UMA FEIRA, COM AMOR - Por Luiz Sérgio Quarto
Um mundo pequeno e aconchegante cabe de forma disciplinada no bairro Jardim da Penha. No fim de semana esse pequeno mundo sai de seus apartamentos e se solta numa avenida quilométrica unindo uma pracinha a outra num traçado moderno de um bairro jovem considerado "nobre". Mundo esse, "danado de bão". Antes feira, feirinha, hoje feirão, mesclado por dezenas de cabeças grisalhas, marcada por um jeitinho mineiro, tímido, faceiro para os que vieram de Iúna, Ibatiba, Irupi e de outras partes de um mundo tão frio, tão caparaó.
Nas manhãs de sábado, a terceira idade não só faz a feira, como também faz a festa. Tais como os pardais, optaram pela capital. O bairro classe "A" da zona norte de Vitória acolheu um interior em busca do saber tão próximo da UFES. Seus jovens o invadiram. Calçado, Cachoeiro, Linhares e tudo quanto é lugar bateu por lá. E por ele se apaixonaram. São tantos meninos e meninas de 13, 14, 15 anos, que os pais, avós, tios vieram atrás de suas crianças. Alguns foram pra ficar de vez. Afinal, descobriram as maravilhas de uma cidade-sol, de uma praia com o seu rejuvenescedor calçadão camburiano.
E é no sábado que esse mundo se espreme entre barracas, barraquinhas, velhas kombis, carrinhos de milhos verdes, papas e pamonhas, e a madame pede e será atendida na próxima semana: milho assado para relembrar Guaçuí, Muqui com suas fazendas, seus milharais, suas festas juninas. As pinhas que estouravam nas brasas das fogueiras e dos velhos fogões estão na lista. Muitos são os pedidos.
Não deixa de ser uma feira solidária e folclórica com certeza. A cultura se preserva nos papos com homens, mulheres, crianças que plantam, colhem e distribuem sorrisos, afagos, lembranças. Devolvem eles ao mundo urbano os cheiros não esquecidos, as lembranças não apagadas, como o fogão de lenha, a linguiça, a carne, o toucinho dependurados no fumeiro; o torresmo que se tirava da lata de banha, sem cerimônia, sem proibição, sem horário, numa época em que não se falava tanto de um bicho papão chamado colesterol.
Um homem solitário de bermuda branca, camiseta cinza, tênis branco, boné de veludo — seu traje típico para essa ocasião — passa uma, duas, mais vezes fazendo a avenida como se estivesse paquerando. O seu flerte é para as hortaliças, legumes e frutas. O colorido que delas jorra, de suas formas, de suas entranhas, o atinge. Como o atinge a explosão rubra e frenética vinda dos tomates, dos tomatões, dos morangos e dos caquis. Aos 65, deu até para perceber o charme de um maço de rabanetes tão vermelhos, tão oferecidos e por ele não correspondido por tanto tempo. E se culpa por ter jogado tanta abóbora, tanto chuchu, tanto aipim pros porcos. Sim, era aquela a sua concepção sobre o mundo vegetal tão sem importância perante o mundo animal.
Hoje compra e come com prazer: couve, alface, salsa, hortelã, agrião. "Se de abóbora faz melão, de melão faz melancia", o agrião fazia a poesia, formando um manto verde, natural, margeando o córrego que passava mansamente pela horta. A folha de taioba servia de canecão para saborear melhor aquela água cristalina da biquinha que nunca secara. Odiava ele a tal da taioba, enquanto sua família se deliciava, misturando-a com angu de fubá grosso vindo do moinho.
O homem interioriza fatos. Não conversa. Prossegue sua caminhada. De repente para e compra inhame chinês que tanto a filha pedagoga lhe recomenda: "Papai, come inhame. É bom para o sangue." Tudo que vem da terra faz bem à saúde, filosofa: "Engraçado: depois de aposentado, já morando na capital, descobri que a camomila faz um bem danado à digestão, ao fígado, à pele e é bom pra tosse. E quantas vezes, meu Deus, meti a enxada nas ervas que a gente chamava de pragas." Portanto, nesse momento, na feira do Jardim da Penha, ele se descobre, se informa e discute com sabedoria com o amigo de Paraju, a respeito do equilíbrio na alimentação proporcionado pelas ervas, quebrando assim o seu silêncio. E ele aprende e ensina o que é bom para os rins, para os ossos, para as dores. — O senhor não tem alecrim? É bom para a circulação. O homem do campo não sabia. Mas o homem sabia que alecrim é bom também para a digestão, para os rins; e é sedativo.
