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Passagem do Imperador pela vila de Santa Cruz

Desenho de Dom Pedro II

Na manhã seguinte, bem cedinho, D. Pedro II assistiu a missa rezada pelo vigário Santos Ribeiro e teve melhor oportunidade para admirar o quadro da adoração dos Reis Magos que encima o altar da igreja de Nova Almeida, pintura a óleo sobre madeira que é considerado o mais antigo quadro pintado no Brasil, acreditando os entendidos remontar a sua feitura ao ano de 1615.

Talvez a pressa não lhe permitisse copiar a legenda existente no teto da igreja, necessitando de restauração: Vidimus Stellam Sub Oriente, et Vinimus Adorare Dominum. Com manhã luminosa, seria vislumbrado lindo panorama das janelas do convento e, se não fosse a pressa de cavalgar, D. Pedro teria observado a grande pedra situada no centro da praça gramada, onde os jesuítas amarravam os índios delituosos.

Antes de montar a cavalo, o monarca teve oportunidade de doar a esmola de quinhentos mil réis para os pobres. E eis as suas notas sobre o percurso de três léguas, coberto em duas horas, até a vila de Santa Cruz:

2 de fevereiro

4 ½ missa; o retábulo da matriz que é a igreja do convento é esculpido e pintado no gosto jesuítico com um quadro de adoração dos Magos.

Grande dificuldade em reunir os animais de modo que só às 6 pude

seguir viagem do outro lado do rio; neblina sobre o rio e para o mar;

7 menos 5, fazenda do Rio Preto do irmão do tenente-coronel Paixão delegado de Vila Nova, Santa Cruz e Linhares há uma ponte pequena; depois passa-se pela praia perto dumas pedras que maré cheia interceptam o trajeto podendo-se aliás abrir o caminho pelo mato à esquerda.

7 e 10, ponte do Gramuté maior que a outra feita pelo Catão com cabeceiras de pedra as quais tendo sido escavadas pelas chuvas exigiram reparação nesta presidência.

Atravessando o rio Preto, transpunha S. M. os limites dos municípios de Nova Almeida e Santa Cruz.

Não detiveram a sua atenção as orquídeas e os gravatás sobre as árvores que margeavam parte da estrada, nem a espécie de alamedas de cactos enormes (30 a 40 pés de altura), cujos caules serviam para substituir a cortiça. Ele observou:

A estrada é mais para dentro das capoeiras do que pela praia; mas não se afasta muito desta. No mar e praia, vêem-se pedras pretas de aspecto esponjoso como dentro do rio em Piranhas.

Suas notas prosseguem:

Casa do vigário de Nova Almeida no alto dum monte à esquerda; é filho de Santa Cruz; [7 ¾ avista-se em frente e perto a barra do rio de Santa Cruz;] fazenda à esquerda muito perto da vila; encostada aos montes do tenente-coronel Paixão; planta cana crioula, 1.000 arrobas anuais, mantimentos; 12 escravos.”

Antes de entrar na vila, ao longe, avistava-se a torre branca da igreja, com vasos esculpidos e dois sinos.

Reservava-se para o augusto viajante a mesma impressão de surpresa que sentiu o pintor François Biard, ao descobrir, de perto, que a imponente construção não passava de uma fachada escorada na parte de trás por andaimes, onde se encarapitava o sineiro.

O corpo daquele templo era originário da pequena capela levantada em 1836; tinha esteios de madeira, paredes de taipa e coberturas de folhas de palmeiras.

 

D. Pedro anotou:

O frontispício da igreja é maior do que esta, iludindo de longe a quem o vir de frente.

A ereção de tal frontispício fora iniciada em 9 de maio de 1857, por subscrição entre os exportadores de jacarandá do município. Mas as proporções do templo foram consideradas gigantescas, em relação à pobreza da vila, pois eram calculados necessários mais de vinte contos para a sua conclusão.

Ao deixar a estrada, pela mata, S. M. atravessou a planície salpicada de palhoças de pescadores, entremeadas de casinhas a que a caiação dava um melhor aspecto.

