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Vitória, cidade que me fez voltar... - Por Gracinha Neves

Capa do Livro: Escritos de Vitória nº 6 - Parque Moscoso, PMV e Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo, 1994

Retornar à cidade luz, a cidade sol! Por que e para que?

A certa altura de minha vida, tocada por uma fé sem limite, ainda cheia de esperança; a minha cabeça se pôs a mexer, como que murmurando a todo o tempo, uma única ideia, um único pensamento... percebi então, que aquilo era um sonho! O sonho de me tornar alguém, de me tornar conhecida e experiente. Eram muitas as artes que representava, cheguei a fazer além de música, teatro, ballet e pretendia fazer pintura, mas esse dom fugiu ao meu controle; e, então queria mesmo ser educadora musical. Voltando um pouco mais, o meu pai, embora um homem sem estudos, apenas com o nível primário da época, tinha a sabedoria do espírito, do poder e do querer! Ele lia muito e por isso tinha uma outra visão de mundo. Em 1949, pós guerra, comprou um piano alemão, que se encontra até os dias de hoje com a família, levando-o para o interior do Estado, na Vila de Santa Luzia, atualmente cidade do Pancas. O que eu queria mesmo era sair de Vitória, conhecer, aprender e retornar ao lugar de minha origem com conhecimentos vastos para tornar-me um elo de profissão de amor, na vida musical capixaba. Assim, iniciou-se uma luta insana, em princípios, no ir e vir, toda a semana partia em busca de vínculos com a cidade grande, onde certamente receberia maiores informações. Após um ano, decidi morar, almejando a vivência com o Rio de Janeiro. Lá, diante de novas oportunidades, estudando, viajando, conhecendo grandes nomes da literatura musical, aprendendo anos a fio até os diplomas, a chegada à volta, na terra natal. Nem pensar que foi fácil! Enfrentei dias tristes, alguns alegres, outros pesarosos no viver longe de casa, com a saudade de uma família de dez irmãos. Tudo aconteceu de maneira sonhada, do sonho à construção de uma pequena escola, feita pelo meu pai, que ele mesmo apelidara “Escolinha da Gracinha”, mais tarde a criação do Centro, o logotipo imaginado, a certeza do nome – Villa Lobos – (o compositor de inúmeras jornada, fundador de grandes projetos - que 20.000 vozes ecoavam nos estádios regidas pelas suas mãos mágicas) e, como numa visão de me tornar também vitoriosa, e, então prestamos ao ilustre homem, a nossa homenagem, como Patrono do Centro. Assim foi instalado e registrado em setembro de 1973, na Praia do Canto, no pequeno prédio com três salas, o “Centro Musical Villa – Lobos”.

Naquele período, pensávamos que os obstáculos eram vencidos pela experiência e fé e nada nos fazia olhar para trás, somente para frente.

Inicialmente, surgira, como um movimento musical revolucionário, o curso de Musicalização para despertar o gosto pela música através de uma maior conscientização dos reflexos sensoriais e tomando como base a importância da educação musical para todos; numa reflexão com conteúdos e propostas ao futuro. Hoje, passados trinta e cinco anos; a certeza de ter formado além de professores de ensino fundamental e médio, artistas que hoje desempenham com sabedoria as suas funções no mercado de trabalho desse e de outros Estados, e também no exterior. O empunho da bandeira da educação de uma música pura, essencialmente erudita, nos fazia a diferença pelo ideal de ter uma Escola voltada para o ensino musical sério, digno e expressivo. Construímos mais salas, um auditório com dois novos pianos de cauda e, ainda a vitória de conseguir a autorização e reconhecimento dos Cursos Técnicos Profissionalizantes, naquela época, a única com essa denominação, com parecer favorável do Conselho Estadual de Educação e publicado no DIO, em 1978. Essas propostas foram sempre pautadas por nós, para ter uma Escola viva, legalizada e realizando Festivais Nacionais, Concursos, Seminários, Concertos, Máster-class, numa competição sadia de inúmeras realizações e atividades como intercâmbio cultural para facilitar o acesso dos nossos estudantes sem condições financeiras à outros centros para alçarem vôos num tempo futuro. O entrosamento de uma linguagem universal com ritmo de um momento rico em trocas possibilitou o apoio da FUNARTE ao nosso Centro Musical, tornando-o conhecido nacionalmente através da Rede Nacional da Música. A consolidação de um tempo com os vínculos do saber atualizado, sem fugir aos princípios básicos dos ensinamentos, nos trouxe demandas de alunos talentosos e professores altamente capacitados. Percorremos vários Estados com o patrocínio do MINC, recém fundado e, que sem nenhuma modéstia contribuímos para a instalação e reconhecimento da CNIC - Comissão de Incentivo à Cultura, através da lei Rouanet.

