecerem serão transformados em urubus, uma espécie de corvo ou abutre.
Usam, no mar e rios, uns barcos feitos de troncos, canoas com remos semelhando pás de fornos de padaria. Seus anzóis são de chifre, seus arpões são de osso, em razão do que apreciam muito os nossos de ferro e aço.
São de cor parda, leonada, tendendo para o vermelho, e usam cabelos curtos e espessos, sem barba. Depilam-se. Têm gentil disposição e bela estatura. Fora algumas lutas iniciais, estamos nos dando bem.
Usam jaquetas, chapéus e barretes, tecidos de penas de ave, principalmente papagaios. Alguns homens adornam os lábios. Andam nus como nasceram.
Tenho tido dificuldade com alguns colonos, pois os índios lhes oferecem as filhas como escravas.
Nas lutas eles são bravos, qual mouros, mas, a ferro e fogo, nós os estamos amansando. (p.32-33)
A obra de Renato Pacheco reconstrói, ficcionalmente, os primeiros momentos de Vasco Fernandes Cominho, no Espírito Santo; mais do que vencedor dos índios, nosso infeliz donatário foi vencido por eles, e seus hábitos. No entanto, os melhores relatos sobre os índios que viviam no Espírito Santo, na época da colonização, foram dados pelos jesuítas, sendo pe. José de Anchieta (1534-1579), o principal deles.
Anchieta chegou ao Brasil em 1553, juntamente com o pe. Manuel da Nóbrega. Dedicou-se à catequese dos indígenas, para o que aprendeu a sua língua (o tupi), que fixou em uma gramática. Escreveu poesias, peças de teatro didático-religiosas, em que registrou, em muitas delas, cenários e costumes dos indígenas capixabas, das primeiras devoções no Espírito Santo ou das primeiras vilas construídas pelos portugueses. Dentre os seus poemas mais conhecidos estão: "De São Maurício" (primeiro padroeiro da Vila de Vitória, onde se veneravam relíquias suas); "Ao P. Costa" (dedicado ao superior da casa do Espírito Santo); "Quando, no Espírito Santo, se recebeu uma relíquia das onze mil virgens", em que se refere à Vila de Vitória: "Da senhora da Vitória/ "Vitória" sou nomeada". (Evidentemente, Vitória dos brancos/portugueses contra os índios); "Ao P. Bartolomeu Simões Pereira", amigo particular de Anchieta e que procurou refúgio no Espírito Santo. Seus poemas e teatro, escritos em tupi, no entanto, é que melhor retratam os índios, a tentativa de convertê-los e sua situação diante dos brancos. Alguns exemplos, em tradução para o português de M. de L. de Paula Martins.(8)
Dia da Assunção, quando levaram sua imagem a Reritiba.
-Vem, Virgem Maria,
mãe de Deus, visitar esta aldeia
e expulsar dela o demônio.
Oxalá, por teu amor,
ela se santifique.
Afasta as enfermidades
-febres, disenterias,
as corruções e a tosse-
para que seus habitantes
creiam em Deus, teu filho. (p. 580)
-Vivemos como selvagens,
somos filhos da floresta.
Viemos saudar-te,
renunciamos aos vícios (p.582)
-Deixei a floresta
em tua honra.
Ama-me muito,
livra-me todo mal (p. 583)
-Venho do Rio Parati,
para ver a mãe de Deus,
tendo-me pintado todo
em sinal de alegria.(p.591)
Minha gente, antigamente,
seguia usos primitivos.
Os pobres, depois, procuraram-na,
anunciando-lhe Deus(p. 593)
Atravessando o grande rio
eu vim: queria ver-te.
Vem, nossa protetora!
Oxalá possa conhecer-te
o meu pai Tupinambá!(p. 593)
Uma verdadeira lavagem cerebral" é o que se pode constatar nos versos acima. Os índios eram tidos como selvagens, convivendo com o demônio, antes da chegada dos jesuítas, cheios de vícios. Por isso, tinham de ser convertidos à devoção dos brancos, para se salvar.
Na aldeia de Guaraparim
Diabo 1:
Ai! Tenho andado, debalde,
à procura de um povo.
