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O reinado do café - Cadê a floresta? O fogo a comeu!

Os botocudos foram os primeiros a navegar pelo Rio Doce

Cadê a floresta?

O fogo a comeu!

Cadê o rio?

Está cheio de entulho!

 

Era uma vez um grande rio, de água obviamente doce e cercado por deslumbrantes florestas tropicais

Se os aventureiros do século XVI e os viajantes do século XIX voltassem hoje ao vale do rio Doce, certamente não reconheceriam a paisagem que deslumbrou navegadores e cientistas. A erosão nas cabeceiras atulhou o leito do rio de areia, impedindo a navegação. O desmatamento acabou com suas impressionantes selvas, biologicamente mais ricas do que a própria mata amazônica.

Cidades, fábricas, estradas e lavouras estabeleceram uma nova paisagem no vale em que a floresta foi paulatinamente derrubada e queimada para a penetração do café. Se um viajante do passado voltasse perguntando pelas exuberantes matas que ainda estavam de pé em 1500, 1600, 1700, 1800 e 1900, ao anfitrião capixaba só restariam duas saídas: levar o visitante à Reserva de Sooretama ou encaminhá-lo à Reserva Florestal de Linhares. Coladas uma à outra, no município de Linhares, as duas reservas são os últimos exemplos da floresta que existia no vale do rio Doce. Sooretama tem 24 mil hectares e é administrada pelo Ibama. A outra pertence à Cia Vale do Rio Doce e chega a 22 mil hectares. Somados, os dois espaços representam uma das poucas reservas continuas da mata Atlântica, onde se encontram algumas árvores ameaçadas de extinção como o jacarandá, o jequitibá e a peroba.

Rumo à Amazônia

As fabulosas selvas do rio Doce acabaram praticamente na década de 70 do século XX. Centenas de madeireiros e milhares de operários que exploravam a madeira no Espírito Santo foram brincar de deserto na Amazônia, onde ajudaram a criar cidades. No vale do rio Doce, na década de 70, o jornalista Rogério Medeiros, atual vice-prefeito de Vitória, descobriu o maior devastador do planeta, Rainor Greco, que se orgulhava de ter derrubado 5 milhões de árvores. Ele falava de sua atividade com o orgulho de um Rambo em luta contra um inimigo implacável. Na visão apocalíptica do devastador Greco, a árvore era o inimigo. Contra a floresta — um exército de árvores —, ele punha pelotões de fuzileiros empunhando motosserras. Depois da liquidação das florestas capixabas, Greco foi guerrear na Amazônia.

Se a selva do vale sempre exerceu poderoso fascínio sobre os aventureiros, que desde 1501 se habituaram a navegar rio acima, os administradores do território demonstravam maior interesse pelo potencial do Rio Doce como via de transporte capaz de ligar o coração do Brasil ao litoral. Do ponto de vista da navegação, entretanto, o rio Doce foi mais ilusório do que real. Ou melhor: nunca correspondeu as expectativas.

A história dele é pontilhada de episódios reveladores da importância que se lhe dava, mesmo quando não passava de uma promessa. Por volta de 1700, por exemplo, quando a descoberta de ouro assanhou a cobiça de meio Portugal e do Brasil inteiro, uma das primeiras providências do Governo de Lisboa foi proibir a navegação em toda a extensão do rio, nascido no interior da que poderia ter sido a Capitania do Espírito Santo.

Escadinhas

Um século depois, em 1800, a primeira providência do novo governador capixaba, Antônio Pires da Silva Pontes, foi mostrar que o rio Doce era navegável. Formou um comboio de canoas carregadas de sal e subiu da foz até o trecho encachoeirado de Baixo Guandu, sem dificuldades. Entusiasmado, escreveu um relatório a Lisboa, afirmando que o rio estava finalmente aberto ao trânsito de mercadorias entre o litoral e o interior de Minas.

Os mineiros e os capixabas não levaram muito a sério aquela inauguração. Teria o esforçado Silva Pontes lançado uma ponte para atravessar a intransitável corredeira das Escadinhas formada pelo rio Doce, em Baixo Guandu? Muitos anos mais tarde, um pesquisador registrou que, para atravessar o trecho encachoeirado, a equipe do governador capixaba tivera de fazer 23 baldeações pelas margens do rio.

Graças a esse notável esforço, Silva Pontes poderia ter entrado para a história como o inventor do transporte intermodal nas cachoeiras do rio Doce. Na realidade, alguns anos depois, ficaria claro que sua missão servira, sim, para ativar o contrabando de sal para o interior do Espírito Santo e de Minas. O comércio clandestino era amparado por soldados mantidos em guarnições militares ao longo do rio.

Desde o tempo da mineração, os habitantes de Minas dispensaram o rio Doce como via de transporte. Eles preferiam descer por terra ao Rio de Janeiro, ai estabelecendo suas ligações comerciais com Portugal. Além das dificuldades da navegação, havia o medo dos botocudos, que povoavam as selvas vizinhas. Na região onde surgiria Linhares, cerca de 1800, as autoridades capixabas iniciaram um projeto de colonização. Como faltassem candidatos à empreitada, o jeito foi iniciar com prisioneiros, que assim ganharam a liberdade. O projeto não prosperou. Por volta de 1810, o povoado foi atacado pelos botocudos, que mataram um "colono", afugentaram os outros e arrasaram todas as construções, especialmente um quartel.

Naquela época, havia três quartéis com apenas alguns soldados ao longo do rio Doce: em Regência (na foz), em Contins (Linhares) e em Ponto de Souza (junto a Baixo Guandu). Tudo para eles vinha de fora, inclusive a farinha de mandioca. O único agricultor da região era João Felipe Calmon, que se estabelecera em Linhares em 1809, vindo de Benevente (Anchieta). Os quartéis eram parte do projeto Silva Pontes para proteger os navegantes.

 

Fonte: O reinado do café, A Gazeta 31/08/1992
Pesquisa e textos: Geraldo Hasse, Linda Kogure e Abmir Aljeus
Fotos: Valter Monteiro e Tadeu Bianconi
Concepção gráfica: Sebastião Vargas
Ilustração: Pater
Edição: Orlando Eller
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2016

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