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Praia do Suá - Por José Carlos Mattedi

Praia do Suá, 1961

LOTEAMENTO

O governo do então presidente do Estado, Muniz Freire (1892-1896), lançou o Novo Arrabalde, empreendimento arrojado visando incorporar à cidade setores alagados, arenosos e insulares da região norte, que compreendia uma área seis vezes maior que a ocupada na capital. A Praia do Suá foi alcançada pelo projeto elaborado pelo engenheiro Saturnino de Brito, a partir da construção de uma estrada (hoje, avenidas Vitória e César Hilal) ligando o bairro até Jucutuquara. O mesmo projeto mapeava um loteamento no local, cuja ocupação se deu a partir de 1906, segundo o historiador capixaba Luiz Serafim Derenzi, em sua obra Biografia de uma Ilha, ano que coincide com a chegada dos portugueses, de acordo com o depoimento de Maria Assumpção.

"A primeira casa de pedra e cal, construída naquele bairro, pertenceu a Emílio Parras, espanhol, pintor e decorador, na Rua Vila Velha. Essa zona praiana na ilha, até o começo do século, era pouco frequentada e praticamente despovoada", escreveu Derenzi. Sua ocupação também foi facilitada pela linha de carros urbanos, de tração animal. Em 1906, Vitória contava com três bondes, e um deles fazia o percurso até o Suá, cujo ponto final ficava próximo à Avenida Leitão da Silva (então "Pau Roliço"), que, juntamente com a César Hilal, tangenciava o bairro.

O historiador Carlos Teixeira de Campos Júnior, no livro O Novo Arrabalde, conta que, ainda nessa primeira década do século passado, havia no Morro de Bento Ferreira, próximo ao final da linha de bondes, um canteiro para construções navais. "Acredita-se que a atividade ali desenvolvida tenha sido a responsável pela presença de habitações na área contígua do Suá", sublinha Teixeira. Já Derenzi nos fala de uma pista para corrida de cavalos que havia no bairro, nos idos de 1906, cuja existência foi efêmera, uma vez que "não conseguiu despertar maior interesse aos moradores da ilha".

Os bondes

Num tempo em que não havia muito espaço para a pressa, andar num bondinho puxado por burro era um exercício de paciência. O trote era lento, e as ferraduras marcavam o piso empoeirado da estrada de chão que ligava ao Suá. Ali, os animais descansavam sob a sombra de castanheiras. Isso tudo dava à época um aspecto bucólico, campestre. As viagens carregavam passageiros e mercadorias. Mas não só isso: registra-se que, em junho de 1908, começou o transporte de banhistas até a Praia do Suá para os chamados "banhos de mar". "Era mais do que um programa de domingo, era uma excursão de lazer nesses bondinhos diligentes", pontua Luiz Guilherme Santos Neves, em sua obra Os Bondes de Vitória.

Mas os bondinhos a tração animal tiveram vida curta. Os burricos "penduraram as ferraduras" com a chegada da energia elétrica, no governo de Jerônimo Monteiro (1908-1912). Foram substituídos pelo transporte eletrificado, criando-se a linha Santo Antônio-Praia do Suá. A inauguração, pomposa, deu-se em 10 de agosto de 1908, com o veículo saindo do Cais do Imperador, às 13h45m, e chegando ao bairro praiano às 14h22m, partindo em seguida às 15h55m. Conta-nos Luiz Guilherme que, vinte dias depois, o Diário da Manhã anunciava em suas páginas: "A contar de 1° de setembro, bondes diretos para a Praia do Suá, com horários especiais apropriados aos senhores banhistas. Passagens reduzidas, especialmente para os assinantes mensais".