Irra! Sempre me faz sair
da taba o sacerdote,
expulsando-me para bem longe.
Antigamente, estes aldeões
viviam sob meu domínio.
Ameaçando-me Nossa Senhora,
todas as minhas presas
escaparam da minha mão.(p. 614)
Diabo 2:
-Aqui estou. Tu me chamaste?
Confia em mim
Quando, em meu grande fogo,
Chegam as tuas ordens,
eu sempre alvoroço esta aldeia.
Perturbo os corações das velhas,
irritando-as, fazendo-as brigarem.
Por isso, as malvadas se engalfinham,
o fogo crepitante as toma
e acomete os índios.(p. 615)
Diabo 3:
Em vão, para se destruírem,
gostam de disparar flechas,
Não vê! Eu os flecha a todos,
prendo-os, amarro-os,
apanho-os para minhas presas (p. 617)
(...)
Eu aqui, com o vinho.
vou sempre fazendo entrarem
todos os beberrões
-homens e mulheres-
no meu sistema (p. 618)
O projeto ideológico de denominação dos jesuítas foi completo, tendo constituído, no Brasil, um Estado religioso dentro do Estado português. Por isso, foram expulsos por Pombal, em 1759. Neste século, poucos eram os brancos, no Espírito Santo (cerca de 500, segundo Saint-Hilaire) e quatro eram as reduções indígenas: Reritiba (Anchíeta); Guarapari; São João e Reis Magos (Nova Almeida). Segundo Saint-Hilaire, "Depois de extinta a Companhia de Jesus, que foi criada em 1535, os índios, raça fraca e descuidada, ficaram som apoio". Ainda afirma:
Tratados como escravos, condenados a árduos trabalhos, os índios foram destruídos ou se dispersaram.
No tempo dos jesuítas, havia em Reritiba ou Benevente e em seus arredores doze mil indígenas; (...) em 1820, toda a população da paróquia de Benevente não passava, segundo Pizarro, de 2.500 indivíduos".(9)
Os índios capixabas foram quase todos exterminados. Remanescentes dos Tupi-guaranis ainda habitam o município de Aracruz, aculturados. O último aldeamento botocudo existiu até os anos 40, em Colatina. Remanescentes dos mashacalis, patachós e malalis ainda vivem no vale do Cricaré, no norte do Espírito Santo, e famílias isoladas de Puri-Coroados podem ser localizadas em Conceição do Castelo e Iúna.(10)
A literatura do Espírito Santo quase nada registra da presença dos indígenas, mesmo no século passado, quando o índio foi escolhido pelos românticos como modelo de idealização. Alguns poemas recolhidos por Elmo Elton fazem pequenas referências a eles. O pe. Antunes de Siqueira (1832-1897), patrono da cadeira nº 1 da AESL, assim se refere à antiga vila de Guarapari, fundada por indígenas e jesuítas:
Longa praça, melhor rua direita,
casas mui asseadas, bonitinhas,
gente mansa, leal, não contrafeita,
com seu belo rapazio e mulatinhas,
com quem louco amor tanto suspeita,
nas formas e olhar engraçadinhos:
Eis aqui os esmaltes do lugar,
que uma coisa é ver, outra gozar.
Índia, a grande mó dos habitantes,
se estende por suas possessões,
amigas famílias são restantes,
cheia de crendices e visões:
eclipses da lua tão constantes
põem aflitas aquelas multidões
bradando: -Vovó, está dormindo,
sem ver que o mundo está caindo?”(11)
Outras vezes, determinada pessoa é chamada de índio, por desprezo, humilhação e desejo de rebaixá-lo, socialmente. É o que se vê no seguinte poema de Graciano Neves (1868-1922):
Um tal Tupinambá, seboso vate
que o português impávido estropia,
faz sonetos a seis mil reis por dia
e "chimpa" em cada verso um disparate.
(...)
Uma espessa coroa de campim
merecia na fronte este pateta
e uma "albarda" este bardo tão chinfrim.(12)
E assim canta o poeta Celso Bonfim (1917-) em "Madrugada nas ruas de Vitória":
Eu sou da Vitória.
