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Paulo Velozzo – Por Ivan Borgo

Foto escaneada do Livro de Guilherme Santos Neves - Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba, 1944-1982 - Volume 2, ano 2008

Paulo Vellozo, além do mais, foi um grande contador de casos. Hoje é um pouco difícil passar a idéia essencial encaixada nessa qualificação em que coloco o meu amigo Paulo. Nestes tempos globais, quando o modelo é o corte rápido, o fato espremido como limão, contraponto para a propaganda que afinal é a que paga a fatura, a imagem do contador de casos se perde como fumaça. Mas não estou fazendo nenhum julgamento. Procuro apenas marcar diferenças. É preciso lembrar que entre os velhos conversadores existiam os eternos maçantes, presentes afinal em qualquer forma de comunicação. Contadores de casos com suas histórias enroladas, embaraçadas em incidentes, demorando tanto para retornar ao leito da narrativa central que o bocejo passava a ser inevitável. Um tipo cuja melhor versão que conheço está num conto de Mark Twain chamado "A célebre rã saltadora do condado de Calaveras". Mas, definitivamente, este não era o caso de Paulo Vellozo. Definitivamente. Estou certo de não exagerar quando digo que Paulo foi uma espécie de "rapsodo", estilo capixaba que, ao invés de cantar epopéias, transformava casos corriqueiros em ricas narrativas cheias de cor, alegria e vida. Sempre insisti para que ele registrasse por escrito esses fatos recriados por sua imaginação e pela sua presença de espírito. Mas não tive êxito, embora eu ignorasse que sua arte tinha uma ligação menor com a escrita. Talvez não fosse propriamente ignorância minha mas apenas um gesto tentando evitar a perda dessa arte que ficaria irremediavelmente ilhada no processo de comunicação oral, o que acabou acontecendo. Um indício dessa circunstância pude perceber quando foi publicado Cantáridas, uma coleção de versos fesceninos de autoria de Paulo, Jayme e Guilherme Santos Neves, elaborados na década de 30. Este livro, cujo valor, no gênero, é geralmente reconhecido, tendo mesmo interessado cineastas como Sylvio Back com vistas a um filme de época, da Vitória dos anos 20/30, perde para a sua "versão oral". Numa tarde de sábado d'antanho, ouvimos Paulo recitar trechos de Cantáridas. A brincadeira, a irreverência que percorre todo o livro adquiria sua plena força na versão falada. Aliás, o próprio livro original, com sua larga fita encarnada segurando as folhas, o texto datilografado caprichosamente, tem o toque nostálgico das coisas insubstituíveis. Se não me engano, havia apenas aquele exemplar do livro, guardado a sete chaves, e cuja existência um tanto lendária era comentada a meia-voz, em especial se estivessem crianças ou senhoras presentes, o que por si só já define peculiaridades da vida social de então.

***

"Íamos nós três no carro viajando para São Mateus: Jayme, Tommasi e eu. De repente diz Tommasi:

— Acho que vai estourar um pneu! Minutos depois desta premonição um pneu estoura. Descemos do automóvel debaixo de um sol de rachar, trocamos o pneu e seguimos viagem. Alguns quilômetros adiante volta Tommasi:

— Acho que vai...

Jayme pega Tommasi pela gravata e diz:

— Se completar a frase, desce do carro agora."

Um fato divertido embora corriqueiro?

Afinal é apenas um grupo de amigos que viaja ao extremo Norte do Estado. Mas aí entrava a insuperável verve de Paulo. Ao contar essa história, que é tomada como exemplo, Paulo a recheava com muitos lances do mais puro humor e juntava tantas informações que, no final, tínhamos mais que o episódio, um panorama de nosso Estado naquele tempo, com o tempero adicional de uma certa atmosfera fantástica. Registre-se que, não muito tempo antes, pessoas que vinham do interior iam ao Parque Moscoso assistir ao André Carloni andar de automóvel, conforme me contava o Theodoro Schwambach. No caso de Paulo, o automóvel com ares de caravela rumo ao desconhecido. Como eles eram ecianos de boa cepa, gosto de imaginá-los numa espécie de "campanha alegre" na investigação desses lados da terra de Santa Cruz. Podemos imaginar esses rapazes, esses três amigos, numa viagem ao Norte do Estado nos idos de 1940. Para ilustrar, examinemos este mapa do Espírito Santo feito não muitos anos antes e que mostra do lado esquerdo, a Oeste, uma anotação surpreendente: "Terras Desconhecidas". Enfim, uma viagem a São Mateus, em 1940, mesmo pelo litoral, de automóvel, conservava parte do mistério dos primeiros tempos. Um ambiente propício para Paulo exercitar seu grande poder de observação e sua capacidade de juntar fatos e circunstâncias em favor de insuperáveis narrativas. Revelações de coisas do interior de nosso Estado.