— Vivendo a aprendendo. Não é, "Seu" Armando? No próximo sábado trago alecrim pro senhor. E o seu netinho já melhorou da prisão de ventre? Experimente alho amassado com azeite. Regulariza logo os movimentos intestinais. "Seu" Armando devolve ao amigo os seus conhecimentos: "Não se deve abusar do pimentão. Ingerindo-o em excesso pode causar taquicardia e hipertensão." E para curar ressaca nada melhor que tomar água de coco ao acordar.
Mudando de assunto, "Seu" Armando: como vai a sua senhora? Já deixou o hospital? E esse mundo dialético/dialógico de papos, trocas de favores, de receitas enche Jardim da Penha de encantos, odores e flores.
Algumas flores do campo estão ali expostas e, pela freguesa que aproveita a feira para fazer o seu trabalho de evangelização, são percebidas, e por ela acariciadas. Chega a ficar arrepiada sempre que as vê. E lembra de Deus e do evangelho: "Olhai os lírios do campo." E ela, lá na roça, nunca levou as flores bobinhas do campo para as suas jarras. A simplicidade das flores incomodava a sua simplicidade de mocinha sonhadora da roça, que ouvia rádio, lia almanaque de farmácia, e namorava as folhinhas de parede. Talvez por isso quisesse algo mais: por que não as tulipas da Holanda? As hortênsias de Petrópolis e de Gramado? Ou a camélia do Orlando Silva, que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu? Ou as camélias da Dama das Camélias?
Apreciando o mundo floral da feira, bate em sua mente aquela cantiga dos tempos de criança cantada no terreiro de café da fazenda do avô, ou no paiol de milho que servia de sala de aula: "Alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo sem ser semeado..." Em sua lista de lembranças pede à feirante de Aracê que lhe traga alecrim do campo, miosótis, flor-de-lis, flor-de-maio, érica... — A senhora tem jardineira em seu apartamento, Dona Florides? Eu posso trazer uma muda de flor-de-cera já pegadinha. Ela agradece à gentil senhora de traços rudes, de mãos grossas, de coração leve, e mesmo sendo luterana, é tão evangélica quanto ela. Dona Florides ri de suas lembranças e se questiona: Isso! Por que não se emocionar com as flores do campo sabendo que vêm de tão perto, tão próximas do seu coração? Viriam orvalhadas? O moço de traços orientais com o seu tradicional pastel e caldo de cana tira sua concentração. Para ela, caldo de cana é garapa. Assim que se falava na roça. Seria o vendedor: japonês, chinês ou coreano? É uma pergunta que sempre faz, mas nunca busca resposta. Acha graça disso e lhe pede um pastel de palmito, com refrigerante. Descobriu que "garapa" lhe dá azia. No apartamento da filha mais velha, ali pertinho, o netinho televisivo espera que ela lhe traga pastéis de queijo, biscoitos amanteigados, suspiros e mariolas.
Como se vê, Jardim da Penha se reúne numa feira não para comprar simplesmente. Um bairro repleto de gente vinda do interior que vai em busca de suas raízes, e sai de lá, de alma lavada. É por isso que o bairro nas manhãs de sábado é mais bonito, bem mais humano. Cordial mesmo. E se você, caro leitor, ainda não foi até lá: Vá, mesmo que não tenha vivido no interior. Mas vá com a seguinte condição: a de expor o seu interior. Feito isso, será bem-vindo. Ou melhor: festejado.
AUTOR: Luiz Sérgio Quarto
FONTE: ESCRITOS DE VITÓRIA - Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES
Prefeito Municipal: Paulo Hartung
Secretário Municipal de cultura e Turismo: Jorge Alencar
Coordenadora do Projeto: Silvia Helena Selvátici
Conselho Editorial: Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Bibliotecárias: Lígia Maria Mello Nagato, Cybelle Maria Moreira Pinheiro, Elizete Terezinha Caser Rocha
Revisão: Reinaldo Santos Neves
Capa: Mercado de São Sebastião restaurado pela Prefeitura Municipal de Vitória (1995)
Foto de Leonardo Bicalho
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer
Impressão: Gráfica Ita
Compilação: Walter de Aguiar Filho, Junho/2022
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