Venci Goitacás.
Lutei a valer
(...)
Eu fui bom soldado,
valente, queimado,
do Forte Mauricio.
Sofri um suplicio
danado da vida
no Forte São João...
(...)
Eu fui capelão
em mil setecentos
e setenta
da capela de Nª Srª do Rosário.
(..)
Fui caramuru,
venci peroá.
Quem saiu ganhando
do conflito?
-Foi São Benedito.
(...)
Eu vi, no Queimado,
a morte dos negros.
No cais da cidade
vivei a D. Pedro,
Teresa Cristina.
(...)
Um dia serei
um forte guindaste
erguendo café...(13)
Em seu poema, fica evidente a identificação ideológica com o invasor, o branco, o colonizador, o detentor do poder (econômico, político ou religioso). Por isso, a afirmação categórica: "Eu sou da Vitória, Venci Goitacás". (p.33) Isso se deve, provavelmente, ao que afirma Brookshaw sobre o índio, no Brasil: "... o primeiro símbolo humano de uma identidade nativa foi o habitante original, o índio. No Brasil, o índio foi uma figura muito, mais abstrata do que na maioria dos países de língua espanhola, dado o fato que na época da independência os únicos índios que restavam viviam bem afastados do núcleo de habitação dos brancos, e, portanto, fora da estrutura social da nação."(14)
Dentre a pouca literatura publicada no Espírito Santo, que faz referência ao indígena, uma obra se destaca, Romanceiro de Amuia, de Kátia Bento, de 1980.(15) Amuia, em tupi, é avó, e a obra é dedicada à "inocência dessa amuia, a seus descendentes e aos índios brasileiros, vítimas de outros Capitães-do-Mato ao longo de quase cinco séculos de violência".
Darcy Ribeiro, em sua busca da "formação e o sentido do Brasil", afirma que "Em poucas décadas desapareceram as povoações indígenas que as caravelas do descobrimento encontraram por toda a costa brasileira e os primeiros cronistas contemplaram maravilhados". Isto porque, "Para os colonos, os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de bicho que gente, só os recomendava à escravidão.”(16).
Quatro grupos indígenas habitavam o Espírito Santo, na época do descobrimento: Tupi-Guarani; Mashacali, Patachó e Macali; Gê(Botocudo) e Puri-Coroado. Este vivia no sul do Estado, no vale do Itapemirim, na região montanhosa de Castelo e na Serra do Caparaó. Alguns de seus remanescentes ainda existem em Conceição do Castelo e Iúna, sem qualquer identidade indígena.(17)
Kátia Bento é natural de Castelo, terra de origem dos Puris, de quem é descendente, como eu. Segundo ela, na "Nota da Autora". "O Romanceiro de Amuia vinha sendo ensaiado inconscientemente desde quando passei a desenvolver em vários trabalhos a minha paixão pelo Reino Vegetal (...) verifiquei que AMUlA era a Raiz buscada"(p.06) Em sua busca da origem, da raiz, Kátia Bento associa três figuras de seu imaginário: Adão, Anchieta e Amuia. Essa trilogia, para ela, são "portadores de perfeição absoluta, em Inocência e Graça", carreando "Valores ideais do ser humano puro, em estado de paraíso"(p. 06-07)
Na busca de sua origem, Kátia Bento encontra AMUIA, "menina puri, depois minha bisavó, que vivia e brincava em meio à floresta mineira, na segunda metade do século XIX" (p.07). Recorrendo à memória dos familiares velhos, recolhe informações do passado dessa ancestral indígena que, na verdade, é a matriz do povo brasileiro. Quando o branco português veio para o Brasil, não trouxe suas mulheres. Foram as índias e, mais tarde, as negras africanas, com quem se relacionaram, as mães primeiras desta grande nação mestiça, o Brasil. Kátia Bento homenageia todas elas, na figura de sua amuia, escolhendo, para isso, a forma poética medieval do romanceiro. Este constitui-se de poemas ou canções populares, em redondilhas maiores ou menores.