Com o bonde elétrico veio também o início dos acidentes. Um dos primeiros que se tem notícia, resgatado das páginas do Comércio do Espírito Santo, também por Luiz Guilherme, ocorreu em 7 de janeiro de 1909, quando um bonde abalroou uma carroça de lixo no Centro, dando um susto nos passageiros, "todos banhistas do Suá". Por outro lado, a nova linha facilitou o comércio da colônia. Nos primeiros tempos, o pescado que saía fresquinho do mar não encontrava comprador. "No início não havia comércio nem banca de peixe. O que o mar nos dava, era levado para o Mercado da Capixaba no reboque do bondinho", lembra Moacyr Reis, 84 anos, filho, sobrinho e neto de pescador.

O bonde fez parte da vida dos moradores da Praia do Suá até meados dos anos 50, quando foi extinto. Até então, era o único meio de acesso fácil ao bairro. Os trilhos cruzavam mangues e uma restinga de areia pela Avenida Vitória. Um passeio lento e pouco confortável, nada parecido com a velocidade dos dias presentes, mas que permitia longas conversas provincianas, flertes entre namorados ou reflexões sobre aquele cotidiano ainda vagaroso aos olhos do tempo.

A República do Barracão

A vila de pescadores seguia rumo ao crescimento, mesmo que a passos bem lentos. O comércio se restringia ao botequim de Florêncio Gear Fernandes, na Rua Pau Roliço, um secos e molhados que vendia um pouco de tudo. "Era uma vendinha pequena, quase uma quitanda", atesta Moacyr Reis. Não havia banca de peixes, pois não vinham compradores de fora devido à distância do bairro. "Meu avô dizia que pegavam muito peixe, mas não tinham para quem vender. Todo mundo era pobre, corria pouco dinheiro aqui. Então, eles trocavam o peixe por galinha, por porco e por ovos", conta José Pedro sobre o escambo que movimentava a economia do Suá nos primeiros tempos. "Com os bondes, o pescado passou a ser vendido na cidade".

Já nesse período dos bondinhos, um senhor de nome Adão Benezar construiu um imenso barracão de madeira, com telhado de zinco e algumas divisórias, na Rua Almirante Tamandaré, quase na beira da maré. Benezar, generoso, cedeu o abrigo para a família Reis. Ali, das mãos de uma parteira, nasceu Moacyr. "Eu e minha irmã, antes de dormir, ficávamos contando o número de batidas das ondas- até pegar no sono", recorda ele, que não seguiu a tradição familiar da pesca — aposentou-se pelos Correios. Esse mesmo barracão, tempos depois, transformou-se em república, ao ser adquirido por David Maio, marujo português e um dos pioneiros do arrabalde.

A casa recebia os patrícios, também pescadores, que vinham tentar a vida em terras capixabas e deixavam suas famílias do outro lado do oceano. "Só vinham eles. Não traziam nem mulher nem filhos, que só aportavam aqui mais tarde", sublinha Moacyr. Para matar a saudade que lhes enchia o peito, encaravam o mar com força e valentia para fazer dinheiro o mais rápido possível, e assim poder ficar mais próximo dos seus. Nas noites em que o luar alumiava a praia ou quando faziam redes de pesca, eles cantavam o fado com muita dor. Bebiam vinho e derramavam lágrimas de saudade. "Seu David cedia o barracão por pena. Não queria que eles (lusitanos) passassem aqui um início de privações como ele passou", conta Gilda Maio, 70 anos, viúva de José Arruela Maio, filho de David, e mãe do vereador Zezito Maio.

David Maio foi personagem marcante no bairro. Tinha liderança entre os pescadores e gostava de andar de tamancas de madeira, mesmo quando ia ao Palácio Anchieta ter uma prosa com os governantes. Órfão, nasceu em Póvoa do Varzim em 1893. Aos 12 anos, fugiu com um grupo de pescadores para o Brasil. Um dia, já vivendo no Suá, viu a foto de uma bela portuguesa e não teve dúvidas: voltou à terra natal para buscá-la. Ela se chamava Maria Rosa, depois conhecida como Dona Micas. O casal dava duro: debaixo da copa de um castanheiro à beira da praia (onde hoje fica a Biblioteca Pública Estadual), ela fazia tintura para tingir as velas de pano das baleeiras e também as costurava quando rasgavam; já David foi um dos fundadores da Colônia de Pesca e um dos idealizadores da construção da igreja. Ele morreu em 1949. Ela em 1994, aos 81 anos.

