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Os ossos do Padre Anchieta, por Rubem Braga

Túmulo de Anchieta - Foto: Walter de Aguiar Filho,2011

Uma carta me chega de Cachoeiro de Itapemirim. O missivista propõe que eu o ajude a rechaçar as pretensões paulistas sobre os ossos do padre Anchieta.

O caso é este: o venerável padre, que fundou São Paulo, morreu no Espírito Santo, em Reritiba, que depois se chamou Benevente, e tem hoje seu nome. Isso aconteceu no domingo, 9 de junho de 1597: o corpo foi levado para Vitória, onde chegou quarta-feira e ali foi sepultado solenemente na capela de Santiago, onde é hoje o palácio do governo.

Apareceu em São Paulo a idéia – quando se festejava o quarto centenário de fundação da cidade – de pedir ao Espírito Santo os restos do jesuíta canarino.

Ainda outro dia fiz uma visita ao túmulo de Anchieta, no interior do palácio do governo que hoje tem, também, o seu nome. Devemos nós, os capixabas, mandar para São Paulo os ossos ou as cinzas do venerando padre?

Isso já tem sido discutido até com certo azedume, mas não quero entrar na briga, e por um motivo muito simples: os restos de Anchieta não estão no Espírito Santo; pode lá estar uma parte deles, mas nem isso se encontrou jamais. Simão de Vasconcelos conta que “as relíquias deste grande varão foram trasladadas depois em parte para o colégio da Bahia, cabeça do estado, por mandado de nosso reverendo padre Cláudio Aquaviva, de boa memória, ano de 1611, e colocadas decentemente ao lado do altar maior de nossa igreja, onde foram visitadas e veneradas dos cidadãos daquela nobre cidade como devoção louvável e efeitos grandes, até que, promulgado o breve de Sua Santidade Urbano VIII, que chamam de non cultu, foram tiradas daquele lugar e repostas noutro”... Além disso afirma que, “destas relíquias foi uma a Roma por ordem de nosso reverendo padre”.

Em resumo: tanto quanto se sabe, o pequeno, franzino corpo de Anchieta, ficou espalhado, parte na Bahia, parte em Roma, parece que parte em Vitória, certamente para alhures, o que não fica mal a um missionário que foi o mais portentoso, rápido e incansável andarilho de toda a nossa história.

O referido Simão conta que, ao ser aberta a sepultura de Anchieta em 1609 (levou dois anos o corpo para ir de Vitória à Bahia?), alguns ossos foram repartidos a pessoas seculares e religiosos que os pediram. Sabemos que um desses ossinhos foi lançado ao mar, em um momento de tempestade e aflição, pelo padre Manuel do Couto, nas alturas da ilha de São Miguel, com o quê o oceano se acalmou. Sabemos que o osso foi jogado “por uma linha”; é de esperar que tenha sido recolhido e tenha seguido viagem para Portugal com o padre Manuel. Sabemos ainda que em 1925 algumas relíquias de Anchieta foram desenterradas, mas houve dúvidas se os ossos eram dele mesmo. Como o padre Diogo Calvo estava com sezões, um dos ossos foi-lhe aplicado ao pescoço e ele sarou, por onde se concluiu que era mesmo de Anchieta. São numerosos os sacerdotes, a essa altura, que possuem ossos de Anchieta, e com eles fazem milagres um pouco por toda a parte – no Rio, na Bahia, em Pernambuco, e também na vila de São Paulo, onde um osso de Anchieta ajudou muito no parto “molesto e perigoso” de uma cunhada de Mateu Luís Grou. Outros ossos operaram milagres vários, inclusive ajudando a achar um pescador escravo que fugira de uma senhora Dona Lourença. O pobre do negro certamente não tinha outro ossinho de Anchieta para ajudá-lo a se esconder. Outro osso salva “duas donzelas doentes e desconfiadas da vida”, outro serve de contraveneno ao padre gato contra alguma beberragem que lhe haviam dado os índios carijós, e assim por diante. Só nos resta concluir que os despojos de Anchieta não estão em parte alguma, mas espalhados por Europa, França e Bahia.

Não vamos, portanto, discutir por causa dessas relíquias esparsas e perdidas. A relíquia verdadeira é o espírito de Anchieta trilhando os caminhos humildes da terra do Brasil, ajudando um país a acontecer.

 

Outubro, 1964.

 

Fonte: Crônicas do Espírito Santo. 1984
Autor: Rubem Braga
Obs.: Este livro foi doado à Casa da Memória de Vila Velha em abril de 1985 por Jonas Reis
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2011



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Fotopintura

Fotopintura

Inventada por André Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889/90) em torno de 1863, a fotopintura é obtida a partir de uma base fotográfica em baixo contraste - que tanto pode ser uma tela quanto uma imagem sobre papel - sobre a qual o pintor aplica as tintas de sua preferência, geralmente guache, para o papel, e óleo, para as telas.  Já em 1866 encontramos os primeiros praticantes deste processo no Brasil, que era denominado nos países de língua inglesa de photography on canvas.

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