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O Mestre Armojo. Hermógenes Lima Fonseca, seu tempo, sua história

Cortejo homenageando cem anos de nascimento de Hermógenes, 12.12. 2016

“O rio era tudo de maior importância para minha vida nos primeiros dias da minha infância”

 

Hermógenes, um homem muito além dos parâmetros estabelecidos no nosso século, legítimo representante da essência própria de um povo e da sabedoria simples, nasceu em 12 de dezembro de 1916, no sítio José Alves, na localidade de Palmeiras, distrito de Itaúnas, município de Conceição da Barra, num lugar paradisíaco que mais tarde foi coberto por dunas de areia. O dia anunciava um nome surpreendente... ele mesmo contava de maneira pitoresca como foi o seu registro - no dia do seu nascimento, a folhinha marcava - Santo Hermógenes. Escolhido o nome, seu pai tirou a folhinha e a levou ao tabelião, porém ambos, pai e tabelião, antes de irem ao cartório tomaram uns “mata-bicho” e, com a língua enrolada, o pai pronunciou o nome-Emorge. A folhinha ficou dentro de um livro o que permitiu que, vinte anos mais tarde, o nome fosse alterado judicialmente.

No seu imaginário, descreveu “don sapo, comedor de mosquitos, reuniu orquestra no brejo. Don grilo cantava para me adormecer. Os pirilampos vagavam piscando suas lanternas. O bacurau dizia: amanhã eu vou, amanhã eu vou.” Sem dúvida, era o sítio das Perobas dando as boas-vindas ao menino robusto que trazia no sangue a origem portuguesa mesclada com a dos índios Botocudos provenientes da Serra dos Aimorés.

Sua primeira Escola foi a natureza. Conforme seus próprios escritos atestam, fora um menino que viveu livre, sempre ativo, curioso, que cresceu solto. Ele aprendeu a ler nas águas do mar, nas folhas das árvores, no perfume das flores, desbravando as trilhas pelos matos, tomando banho nos córregos, pescando, convivendo e aprendendo tudo com as pessoas simples do lugar. O próprio Hermógenes registrou: - “tiveram plasmados esses sentimentos ao desabrochar da vida nesse magnificente cenário de alegria estonteante, de infância despreocupada correndo na praia, rolando na areia, pescando no rio, apanhando siri, chupando caju, procurando gagirus, tirando pitanga, colhendo cambucás e saboreando mangabas”.

Com a morte do pai, aos nove anos, foi morar em Vitória, cursar o primário no Orfanato Cristo Rei. O responsável pelas crianças do orfanato, Padre Leandro Del Uomo, deixou-lhe marcas profundas de cidadania e humanismo assim como, o senhor Manoel Bernardino, um bombeiro hidráulico, que lhe fez descobrir não só os caminhos para a ciência, como os da literatura. Após dois anos no orfanato, foi habitar com a mãe e o padrasto- o capitão, nos píncaros da Fonte Grande, numa casinha de estuque, coberta de zinco. Sua criatividade trouxe melhoramentos à precária moradia como, por exemplo, um improvisado chuveiro para o banho. Ele próprio fala da alegria daquele morro, das visitas dos políticos em vésperas de eleição à cata de votos e da tristeza da morte e enterro dos amigos.

A vida é assim; nem toda flores, nem toda espinhos!”

