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Valores sepultados no fundo do Rio Doce

Vapor Juparanã

Geme e range sob o peso das areias movediças, no leito do rio, a enferrujada carcaça do Juparanã. Há poucos anos, ainda se divisavam a proa, as escotilhas, os camarotes que testemunharam histórias e aventuras, o tombadilho do vapor, na borda do caudaloso rio, amarrado por grossas cordas, nas barrancas peladas, no mesmo sitio -, proximidades do Ginásio Conde de Linhares -, de onde, há mais de meio século, partia para a sua primeira viagem, rumo a Linhares, com escala em Regência Augusta, na foz do rio junto ao mar.

Decorrido alguns anos, submergiu sob o peso das correntezas, tendo por testemunha a garotada vadia, que assomava a sua chaminé como se fora um trampolim para saltos e mergulhos, nas cheias, hoje raras, mas que, ainda, assombram a população ribeirinha quando as chuvas castigam suas cabeceiras nas Minas Gerais.

Melancólico fim, inglório epitáfio para uma embarcação que por mais de cinco décadas prestou relevantes serviços às populações ribeirinhas, em quase total abandono, com uma pontualidade britânica dos antigos paquetes ingleses, que aportavam aos portos brasileiros no começo do século XX, regularidade que veio a considerar-se como paquetes o ciclo menstrual da mulher brasileira...

Sua tripulação era aguerrida, recrutada ali mesmo, entre os caboclos das ensombradas dos cacaueiros e dos grandes jequitibás, pela argúcia do comandante Pedro Epichim, (1890 – 1968), um russo branco de velha têmpera, aventureiro quanto corajoso, havia abandonado sua terra natal, uma cidade do império dos Tzares, assolado pela revolução de 1917, vindo aportar em um navio russo no porto de Vitória. Era engenheiro naval, e foi ter às oficinas da Vitoria – Minas, em João Neiva. Foi ali que o Governo realizador de Florentino Avidos o descobriu, entregando-lhe a missão de montar as peças e erguer o maquinário de aço importados dos estaleiros alemães, sob encomenda, vindo nos porões de um cargueiro germânico.

O Juparanã era, aos meus olhos de garoto, uma nau importante. Mais tarde, lendo o Don silencioso, de Mikhail Sholokhov, prêmio Nobel de 1965, uma obra escrita com amor e realismo, vim a encontrar um traço de união no sofrimento daquela gente com a nossa, do rio Doce, na trama humana, com uma diferença, que a obra de Sholokhov falava do sofrimento dos cossacos, suas mutações. Nossos caboclos minguavam nestas florestas tropicais sob as intempéries e as epidemias que os consumiam e os dizimavam em suas casas de palha.

Dentre as minhas “remembranças”, daqueles dias de menino nascido às margens do rio, avulta a visita que o então interventor João Punaro Bley fez à lagoa Juparanã, nos primeiros anos da revolução de 1930. Decorria o ano de 1933 e, numa manhã crispada pelo sol, o vapor ancorou no Porto de Rio Pequeno (Juparanã), na porta de entrada para a grande lagoa. Estava todo enganalado, cheio de bandeiras e bandeirolas. Na proa divisei o comandante Epichim e o capitão Punaro Bley – este ainda teimava em usar o uniforme comum de campanha: cinto, capacete de cortiça, botas, talabar e uniforme verde oliva – debruçado sobre a casa de comando. Das pedras do cais, qual personagem das histórias de Mark Twain, o poeta do Mississipi, ainda pude sentir que a comitiva conduzia pessoas influentes da época. A tripulação exibia vistosos uniformes e Epichim (uniformizado) envergava seu porte marcial, embora marinheiro de águas doces via-se nele um orgulho de sua missão e um como que de determinismo incoercível dos tempos de desbravamento de uma inóspita região fluvial.

Outra lembrança que me ficou, indelével, guardo-a do meu encontro com Filogônio Peixoto, um pioneiro do cacau do vale, vindo da Bahia, em 1917, trazido pela mão de Lastênio Calmon (pai) para plantar nos baixios do rio a riqueza do cacau.

Meu pai, Humberto Calmon Fernandes, apresentou-me ao velho pioneiro, um homem elegante, de gestos nobres, que freqüentava Paris e Londres, colocando na Europa suas milhares de sacas de cacau; presenteou-me com uma caixa de biscoito parisiense e o meu pai ganhou o romance Maria Bonita, que deu nome à modelar fazenda que edificou a poucos quilômetros da então Vila de Linhares. O Juparanã foi palco do inolvidável encontro.

Dr. Moniz Freire (José de Mello Carvalho Moniz Freire), desde o Império, preocupava-se com a navegação no rio Doce, tentando criar a Companhia de Navegação, visando incremento do comercio, mas, sobretudo, a colonização. Na República, novamente presidente do estado (1892 – 1896), cuidou de novos estímulos à navegação fluvial pelo rio. Henrique da Silva Coutinho, sucessor de Moniz Freire, como presidente do Congresso Legislativo, pela lei estadual nº 152 de 27-11-1895, concedia trinta contos de réis como subvenção a quem explorasse a navegação a vapor no caudaloso rio. De 1905 em diante a firma Viana & Cia., ajudada por Cleres Martins Moreira, as famílias Calmon e Milagres mantinham, navegando, os vapores Muniz,Milagres, Santa Maria, o Tamoio, o Tupy, com a escala de baixo Guandu-Linhares, Juparanã e Regência Augusta.

Nos anos 40, Maurício Neves Calmon, meu tio, com peças de montar e de trator, construiu um vapor a (óleo diesel) com capacidade de 30 toneladas seguindo a mesma rota de Colatina – Regência – Juparanã. Transportou até o Circo Teatro Stevanovic, em suas raras incursões pelo Estado. Desapareceu como nasceu a navegação fluvial pelo rio: o assoreamento do rio, a diminuição do curso d’água, a concorrência do sistema rodoviário, mais rápido.

Ainda vê-se, hoje nos barrancos de areia, em Colatina, numa ilhota abaixo da ponte Florentino Avidos, o esqueleto do vapor Tamoio, ali deixado por ter transportado dezenas de portadores de varíola preta (bexiga) que ameaçava contaminar as populações. Sepultado, também, nos bancos de areias, ali perto, está o vapor Tupi, que, como todos os barcos movidos a caldeiras (lenha), teve o trágico fim: o fundo do rio.

E, o outrora caudaloso rio Doce, o outrora “Amazonas” capixaba, agoniza, sob o estigma maligno da doença moderna, o assoreamento, uma vergonha para os nossos contemporâneos, que pagarão caro por esse crime. O rio será, daqui a meio século, um campo de pelada para a molecada vadia, um local para as alegres lavadeiras enxaguarem suas roupas e lembrarem, quando o rio era grande, largo fundo, cheio de peixes e de vidas e estuante de felicidade e palpitante de esperanças!

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nº 61, 2007
Autor: José Tristão Fernandes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2011



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