O Banco da Paciência

A República do Barracão funcionou até o início dos anos 30. E esse tal fado cantado beira da praia, em noites enluaradas, na maior parte das vezes era feito sentado num banco, ponto bem conhecido pelos moradores da antiga Praia do Suá, e que recebeu o carinhoso apelido de Banco da Paciência. Tinha uns dez metros de comprimento, feito de madeira resistente. Como a paisagem noturna se mostrava um quadro, com barquinhos ancorados, luar e suave batida das marolas, o local inspirou românticos namoros "Beijei minha primeira garota ali", lembra um nostálgico José Pedro.

De tardinha, esposas e filhos costumavam se sentar no banco à espera dos marujos que retornavam da pesca em alto-mar. Quando de longe despontava uma vela inflada pelo vento, alguns já gritavam: "Lá vem fulano!", ou, "Já vem beltrano!". Típico entardecer lúdico em uma colônia de pescadores simples, e que tanto marcou a vida dos mais antigos. E quando soprava o vento sul, ninguém podia sair para o mar. "Ficávamos então, conversando no banco porque não havia divertimento. Pegávamos o violão e íamos até tarde da noite", completa José Pedro. Tudo era assim, simples e convidativo.

O Banco da Paciência durou por muitas décadas. Dizem que ficou ali, plantado na beira da maré do Suá, até o início dos anos 70, quando foi tragado pelo aterro. Levou consigo certamente, histórias e momentos marcantes daquela comunidade...

O Formigueiro

Nos anos 30, o arrabalde cresceu, mas não muito. A noite continuava sendo uma amiga constante. As casas de madeira ou de alvenaria já tinham luz elétrica, outras ainda faziam uso da lamparina. Diversão quase não existia, a não ser o bate-papo no Banco da Paciência ou uma cachaçada com os amigos. Nessa época, formou-se no Suá um núcleo de "mulheres da vida" — ninguém soube informar de onde vieram. Situado na Rua Professor Sarmento, próximo à prainha, o local "tinha um aspecto sujo", com barracos paupérrimos e gente ociosa.

À noite, a zona se transformava. Mulheres nas portas das casinhas à espera dos clientes e forasteiros apressados circulando entre os barracos. Ali funcionava uma espécie de boate, única na área, que recebeu a sugestiva alcunha de "Formigueiro". O lugar era tão popular que atraía homens de outros bairros, de todo tipo ou farda. "Os marinheiros e os soldados do 38° BI saíam de Vila Velha, cruzando a baía de barco e aportavam no Suá. Era raro não haver brigas entre eles", conta Maria Leonor, 66 anos, presidente da Associação de Moradores. "E quando tinha navio na cidade, era pior. Fervilhava de gente, e as noitadas sempre terminavam em confusões".

Mas o Formigueiro tinha também algum conceito positivo. A casa, de tão famosa chegou a receber alguns ilustres da MPB. "Um dia, a Emilinha Borba foi cantar na boate. Eu estava doida para ver a Emilinha, mas papai não deixou. Os pais não deixavam a gente entrar ou passar em frente ao Formigueiro. Era pecado", assinala Leonor dando boas risadas. Já nos anos 40, na rua General Câmara, a poucos metros da Leitão da Silva, passou a funcionar a Casa da Alagoana. A proprietária, natural das Alagoas (dai o apelido), era uma mulher gorda, de baixa estatura. "Não havia escândalos e brigas naquela casa, que apenas recebia casais. Ela (Alagoana) impunha respeito", diz Moacyr.