Sonho, virando a cada momento, um tempo único! Construímos professores em Colatina, Linhares, São Mateus, Cachoeiro de Itapemirim, Afonso Cláudio, Venda Nova e Domingos Martins.

Idealizamos o I Festival de Inverno, como MUSICAMP - música no campo; pois a cidade de Domingos Martins, era mais conhecida como Campinho.

Relembrando um dos Sermões de Padre Vieira "... nenhuma coisa desse mundo pára ou permanece, todas passam e tudo passa [...], pois nada é mais veloz, fugitivo e instável do que o tempo. Tão instável que nenhum poder, nem ainda o mais divino pode pará-lo"....Assim tivemos uma participação em um tempo, na história do Espírito Santo. Foram momentos de glória, com interesses mútuos, formaturas, concertos internacionais com inclusão de nossos músicos capixabas, Festivais de Músicas Brasileiras com linguagens contemporâneas, Concursos Nacionais Villa-Lobos com a presença de Mindinha (a viúva do compositor). Tudo, com a devida preocupação de fazer o melhor! vivendo de um lado a alegria das realizações, com a esperança de continuarmos sempre e, de outro lado, enfrentando com dignidade as dificuldades múltiplas e as complexidades dos obstáculos para chegarmos ao esforço do ainda existir até os dias de hoje. Nesse processo de continuidade, instruímos aos nossos alunos, o acreditar na luz da esperança e no sol de cada dia, o bendito sol brilhando no céu de Vitória, com seus raios em riscos avermelhados e tons dourados, lá bem longe, no infinito. Parecia mesmo, um viver mágico! Comemorar a célebre frase "Viver é ver Vitória!", ou seja, pregando a cultura musical como papel predominante na educação e na história dessa cidade, com abertura e prosperidade ao mercado de trabalho. Grande ilusão! Lembramos com saudade as temporadas artísticas de um passado, cujo passado eu sei, que não voltará jamais.

Hoje, para mim também, viver significa ver, mas querer ver o sol brilhando para todos nos arredores da Cultura, sem delimitar fronteiras de Vitória com outras cidades, tornando a arte, não uma morte disfarçada, mas sim uma vida presente no eixo cultural do país. Não conseguiremos chegar ao primeiro mundo, ignorando as fontes de essência e de cidadania; essa fonte fechada nas mãos de políticos demagogos, impedindo a valorização do filho da terra, e enaltecendo aquele que veio de longe, com ideias passageiras. Fechar é tornar uma cidade província, mesmo que ela tenha crescido de forma monumental; o crescimento desordenado de Vitória não deixou de continuá-la provinciana, a terra do modismo. Fala-se que a sociedade capixaba não frequenta eventos de arte, e eu tenho tristeza, pois gostaria de usar o sol de Vitória como espelho de grandes realizações para ecoar de norte ao sul, e torná-la a capital da Cultura. O fazer cultural com naturalidade, sem luta e sem sofrimento, arraigada de uma fonte de luz verdadeira, o brilho da emoção, cultivado pela razão de nos tornarmos independentemente livres dos interesses próprios. Eu ainda queria viver a força da magia, mesmo nessa idade... viver iludida! mas eu tenho quase sessenta anos e, quando me perguntam se sou capaz de realizar o IX Concurso Nacional Villa-Lobos? Eu paro e penso..., mas penso muito; e me vejo diante dos obstáculos... Em 2009, serão comemorados, no mundo, 50 anos de morte de Villa - Lobos... E, nós, capixabas, ainda teremos a capacidade de correr atrás de recursos para premiarmos e incentivarmos talentos brasileiros? A aptidão é sem dúvida, a mais profunda sabedoria do espírito e, como educadores, temos a obrigação de cultivar em nossos alunos, esse dom vital para que não os tornem profissionais medíocres. Sabemos que o nosso esforço não é reconhecido, pois uma minoria tende a levar a cultura nas costas.