De viva inteligência e curiosidade inata, aos 18 anos, sentiu a necessidade de voltar aos estudos, recuperando com grande interesse o tempo perdido. Ele ingressou na Academia de Comércio Velho Filgueiras e formou-se em contabilidade. No convívio com o amigo Manoel Bernardino, descobriu a palavra e passou a usá-la de forma tão original que foi escolhido para orador da turma. Já nessa época iniciara-se na carreira de telegrafista da Western Telegraf Company chegando a ser presidente do Sindicato dos trabalhadores das Empresas Telegráficas de Vitória. Suas ocupações foram bem diversificadas, de serviçal a contador, de telegrafista a repórter, de sindicalista a político; mas a sua maior paixão sempre foi o povo, a gente simples dos morros e das ruas, de suas singelas manifestações, a fala mesclada de termos pitorescos. Hermógenes calçava seus sonhos com as pedras da rua e os cobria com as estrelas do céu. Um idealista que embalava um projeto ambicioso- a criação da Vila dos Confins- uma espécie de Museu do Brasil do interior. Ele era um gozador! Desencantado com a falta de interesse pelas pesquisas da cultua popular, seu fino humor o levou a imprimir um cartão de visitas onde se apresentava: “Dr. Armojo. – e assim ficou conhecido nas rodas boemias, sobretudo no beco da Laura e do mestre Vitalino em São Torquato- PHD by Cariacica University and master of Caçaroca College”. Em suas produções na Folha Capixaba, jornal do PC do B no ES, era ao mesmo tempo repórter, diagramador, diretor “e tudo”. Isso lhe valeu duas prisões: na primeira, acusado de ser mentor intelectual da subversão no Estado e na segunda, nunca soube o motivo. No partido ele tinha o apelido de IRI que ele próprio definia como I de irreverente, R de rebelde e I de indisciplinado.

Participante ativo e eficaz do Centro Capixaba de Folclore, contribuiu na concepção do Atlas Folclórico do Brasil, na parte do ES. Participou de inúmeras comissões e seminários junto à Coordenação da Funarte e do Projeto Rondon. Esses projetos importantes, lhe permitiram o convite para ingressar na Academia Espírito-santense de Letras. Em seu discurso de posse, um verdadeiro depoimento de vida, ressaltam seus dons de simplicidade e de humildade ao exclamar com naturalidade: “Oi de casa! Oi doutor Zé Moisés! Escancarai a porta que é o povo que chega com seus cacaios culturais nas costas e um picuá de poesia.”

Hermógenes era tido e havido como antiacadêmico, mas rapidamente se integrou e descobriu o outro lado da AEL, e declarou - eu cheguei à Academia como Guimarães Rosa... dizem que ele não queria entrar na Academia... Conquistado pelos amigos acadêmicos Renato Pacheco, José Moisés, Nelson Abel de Almeida entre outros, o novo confrade, de embornal nas costas, do meio do povo, contando “causos” reafirmava: “- a turma de lá é boa, é povo, é gente como nós e faz um trabalho de promoção da cultura capixaba.” Seu espírito crítico levava-o a refletir sobre a eficácia e validade das secretarias de cultura cujos projetos, nem sempre deslanchavam do papel. Ingressando na política, Hermógenes foi então o vereador mais votado da capital, pela legenda do PC do B e do PR. E foi mérito dele, a aprovação de um projeto para a criação do prêmio de literatura “Cidade de Vitória” e da Lei de Isenção e Incentivo às apresentações folclóricas. Preocupado com a realidade brasileira, lançou-se ardorosamente em defesa da Ecologia, rebelando-se contra a depredação do homem à natureza.

Em entrevista ao jornalista Renato Soares, afirmou: “Eu sou é índio. Acho que a forma de viver do índio é muito superior a essa civilização de estupidez.” Sentia-se triste e desolado! E colocou no papel seus desabafos...

“Onde a jaqueira, cujo fruto tinha favos como o mel? o trator arrancou.

Onde as almesqueiras com seus frutos brancos como o algodão? o trator arrancou.

E as pitangueiras, as cambuças, os cajueiros, as maçarandubas de frutinhas vermelhas... as quaresmeiras que enfeitavam as matas? o trator arrancou.

Para onde voaram os periquitos, as maracanãs em bandos alados? o trator arrancou.

Para onde foram os tatus, as pacas, as cotias...as onças que por aqui bestavam procurando comida? o trator arrancou.