Tanto o Formigueiro — depois, a área ficou conhecida como Beco do Formigueiro — como a Casa da Alagoana e todo o setor de prostituição, findaram-se na década de 50. "Acabaram porque surgiram os aterros e novas famílias começaram a vir para cá. À expulsão delas (prostitutas) foi bem natural e espontânea", atesta Leonor.

O vento, a vela e a lenda

E o relógio do tempo seguia seu curso, incansável e implacável. A Segunda Guerra Mundial fervia, assim mesmo nada fazia chacoalhar a Praia do Suá, presa em sua rotina de pesca e conversa ao pé do ouvido. O sossego, entretanto, tinha dia e hora para dar uma trégua: aos domingos, na hora do almoço. "Todos largavam os pratos e iam para o meio da rua ver as confusões. Era quase uma tradição", revela Leonor, que ainda aponta os brigões: os pescadores Carlinhos e Manduca (já falecidos). "O Carlinhos e o Manduca eram amigos. Quando bebiam, descobriam as diferenças e saíam no tapa", completa a presidente da comunidade. Fora isso, tudo seguia na santa paz.

Quer dizer, até a chegada do vento sul. Êta ventinho complicado. Quando passava, costumava causar um rebuliço na colônia, afinal, maridos, irmãos e tantos outros parentes podiam estar em alto-mar correndo perigo. E quando isso ocorria, todos rumavam aflitos para o alto do Morro da Garrafa. Lá de cima, pertinho do céu, mães e filhos rezavam e buscavam ao longe, sob forte vento e trovoadas, o inflar das velas dos barcos que, com valentia, enfrentavam a batida das ondas nos cascos. Quando apontava uma vela, e se identificava o marujo, todos se abraçavam e batiam palmas. Se ficava faltando alguém, era motivo de choradeira e de muita reza para São Pedro e Nossa Senhora da Penha, que lá do alto do Convento enxergava a agonia daquela gente.

Na casa de Maria Assumpção, o clima de apreensão era o mesmo. A mãe costumava colocar a pequena Maria e os quatro irmãos de joelhos, sobre a cama de casal, para que pedissem a Nossa Senhora que trouxesse "a salvo" o pai e os parentes. Em alto-mar, sem contar com a tecnologia moderna dos rádios e do serviço de meteorologia, os corajosos marujos tinham como ponto de marcação os morros do Convento e do Mestre Álvaro. "Antigamente a pesca era uma aventura. Não havia equipamento.

Perdi as contas de quantas vezes o vento sul me levou para Nova Almeida, Santa Cruz e Barra do Riacho", diz José Pedro com ares de vitorioso.

Para apimentar a situação, existia ainda uma lenda local que contava a história de um peixe chamado Sombreiro. O animal, com nadadeiras gigantes, atacava os pescadores em alto-mar ou impedia a realização da pesca durante a madrugada. Temido por muitos, o bichano serviu de explicação para o sumiço de muitos marujos que caíram no mar e não voltaram mais... Lenda à parte, o certo é que não há números de quantos naufrágios ocorreram e quantas vidas da Colônia foram ceifadas pelas águas do mar. Somente o fundo do oceano saberia responder. É certo, porém, que muitas mães, esposas e filhos salgaram seus olhos com a perda dos entes queridos. O mar, aquele "ser" encantado que permitia a sobrevivência daquela gente, também trazia dor e sofrimento ao chamar para si os bravos marujos do Suá...

De braços dados

Naquele tempo, as moças tinham mais liberdade junto à natureza. Podiam passear sem medo da violência. Vilma Mendes, 73 anos, conta que ela e as amigas gostavam de andar em noites de luar. Tiravam as sandálias ou sapatos e seguiam a pé, ida e volta, entre a Praia do Suá e a Praia Comprida, cantarolando as músicas que ouviam no rádio. "Não havia medo. Era só areia, mar e um tapete de estrelas, e nada mais", salienta. Havia naqueles anos 40, bastante respeito entre moças e rapazes, isso porque todos se conheciam no bairro.