O primeiro poema, ou cantiga, é "Era uma vez esta foto colada na memória”. Nele evoca a menina puri, em sua inocência original e em idílio com a natureza, a partir da imagem de uma jovem puri, retratada por Debret:
Índia puri pé descalço
torrão de chão no seu passo,
a noite fez seu cabelo
breu liso que esvoaça.
(...)
Puri em paz no instante
perfeitamente intocado -
no veio, vau incessante
do tempo em gota passando. (p. 15)
No "Primeiro canto nativo"(p.16-17), o eu-lírico do poeta tenta recapturar o cenário da criança indígena, já antevendo os perigos futuros:
Me dá, dá só um pedaço
desse momento encantado
antes que a água doce
caia em sanguínea emboscada. (p. 16)
Em "Outro canto nativo - como jaculatória, água batendo na pedra, refrão'', o eu-lírico está seduzido pela imagem que elabora em seu imaginário:
Te quero tocar os dedos
dar-me de abraços e beijos
entre teu corpo de fruta
(...)
Mergulhemos
nesse nosso rio manso
nesse pedaço de instante
puri - de paz e poema.(p.18-19)
As imagens de "água", "mata", "terra", todas ligadas à ideia de fertilidade, maternidade, são as mais presentes nos poemas desse Romanceiro de amuia.
É, ainda, a imagem da fotografia que desperta o imaginário da poeta em "Gravado na paisagem mágica do tempo algo que o poema fotografa"(p.20- 21). Nele, a autora dialoga com o passado, incorporando sua imagem à da outra.
Alguém que teria
sua alma tapuia
(Então me segreda:
-Vou ser sua amuia!). (p.21)
A mesma identificação se repete em "Instantâneo"(p.22):
- herança de avó e neta-
índia puri e poeta.
Há um "Corte no retrato"(p.23) e "Do rasgo do retrato a imaginação tenta recompor um outro fragmento"(p.25). A imagem da avó, que se perde, momentaneamente, associa-se à de Nossa Senhora, Tupanci, na linguagem indígena:
Grito e choro e corro:
AMUIA!
-soa meu grito tapuia.
E Tupanci me carrega
da cena aberta na mata.
Por mais que o grito se escorra
a mão de Nossa Senhora
bem segura à minha mão
me conta que "ela não ouve
nem me vê". Mas inda trago
no meu o seu coração. (p.25-26)
Em "Tomada de cena da dimensão do poema segundo o que foi e vem sendo contado e recontado"(p.28 e 29), surge o "Capitão do mato", com o chicote na mão, à cata de índios, para escravizar. Quando menino, eu ouvi de minha avó que a sua avó fora "pega a laço". Não entendia bem o que ela dizia. Kátia Bento reconstrói, através da poesia, a violência dessa cena em "Selva selvageria sevícia - surge o vilão deste fato, o vil capitão-do-mato":
Ferida de toda ira
mão braba do Capitão.
Tocada de todo açoite
chicote do Capitão.(p.31)
É um dos mitos nacionais a candura dos portugueses, que teriam imposto sua civilização com menos violência que outros colonizadores. Na verdade, toda colonização é violenta, e a posse e a propriedade dos colonizados, na história da humanidade, é sempre feita pela força e pela violência. Em "Biografia do Bruto-Bento Barbudo, Capitão-do-Mato", Kátia Bento descreve seu antepassado, esse Bento, "mulato servil", "vil diabo/anhangá e caipora"(p.32-33). Depois, recria a cena em que "O capitão-do-mato laça, violenta e amarra a cunhatã colocando-a em sua primeira cela sobre o cavalo - e um pouco do que ela vai rezando pelo caminho"(p.37-38).
Em "Cunhantã chunhamucu cunhã-subitamente"(p.39), o Bento Barbudo "fez fêmea a menina". Se depois casou-se com ela, fazendo-a sua esposa, mãe, bisavó, "nada lava seu ato de covardia", diz a autora. Esse nunca seria "amuiia"(avô).
A autora conclui seu Romanceiro trazendo a memória de sua bisavó até si mesma. As imagens se colam, num duplo de maternal criação:
gerou-se meu ser puri.