 

Descubro nessa força telúrica, a riqueza de estilo de sua lírica popular. Uma trama de arpejos leves de uma sinfonia pastoral contrapondo-se aos acordes plaquês de uma sonata apassionata com efeitos dissonantes, como ecos de lamento à monstruosidade da destruição.

Na minha interpretação, percebo e sinto o desejo de Hermógenes em transformar a sutileza e densidade contrastantes dessas melodias em verdadeiras vozes de nossa gente, de nossas raízes e de nossa história. Devemos ao seu notório saber o resgate da memória! Ele pesquisou e buscou as reminiscências de nossas origens e tradições deixando-nos um rico legado através de suas obras: A Vila de Itaúnas – 1980; O homem que partiu a manga - 1982; Viagens de Inspeção - 1982 (que narra as andanças com Carmélia M. Alves de Souza pelo norte do Estado); Seu Lúcio, o patriota e o país dos bichos – 1983; Mensageiro dos ventos - 1983; Histórias de Bichos contadas pelo povo - 1984; Tradições populares no ES - 1991; Curubitos - 1992; Contos do pé do morro - 1993. Sua profundidade o levou a reflexões...

 

Sinto que somos sós. Nascemos sós.

Vivemos sós dentro de nós.

Dentro de nós nos recolhemos e no nosso íntimo Sós, nos encontramos com nós mesmos e criamos nossas fantasias.

Sós, e ninguém nos assiste e nem pode nos assistir.

Dentro de nós mesmos, indevassavelmente.

 

Uma paixão parece ter nascido com Hermógenes - o Folclore. A fé nas crendices, o ver, ouvir, registrar, comparar, criar e recriar para depois contar e recontar aos ouvidos de quem presta ouvidos à cultura popular. Ouvir para não olvidar. Seu maior desejo era que no fluir do tempo não se deixasse desaparecer os ditos populares, as cantigas de roda, o artesanato e tudo que ele tão bem soube resgatar, cultivar e divulgar. Sua obra é de interesse inegável por captar um linguajar típico da região, com vocábulos inusitados, a exemplo do termo “curubitos de origem indígena: - “pontinhas que sobram entre os dedos quando se rala o coco ou restinhos de cana que os meninos pegam pra chupar.” Outra particularidade, ele fez ressurgir o nome “casaca” utilizado no Ticumbi capixaba; instrumento em forma de reco-reco esculpido com uma cara em uma das pontas.

Hermógenes esteve à frente da Comissão Espírito-santense de Folclore, única no gênero, juntamente com Guilherme Santos Neves, Renato Pacheco e Eugênio Sette, durante mais de cinquenta anos. Uma semana antes de seu falecimento, já muito enfraquecido, recebeu o honroso título de Presidente de Honra.

O povo era sua fonte de pesquisas e ele, protótipo da sabedoria, era com respeito e paciência que “assuntava” nas rodas de conversas até que no calor da prosa as pessoas, pegando da palavra, “destrambelhavam” e assim ele colhia preciosas informações. Era a arte de bongar!

Louvado seja Mestre Armojo!

O tempo fugidio muitas vezes apaga a memória, se não nos fizermos presentes. E o tempo me passou a perna, esqueci de estar lá, no Sítio do “Pixingolê”, espécie de Centro Cultural Capixaba, onde falava-se a linguagem popular. Deixei de bater à sua porta, após a tentativa de driblar o tempo, para juntos marcarmos na história do Folclore com nosso planejado álbum de cantigas populares...

Eu me relanço ao passado e me sinto ao seu lado...

 

... Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré dici. Eu sou rica, rica, rica de marré dici...

...Ciranda, cirandinha vamos todos cirandar; vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar...

 

Cantai, sonhai, dançai crianças pobres ou ricas, ao amanhecer, ao entardecer ou na noite escura à beira da calçada. No sorriso da primavera, no raiar do verão, no desfolhar do outono ou no disfarce do inverno.