Foi na época em que trabalhava como promotor público que Paulo encontrou, em Santa Teresa, o amor eterno de sua vida, Maria Ignez Bomfim, dona Nezita, anfitriã que proporcionou excelentes almoços entre amigos, inclusive o almoço da lasanha que pede uma referência especial.

Em princípios do século, a maior parte dos italianos e seus descendentes ainda está isolada nas névoas e frios das montanhas capixabas ou ajudando a povoar aquelas "Terras Desconhecidas" do Oeste. Lentamente, superados os difíceis tempos iniciais, já podem, como diz Luiz Derenzi, saborear uma mortadela, um queijo, um salame, etc, de sua tradição culinária e, acrescento, um vinho razoável, uma polenta de moinho de pedra, uma lasanha.

Nos anos 60, começa a chegar ao litoral e a se generalizar entre os habitantes da capital o uso incipiente de comidas da cozinha peninsular. Mas havia conservadores, incrédulos quanto à qualidade e sabor dessas novas iguarias que chegavam à mesa do capixaba do litoral. Entre os incrédulos está o professor José Leão Nunes, catedrático de Língua Portuguesa, diretor da FAFI, amigo de Paulo e de todos nós. Uma excelente figura humana. Por essa época Paulo costumava oferecer aqueles almoços que ficaram famosos em sua casa no Alto de São Francisco, e depois, no Parque Moscoso. Para um desses almoços Paulo anunciou que o prato principal seria lasanha, uma novidade na época. Entre os convidados, o professor Leão Nunes que logo se desculpou com Paulo.

— Deixe para outro dia, Paulo. Não suporto lasanha.

Mas disse Paulo: — Ora, Zé Leão, não se preocupe. Não há problema. Mando fazer para você um franguinho. O importante mesmo é sua presença. Não deixe de ir.

E ali estavam Eurípedes Queiroz do Valle, Eugênio Sette, Guilherme Santos Neves, e o rebelde José Leão Nunes que acabou aceitando o convite de Paulo. Um almoço executado pela Clara, que era de Santa Teresa, sob a supervisão de dona Nezita. Entra em cena a lasanha espalhando seus cheiros e marcando ponto para a inspirada cozinha da colônia, servida a todos exceto, naturalmente, a Zé Leão.

— Não se preocupe, Zé Leão — volta Paulo com sua voz estentória, — não se preocupe. Em defesa de sua úlcera mandei preparar um excelente prato. Clara, por favor, o frango.

Todos nos recordamos, com saudade, de Zé Leão, professor competente, corretíssimo e muito rígido em suas opiniões e conceitos. Não foi portanto de admirar que mantivesse sua atitude a respeito desse prato estranho. Mas não foi por muito tempo. O perfume da lasanha verde enchendo toda a sala acabou minando aquela fortaleza de sólidas convicções. Muito timidamente, Zé Leão pede a Paulo:

— Posso experimentar um pedacinho?

Logo depois volta exclamativo:

— Mas isso não é lasanha. Lasanha é uma coisa que comi outro dia num restaurante da 13 de Maio e só comi porque paguei. Em resumo, o professor José Leão Nunes repetiu três vezes o prato que fazia um de seus débuts no cardápio dos capixabas.

Vários almoços, nesse mesmo clima de amizade, aconteceram na casa de Paulo e agora vou lembrando de outros comensais que participavam de sua mesa: Aly da Silva, Ivantir Borgo, João Soares, Luiz Guilherme Santos Neves, Manoel Ceciliano de Almeida, Renato Pacheco, Sylvio Crema, Luiz Flores Alves e Berredo de Menezes.