E tal naia tapuia
neste luar RENASCI. (p.41)
Kátia Bento conclui seu Romanceiro, fazendo um "juramento sobre o brasão do sangue" que jamais lhe será tirada a menina puri colada à sua imagem (p.43-44) e em nome do Santo de seu nome (Bento) e do Capitão-do-Mato, seu antepassado, que violentou sua bisavó em sua inocência original reza seu "canto de penitência" (p.45) e entoa um "Bendito" em louvor memória de sua Amuia, "flor de mata em minha veia"(p.47)
Kátia Bento, em Romanceiro de Amuia, faz uma das mais belas obras contemporâneas sobre a memória do(s) povo(s) indígena(s) e do seu sangue que corre nas veias dos brasileiros. Obra de leitura indispensável pelo sentimento, pela beleza lírica, pela correção de posicionamento em relação às poucas obras existentes, da memória dos nossos antepassados indígenas, quase sempre arraigadas de preconceitos e ideologias colonialistas, ou de idealizações românticas dissociadas da realidade.
A obra de Kátia Bento faz-nos reviver toda a história do massacre de milhares de seres humanos, em nome da religião, da cobiça material, da superioridade étnica, da força das armas. É hora de revisarmos a história e de recordarmos o que nos ensina Brandão:
Algumas vozes das florestas, dos desertos, faz muitos anos, têm nos dito coisas muito simples. Estivemos ocupados demais em conquistar para aprender a compreender. O tempo é chegado. Saibamos ouvi-los, povos da terra, filhos das florestas. Eles nos fazem o melhor convite: sermos segundo os nossos termos e apenas mudando o essencial em nossos modos de vida e sistemas de pensamento, não mais "senhores do mundo", mas "irmãos do universo".(18)
Referências Bibliográficas
*Canção maia do Livro de Chilam Balam.
1. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
2. MORAES, Neida L. Atlas Escolar do Espírito Santo. Rio de Janeiro. MEC/FAE, 1986, p.18-19.
3. FREIRE, Mário A. A capitania do Espírito Santo. Crônicas da vida capixaba no tempo dos capitães - mores (1535-1822), Vitória: Vida Capichaba, 1945, p. 11-12.
4. NOVAES, Maria S. de. História do Espírito Santo. Vitória: FEES, s/d,p.16 a 18.
5. SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1974, p. 07
6. Apud. FREIRE, Mário A. de. Op.cit.. p.20
7, PACHECO, Renato. Vilão Farto. Vitória: Cultural-ES, 1991.
8. ANCHIETA, José de. Poesias. Belo Horizonte: São Paulo: Itatiaia/ EDUSP, 1989.
9. SAINT-HILAIRE, A. de.Op. cit., p. 09 e 10.
10. Informações do Documento Estado, p. 08, publicado em A GAZE7A, 27/ 07/1992.
11. ELTON, Elmo. Poetas do Espírito Santo. Vitória: FCAA/PMV, 1992, p. 22-23.
12. ELTON, Elmo.Op. cit., p. 31.
13. BONFIM, Celso e outros. Sintonia das ruas de Vitória. Vitória: Tip. Minerva, 1943, p.31-47.
14. BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983, p.19.
15. BENTO, Kátia. Romanceiro de Amuia. Rio de Janeiro: Fontana, 1980.
16. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. p.53.
17. Documento Estado. A GAZETA. Vitória, 27/07/1992, p. 08.
18. BRANDÃO, Carlos R. "Somos as águas puras". O pensamento aborígene sobre o mundo e seu destino. In: Somos as águas puras. São Paulo: Papirus, 1994, p. 41.
Fonte: Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica, 1996, Vitória/ES
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Capa (execução eletrônica): Renato Costa Neto e Luiz Alexandre Mess
Ilustração: Attílio Colnago
Editoração Eletrônica (texto): Antonio Gil e Alexandre Moraes
Revisão: Reinaldo Santos Neves
Agradecimento especial: Idelze Maria Vieira Pinto
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2021
A obra de Kátia Bento faz-nos reviver toda a história do massacre de milhares de seres humanos, em nome da religião, da cobiça material, da superioridade étnica, da força das armas
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