O povoado com suas ruelas no aconchego da vila, comemora a santa padroeira: Santa Luzia...na cidade de Pancas, minha terra natal! Cantantes riachos deságuam no então caudaloso Rio Doce circundado pela grandiosidade das misteriosas pedras do vale encantado, hoje chamado “Cidade Poesia”! Terra natal, onde a alma reside; embora deitando nas floradas de outras plagas a trazemos para sempre arraigada em nosso Ser.

Hermógenes referiu-se a Pancas, em sua obra inédita “Poema da Gênese Ecológica”, onde dedicou uma página a Burle Marx e conta que este, ao conhecê-la, extasiou-se ante a magnificência de sua natureza; porém ao retornar anos depois, ficou estarrecido com a destruição feita pelo homem. “Burle Marx, chorou! Sentou-se num boteco e se embriagou com cachaça...”

Na terra de minha origem, dentro de suas ruas e de sua praça, o tempo descerra as cortinas do passado. É a minha família que me chega e bate fortemente à porta da saudade! Lembrá-los é agradecer a Deus o convívio familiar de tantos anos...

E, por falar em saudade, foi o que Hermógenes deixou em todos aqueles que o conheceram, que o amaram, e que com ele conviveram.

Aos amigos, um legado de lembranças temperadas de carinho.

Renato Pacheco dizia: - “A grandeza do amigo está no sonhador” e o sonhador com Dona Maria Augusta sua primeira companheira, criou oito filhos: Luiza, Maria Angélica, Rita, Raquel, Manoel, Margarida, Marília e Marcus. Família que dele se orgulha e que se enriqueceu de genros e noras e- “uma penca de netinhos para os quais inventou histórias maravilhosas.”

No sentimento de Luiz Guilherme Santos Neves- “uma excelência para Hermógenes é pouco. Cantem-se duas e três, um rosário delas, para o mestre que se foi, dos anjos e das estrelas coroado.”

Eleomar Mazoco - Presidente da Comissão de Folclore, relembra: “juntamente com Guilherme Santos Neves, Hermógenes criou de forma metodológica, a pesquisa folclórica no ES. Os dois inventaram a roda do folclore e eu, como presidente, só tenho que fazer ela rodar.”

Sua filha Maria Angélica recorda: “papai era uma pessoa que primeiro tinha que apertar a mão dele para saber se existia. De grande sensibilidade, vivia cinquenta anos na minha frente. Era totalmente desprendido de bens materiais. O importante para ele eram as pessoas, a natureza e o folclore.”

E foi assim, rodeado de seu povo, ao som dos pandeiros do Ticumbi que ele foi sepultado em Conceição da Barra aos 16 de maio de 1996. Seu epitáfio, escrito por ele mesmo, dizia: “Aqui jazem os restos mortais de um homem que se divertiu com o mundo, gozou a vida. Pena que foi por pouco tempo.”

E, é como um - “tocador de congo de São Benedito”- que o escritor Adilson Vilaça descreve sua chegada ao céu... “foi contar histórias para ninar os anjos e para despertar folguedos dos trasgos, porque Mestre Armojo não discriminava as criaturas da fantasia.” E acrescenta – “O corpo seguiu para Itaúnas. O espírito já se agasalhou sob as dunas.”

Minha peroração se conclui com as palavras do próprio Hermógenes num poema reverenciando a natureza: “Quando entro numa floresta, ajoelho-me, porque ela é a mais antiga das igrejas,

Aquela em que o primeiro homem ergueu ao céu sua primeira prece.

Na floresta tudo reza; rezam as folhas e com elas rezam os insetos na terra,

nos ramos, por entre as cortiças e as aves mutuamente se chamam com seus cantos

e tomam parte naquela prece de toda natureza verde...”

 

Louvado seja Mestre Armojo!

 

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-santense de Letras / 100 anos – Vitória (ES) Vol 26 -2021
Autor: Maria das Graças Silva Neves
Cadeira n.23 da Academia Espírito-santense de Letras
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2022

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