Repicavam os sinos, estrugiam foguetes e o povo aguardava com alegria a chegada do soberano, cuja hora precisa foi registrada em sua caderneta:

8 h – Vila de Santa Cruz alegre à margem direita do rio; casas térreas pequenas e a maior parte de sapé.

Aquela vila, outrora Aldeia Velha, também se originara do esforço de catequese dos índios, empreendido pelos jesuítas em meados do século de Cabral. Serviu, depois, como quartel de destacamento e a sua elevação a município, em 1848, muito devia ao particular empenho do cidadão José Alves da Cunha Bastos, que construiu, por sua conta, uma casa para servir de Paço Municipal e onde também funcionava o júri, sendo, para esse fim, alugada por 144$000 anuais.

A cadeia pública era um rancho de taipa coberto de palha e não oferecia a menor segurança nem merecia tal título.

O padre Antunes de Sequeira, que tanto tenho citado, procurando amenizar os dados histórico-geográficos, assim descreveu a vila de Santa Cruz, em seu poemeto, vinte e quatro anos após a visita de S. M.:

Tem paço de Câmara e igreja,

Que não pôde jamais ser concluída,

Cujo frontispício ao longe alveja;

O magnata dali fez preferida

Câmara e cadeia que sobeja

Bom castigo à gente fratricida!

Não pude conseguir, como vigário,

Mudar a triste sorte, seu fadário!

 

François Biard confessou no seu livro de viagem que, além da fachada da igreja, só viu naquela vila, como digno de uma referência especial, um chafariz de construção recente.

Tratava-se da fonte pública denominada Tanque, já existente em começos daquele século e que fora reparada “com segurança e elegância em que se despendeu a quantia de 1:148$160 rs”, conforme assinalara em seu relatório de governo da província, no ano anterior, o comendador Monjardim.

“O resto” – descreveu o pintor – “quase nada valia: casinholas sem simetria, capim por toda a parte, um portozinho protegido por alguns recifes.”

D. Pedro II, que não tinha uma verve irônica como Biard e, pelo contrário, com o seu ar sisudo no modo de se conduzir e de ver as coisas, só inspirava respeito, dedicou mais cinco palavras sobre aquela igreja a cuja construção doou quinhentos mil réis e viu o chafariz:

A igreja não merece menção – lugar ao lado fechado para enterrar.

Fonte de duas bicas de água muito boa que corre duma montanha feita no tempo do Catão.

Estranho que não houvesse despertado a sua atenção para a sepultura de João Teodoro Descourtilz, autor de um livro, com lindas estampas coloridas, sobre pássaros brasileiros, impresso na Alemanha (1854-56) às expensas da imperatriz Teresa Cristina. O ecologista francês, adjunto da 1ª secção do nosso Museu Nacional, envenenou-se com as preparações arsenicais, a 13 de janeiro de 1855, no Riacho. O seu corpo foi conduzido para aquela vila onde o autopsiaram e sepultaram.

Os apontamentos prestam ainda outras informações de interesse: Há às vezes no porto 8 embarcações de barra fora. O Piraquê-açu que vem do sul admite navegação no tempo das águas para canoas grandes até 6 a 8 léguas, à fazenda do Rafael Pereira de Carvalho, e o Piraquêmirim até 2 a 3 léguas vindo do norte a reunir-se ao outro pouco acima da vila; [formam] o rio de Santa Cruz.

O programa de recepção pouco variava.

O imperador foi conduzido ao paço da Câmara onde o presidente da casa lhe entregou a chave da vila, com discurso. Após a breve resposta, o monarca se dignou a conceder o beija-mão, começando o desfile pelos vereadores: João Batista da Costa; Luís Inácio de Oliveira; Manuel Simões da Silva; Antônio Gomes Pereira; João Ferreira de Fraga; Manuel Antônio dos Santos Coutinho e João Martins da Silva.