Já se sabia: quando um casal estava de mãos dadas, eles eram namorados; se fosse de braços dados, é porque já eram noivos. E todo mundo respeitava — ai daquele que desejasse a mulher do próximo, seria açoitado com palavras ou com desprezo pela colônia. A Almirante Tamandaré servia de passarela para as senhoritas, que andavam de um lado a outro, em grupos de quatro ou cinco, sempre de braços dados. Os vestidos, rodados e com armação, eram de renda com babado, e, por baixo, ainda traziam uma anágua.

Os rapazes usavam camisas de manga comprida. Eles, sentados ou encostados no muro, cochichavam e mexiam, e elas riam com timidez. Isso sempre ao anoitecer de sábados e domingos. Os pais ficavam de longe, só observando. "As relações eram sadias", comenta Vilma. Dali, todos seguiam direto para a famosa domingueira na sede da Colônia de Pescadores, localizada na mesma rua. No térreo do prédio funcionava o mercado de peixes, e em cima havia o salão de baile, bem frequentado e que raramente registrava uma briga. Os pais, vigilantes, esperavam as filhas na portaria. "Isso era para os rapazes verem que as moças eram de família", acrescenta Vilma.

"O mundo era bom"

Com poucos avanços em suas condições urbanas, o Suá continuava esquecido. Em 1949, Adelpho Poli Monjardim, em seu livro Vitória Física, assim escreveu: "Para a zona leste, apesar dos seus cabelos brancos, o Suá tem progredido pouco. Explica-se o fenômeno pelo aparecimento do bairro de Praia Comprida. Em outras épocas, ponto terminal dos carros de tração animal, o Suá foi muito procurado pelos banhistas, que em suas praias buscavam lenitivo para os rigores da canícula. Hoje a sua rival, com melhores praias e admirável traçado urbanístico, monopolizou as preferências da população".

Já Délio Grijó de Azevedo, em A Ilha de Vitória que Conheci e com que Convivi, cita algumas famílias do bairro daquela primeira metade do século passado: "A Praia do Suá, na década de 40, era uma simples colônia onde moravam os irmãos Varanda, os Christelos, a família Reis, os Arruela Maio e mais outros que viviam da pesca. Além dessas famílias, morava ali o doutor Lucílio Borges, um pioneiro que teve a coragem de implantar uma Casa de Saúde". Mais adiante, registra Grijó: "O maior orgulho dos moradores praianos era falar de João Capuchinho, um ex-pracinha que ficou nos campos de batalha durante a II Guerra Mundial, e do ponta-esquerda do Recreio, Murilinho, que foi para o Rio de Janeiro, onde jogou pelo Fluminense".

E, justamente por ter "progredido pouco", sendo uma "simples colônia", aquela região praiana conseguia assim manter aquilo que para seus moradores era mais importante: o sossego e a união das famílias. Maria Assumpção relata que a colônia carregava um espírito de irmandade, em que a presteza em ajudar o próximo, a atenção e o carinho sempre falavam mais alto, em que pese a tradicional fofoca, marcante em lugares pequenos. "Vivíamos como uma única e grande família. Os casamentos eram feitos dentro da própria comunidade, logo, todos tinham um parentesco", ressalta a velha lusitana.

As crianças, livres, costumavam brincar de pegar siri na beira da maré ou tomando longos banhos de mar. As boias eram de cortiça, usadas em rede de pesca. Maria conta que ela e os irmãos tinham o hábito de utilizar o salto dos tamancos de madeira — da mãe e das tias — como barquinhos em acirradas disputas de velocidade nas águas rasas da prainha. "Era um tempo de ingenuidade, de pura ilusão. O mundo era bom", acrescenta em tom saudoso. Período, também, em que não se ouvia falar em violência: "Portas e janelas podiam dormir abertas. Não se ouvia falar em assalto. Isso aqui era o paraíso". Como diz aquela cantiga, "tempo bom, não volta mais..."