A nossa garra, o nosso desafio e o nosso atrevimento foram longe demais. A luta pela cultura musical capixaba me fez amigos e inimigos, tornou-me frágil e, ao mesmo, tempo corajosa e ainda, me fez entoar cantilenas perdidas, e voar muitas vezes como andorinha dispersa de seu bando. A maior parte do tempo dedicava-me ao ensino musical como religiosidade; a cada caminho, acolhia pessoas e passava para muitos todos os conteúdos de meu aprendizado, sem ambição e sem egoísmo. Um aprendizado trabalhado e sofrido, numa idade, ainda nem menina e nem mulher... como na poesia de Machado de Assis, numa idade inquieta e duvidosa...mas idade sonhadora, esquecendo de si mesma, mas a cada ano se tornando competitiva, em fazer gerar frutos de gerações a gerações. Não tive temor e nem medo de concorrência, sentia-me como uma espécie de vírus espalhando sementes para virem a germinar no futuro. O vírus que não mata, e que renasce a cada dia. Voltei a minha terra natal para doar, doar o ideal de se orgulhar de uma terra cercada de águas, terra dos lindos mares, terra — chamada ilha de mel, cidade sorriso de mulher. Um sorriso que muitas vezes é um sorriso sem naturalidade, um tanto falso, com o salivar de gosto amargo.

Transformar o sonho em realidade, no começo foi muito prazeroso, mas sem imaginar os conflitos que enfrentaria e que teria de saltar enormes etapas, sem ter a certeza do tamanho dos pulos. Hoje, passados longos trinta e cinco anos, sentimos findar um ideal, ver banir o velho sonho de menina, sem perspectiva, sem espaço e sem mais futuro.

Viajo no silêncio da noite, lamento a escalada percorrida, e, no limiar da escuridão, sinto-me mais uma vez fortalecida, partindo resignada, deixando para trás mais uma história que Vitória, a cidade sol, enterrará para sempre! Assim seja, bendita entre tantas, a excluída, em contribuir para o resgate da memória cultural de um país, muitas histórias culturais que o tempo já se encarregou de esconder.

Num dos momentos existenciais, brotou um poema, me curvei diante de um papel e peguei a pena sem pena, para escrever o imaginário e assim, me debrucei com o olhar vago e sem rumo... voei, esqueci meus lamentos e minhas dores e cheguei ao Porto de Vitória.

Pássaro em fogo ardente

a sobrevoar o Atlântico,

aporto a uma ilha: Vitória.

Voo no visível e no invisível.

Busco silêncio, som, água polida.

O luar pousa sobre a tranquila superfície;

A noite se esvai nos tons do amanhecer

que lentamente surge na ilha de mel.

No lilás-azulado do céu

A sombra das nuvens

Entre vergões vermelhos

Irrompe na manhã do tempo.

Ecos de brisa se alteram.

O reflexo de um outeiro

surpreende o mar sereno.

No seu topo, um castelo.

Pedra sobre pedra, sonho sobre sonho.

Entre o verde das matas,

a alva silhueta do Convento da Penha.

Sobrevoo a terceira das pontes;

além terra, além céu

interligando os mares...

Flutuo, giro e alço voo,

mais uma vez, sobre as brumas do mar

no seu vai e vem de ondas espumantes,

rastelando as pegadas da areia.

Sou um pássaro a sonhar na cidade sol, na cidade luz.

Sou livre!

 

Fonte: Escritos de Vitória nº 6 - Parque Moscoso, PMV e Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo, 1994
Autora do texto: Gracinha Neves
Gracinha Neves nasceu em Pancas, ES em 1949. Musicista, poeta, prosadora e ensaísta. Pertence à AFEL, que presidiu de 1992 a 1996 e à AEL.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2019

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