O prédio tinha bom aspecto:

Casa da Câmara com telha; sala sofrível para suas sessões e do júri; quarto para o conselho, e outro para as testemunhas; pintou-se de novo agora.

Antes de almoçar, D. Pedro visitou a escola de 1ª classe do sexo masculino:

Aula de meninos de Francisco de Paula Ramos. 17 matriculados em livro escrito com boa letra pelo professor; 8 de freqüência, 1º lê menos mal; gramática nada; multiplica somente; há 3 anos. 2° lê pior; gramática nada; multiplica somente; há 3 anos. Letra má. Sabem rezar e mal. O professor não presta.

O rico fazendeiro José Alves da Cunha Bastos não poupara esforços a fim de proporcionar ao nobre visitante a melhor hospedagem:

A casa onde estou está muito bem arranjada. Os índios vieram tocar e dançar e depois apareceu o capitão-mor com o pintor o Biard e um São Beneditozinho dentro duma caixa, que um dava a beijar servindo para outro de umbela um chapéu de sol.

O pintor francês, que tanto observou e desenhou a selva, os índios e a festa de São Benedito, ao regressar ao Rio, antes de partir para o Amazonas, deve ter efetuado uma visita de cortesia e agradecimento ao monarca, ocasião em que ele teria exibido suas telas pintadas em Santa Cruz. Daí a alusão feita por S. M. I. àquele artista.

Volto aos apontamentos de S. M. I.:

Ontem de noite tomei mel por cuia. Tocam também com as mãos em tambores de toros escavados com peles dum lado, e chocalham um cestinho cheio de pedrinhas. A dança parece que é o bendenguê dos negros, assim como a música o batuque do Engenho [ilegível]. Os caboclos ainda têm algumas feições características da raça, que é a tupi.

Biard não só fez a descrição da banda de congo como também a apresentou no seu livro em magnífico desenho. Enquanto ele notou que a dança executada por mulheres constituía “um desgracioso cancã, que merecia certamente a reprovação de nossos agentes de polícia”, o imperador observou:

Notei que só dançam os índios de alguma idade. O São Benedito corre 15 dias antes da festa e 15 dias depois, embriagam-se etc.

O entusiasmo do povo expandia-se em repetidos vivas ao imperador e no infrene foguetório com perigo de provocar incêndios:

Um foguete já ia queimando uma casa coberta de sapé, pegada à em que estou.

E as notas continuam:

O Pirajá está defronte da vila; – trouxe ontem 3 horas da Vitória, achando 1 braça na barra deste rio. Ontem foram os índios com muita folgança levando o São Benedito, a bordo do vapor.

Na rua não havia calor por causa do vento fresco. Parece mais fresco do que a Vila da Serra onde ontem senti calor horrível; também está quase à beira do mar.

S. M. não perdia ocasião para se informar:

O índio não tem idéia de que o rio dos Reis Magos fosse chamado

pelos índios apiá-putang.

Apiá: cousa que Deus deu aos homens (assim disse o índio) [Putang]: trigueiro, escuro.

O rio dos Reis Magos parte inferior, chamavam-no os índios Janquetá.

D. Pedro conversou bastante tempo com aqueles descendentes aborígines e aproveitou para enriquecer o vocabulário da língua geral:

Acentune: beijo

Temiminó: neto

Tuiúca: lama

Câma: peito de mulher

Piraqueaçú: mirim que é cintura

Avá: homem

Vuitichingá: nuvem

Cendê: relâmpago

Teminó: fazer filho

Íra: mel

Írazúa: abelha

Caraivevê: anjo

Inhatchihim: mosquito

Berú: mosca

Uhúra: enchente

Uceruca: (u inglês de but) vazante

Lua cheia: Iacêruváváçú

Lua nova: Iacêpucáçú

Milho: Avatché

Chuva de pedra: Amavává

De nós e de nós e de outros: Inhandê

Diabo: Mbaíva

Chumbo: Taiíca

 


Fonte: Viagem de Pedro II ao Espírito Santo, Vitória, 2008
Autor: Levy Rocha
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro,2011



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