O primeiro aterro

O Suá começou a perder parte de suas características, físicas e provincianas, a partir dos anos 50, com a chegada do tal "progresso". No governo Jones dos Santos Neves (1951-1954) foi iniciado o aterro do manguezal de Bento Ferreira, provocando sérios efeitos na colônia. Um deles foi quando escavadeiras e tratores rumaram para o Morro da Garrafa, depois que as terras extraídas dos montes na área de Bento Ferreira apresentaram escassez. Por sorte, as pedras logo afloraram e as máquinas foram levadas para exploração da Ponta Formosa. Contudo, não deixou de causar estragos na topografia do Garrafa.

O aterro deu passagem à avenida Mascarenhas de Moraes (Beira-Mar), impulsionando o crescimento econômico e populacional do Suá. Na administração de Carlos Lindenberg, no final dos anos 50, veio a conclusão da primeira parte do aterro do bairro. O cronista e ex-topógrafo Délio Grijó assim relata: "O aterro iniciou-se pela Praia do Suá encostado ao enroncamento que saía da Ilha do Bode até chegar à Ilha do Boi, encostando nas praias do Suá, Santa Helena e Barracão". Essas mudanças na topografia mudaram consideravelmente a vida dos moradores da, agora, ex-colônia, que ganhou um sopro de desenvolvimento. Completa Grijó: "Com isso a Praia do Suá, que era uma vila pacata de pescadores, passou a ser de uma hora para outra um bairro dos mais procurados, tanto para morar, como para lazer".

O crescimento movimentou a economia local. As peixarias ficaram famosas e recebiam fregueses de todos os cantos da cidade; os restaurantes São Pedro e Dona Sara, especializados em frutos do mar, foram consagrados como os melhores da ilha; a loja de tecidos do português Antônio Pais se fortaleceu atendendo aos novos moradores; até a padaria de Misael Pedreira, pai da ex-miss Saldanha da Gama, Edith, ganhou novo fôlego. E assim, devido aos ares dos novos tempos, foi-se embora o "Formigueiro" e findou-se a "Alagoana". Tudo em nome do progresso...

Com ele também vieram a perda gradual do lado provinciano do bairro e a sua consequente descaracterização. Os forasteiros chegaram, e trouxeram na bagagem novos costumes e modos. E os antigos habitantes já não eram mais apenas pescadores. Agora, tinham mais afazeres — muitos ganharam bastante dinheiro; outros foram engolidos pela nova realidade, e passaram a trabalhar para terceiros. Mesmo assim, ou, apesar de tudo, de bom e de ruim que pegou a todos de surpresa, a Praia do Suá se consolidou como uma das áreas mais importantes da capital capixaba, sem deixar de lado suas marcas registradas: as peixarias e os festejos do padroeiro São Pedro.

O segundo aterro

O primeiro aterro não levou do bairro sua principal característica: terra de pescador. A prainha, rasa e de fundo enlameado, continuou lá, mesmo já sofrendo os efeitos dos aterros em outras bandas. Os barcos ainda enfeitavam a orla do lugar, e os marujos permaneciam ali, tostados de sol e cheirando à maresia, tudo como antes. Mas o areal foi avançando, por ordem dos governantes, como um dos remédios para atender ao crescimento de Vitória numa época em que o país vivia o chamado "milagre econômico".

A Revista Capixaba, em sua edição n.° 17, de 1968, traz uma matéria assinada por Paulo Bonino com o seguinte título: Revolução Urbanística em Vitória. Diz o texto: "O Governo vai fazer um enroncamento partindo logo depois do Clube Álvares Cabral até as Ilhas do Papagaio, do Sururu, do Bode e do Boi. Uma avenida moderna e ampla será plantada na beira do enroncamento, a exemplo e como continuação da Beira Mar. Passará pela Praia do Suá, onde uma grande área será recuperada e urbanizada, continuará por Santa Helena... Em frente à atual Praia do Suá, na área fronteira ao Hospital dos Pescadores, será conseguida uma área enorme, capaz de comportar um excelente plano de urbanização".