***

Histórias assim são abundantes no repertório de Paulo, e fazem parte indelével de sua rica personalidade. Para registrá-las seria necessário um volume. Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco conhecem muitas delas. Algumas foram publicadas na revista Você, da UFES, como a que Luiz escreveu sobre a visita de Câmara Cascudo a Vitória, quando um aperitivo a mais no Bar Sagres fez o ilustre folclorista, encantado com a companhia de Paulo, atrasar-se para uma palestra no Centro de Saúde. Ou a história do prefácio e posfácio do livro de química de Pessegueiro do Amaral contada por Renato. As fantásticas histórias do Padre Manezinho na Serra e em Guarapari. A morte do cachorro de Zé Leão. O hino de dona Perpétua, a história do bode, e quantas mais.

Tais histórias com a marca registrada de Paulo e seu insuperável senso de humor, revelam uma cidade de Vitória bem diferente. Isto nos leva sempre a um ponto difícil: a cidade melhorou ou não? Sem avançar uma opinião, há um fato concreto representado pelo ritmo veloz da mudança sofrida por Vitória nos últimos vinte anos. Um ritmo que aguça uma sensação de descontinuidade. Que tem esta nova cidade com aquela outra? Muitas cidades brasileiras terão sofrido o mesmo fenômeno mas creio que em nossa cidade ele foi mais rápido e profundo. Não é o caso de tentarmos aqui falar de diagnósticos e terapêuticas. Mas também não é inoportuno lembrar de certas coisas que aconteciam na cidade antiga, das pessoas que ajudaram a fabricar a cara desta cidade de Nossa Senhora da Vitória.

Falar de Paulo Vellozo, em especial dessa sua faceta de exímio contador de casos, é entrar numa trincheira particular de resistência, de defesa da alma da cidade pelo que suas histórias continham como espinha dorsal: a cordialidade. Afinal, há exemplos de cidades brasileiras que perderam sua auto-estima ao jogar seu imaginário na vala comum da violência, o que evidentemente ninguém quer para a nossa cidade. Creio assim que entre tudo o mais que deve ser feito para que nossa cidade não se deterior, está a lembrança de pessoas como Paulo e do que representaram na construção do seu "espírito". Em especial, pela sua marca de cordialidade, que sejam quais forem as mudanças que ocorram, permanecerá sempre como sinal de uma vida urbana civilizada.

 

Nota Biográficas

 

Paulo de Tarso Vellozo era filho do advogado, jornalista e professor Luiz Adolpho Thiers Vellozo e de dona Clementina Moreira Vellozo. Nasceu em Vitória a 2 de fevereiro de 1909. Estudou no Ginásio do Espírito Santo, e formou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito. Foi redator de A Gazeta, jornal fundado por seu pai, promotor público, delegado e chefe de polícia. Como promotor atuou em cidades do interior do Espírito Santo, e na Vara de Família, tendo se aposentado como sub-procurador geral do Estado. Foi professor-fundador da Faculdade de Ciências Econômicas da UFES, na cadeira de Instituições de Direito Privado. Casou-se em 1935 com a senhora Maria Ignez Bomfim Vellozo, com quem teve as filhas Heloisa Helena e Maria Cecília. Faleceu no Rio de Janeiro, em 22 de julho de 1977.

 

Fonte: ESCRITOS DE VITÓRIA — Personalidades de Vitória – Volume 15 – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES, 1996.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar
Sub-secretário Municipal de Cultura e Turismo - Sidnei Louback Rohr
Diretor do Departamento de Cultura - Rogério Borges de Oliveira
Diretora do Departamento de Turismo - Rosemay Bebber Grigatto
Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici
Chefe da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim - Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias - Elizete Terezinha Caser Rocha e Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial - Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão - Reinaldo Santos Neves e Miguel Marvilla
Capa - Vitória Propaganda
Editoração Eletrônica - Edson Maltez Heringer
Impressão - Gráfica e Encadernadora Sodré
Autor do texto: Ivan Borgo
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2018

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