Tudo isso virou realidade no início da década de 70, no governo de Arthur Carlos Gerhardt Santos, através da Condusa (Companhia de Melhoramentos e Desenvolvimento Urbano). Toda a maré do Suá foi aterrada, surgiu a "avenida moderna e ampla" (Av. Nossa Senhora dos Navegantes), e a área "capaz de comportar um excelente plano de urbanização" que hoje se chama Enseada do Suá, setor de projetos arrojados, de arquitetura moderna. Nessa região contígua à Praia do Suá, funcionam atualmente os prédios da Assembleia Legislativa, do Tribunal de Contas, do Tribunal de Justiça, do Ministério Público Federal, da Capitania dos Portos, e o principal shopping da cidade, além de escritórios de grandes empresas. Há também a Cruz do Papa, largo onde o pontífice realizou missa em 1991, e que agora serve como espaço para eventos festivos.

Invasões

Do final dos anos 50 até o início dos anos 70, o Morro da Garrafa começou a ser ocupado, na parte sul-leste, de baixo para cima, a partir da beirada da maré. Abrigou, principalmente, parentes de pescadores e migrantes do interior capixaba. Nessa época, a draga Ster, contratada para fazer a dragagem do canal de Vitória, já jogava areia no aterro hidráulico do Suá. Hoje, o local tem o nome de Alto São José e conta com infraestrutura sanitária e urbana, sendo um apêndice do antigo bairro.

Na segunda metade da década de 70, a área pertencente ao Seminário Nossa Senhora da Penha, no lado norte-oeste do morro, foi invadida por famílias carentes, vindas do sul da Bahia e interior do Estado, que sonhavam em trabalhar na construção da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST). Não conseguiram. Essa invasão, inclusive, causou polêmica na ocasião — os moradores do bairro Santa Helena não queriam a ocupação.

Para evitar maiores tumultos e uma possível intervenção no espaço, o arcebispo de Vitória, Dom João Baptista de Albuquerque, cedeu todo o terreno para os invasores em 1978. O local passou a se chamar Alto Santa Helena, sendo uma espécie de anexo do bairro homônimo. Mais de duas décadas depois, a área já conta com boa infraestrutura, possuindo creche, centro comunitário e uma capela.

Assim, o Morro da Garrafa foi dividido em dois, numa perfeita harmonia entre aqueles que precisavam de um espaço para morar. As duas comunidades surgiram — não podia ser diferente — atreladas à Praia do Suá. A Igreja de São Pedro era um o ponto de convergência entre o velho e os novos grupos, irmanados na herança de devoção ao padroeiro dos pescadores. Dessa maneira, o Suá viveu a sua segunda invasão: a primeira quando da chegada dos pioneiros portugueses, e depois para receber excluídos sociais.

 

Fonte: Praia do Suá – Coleção Elmo Elton nº 9 – Projeto Adelpho Poli Monjardim, 2002 – Secretaria Municipal de Vitória, ES
Prefeito Municipal: Luiz Paulo Vellozo Lucas
Secretária de Cultura: Luciana Vellozo Santos
Subsecretária de Cultura: Joca Simonetti
Administradora da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim: Lígia Mª Mello Nagato
Conselho Editorial: Adilson Vilaça, Condebaldes de Menezes Borges, Joca Simonetti, Elizete Terezinha Caser Rocha, Lígia Mª Mello Nagato e Lourdes Badke Ferreira
Editor: Adilson Vilaça
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Cristina Xavier
Revisão: Djalma Vazzoler
Impressão: Gráfica Sodré
Texto: José Carlos Mattedi
Fotos: Raquel Lucena
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2020

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