Vitória era assim
Livro:
VIAGEM DE PEDRO II AO ESPÍRITO SANTO, 1980
Autor: Levy Rocha
N.R.: Vitória há 126 anos atrás
Há cem anos atrás, a capital da província
do Espírito Santo, muito embora já gozasse dos
foros de cidade, não passava de um povoado cuja resistência
aos hábitos e tradições coloniais entravava
o progresso. Sua população pouco excedia a cifra
de cinco mil habitantes, vivendo a maioria com o produto da
pesca e avassalada pelo marasmo e a indolência.
Sem obedecer a qualquer regularidade ou simetria, Vitória
se apertava em anfiteatro, à margem de plácida
baía, ruazinhas estreitas, tortuosas, escorregadias,
procurando o paralelismo da praia, ou subindo as rampas do
morro desbeiçado pelas enxurradas e enfeitado pelas
ramas de melões-de-são-caetano, perdendo-se
em becos ou vielas ladeirosas e labirínticas.
Ruas ou ruelas, algumas apertadíssimas, tomadas pelo
vicejante capim-pé-de-galinha, calçado ou não,
com pedras disformes, como a Ladeira do Pelourinho, ao longo
da qual não passavam três homens em linha de
frente, famosa por nela ter morado, outrora, em um sobrado,
a heroína Maria Ortiz, que fizera recuar os holandeses,
jogando sobe eles água fervente. Ruas dos Pescadores,
da Capelinha, do Comércio, do Porto dos Padres, de
Santa Luzia, da Fonte Grande, Ladeira de Pernambuco, Largo
da Conceição, Pelame e a pitoresca e modesta
rua da Várzea. Na rua das Flores, outro vulto da história
capixaba, o herói Domingos Martins, cabeça da
Revolução Nativista Pernambucana de 1817, vivera
parte de sua infância. Ah! eu já me ia esquecendo
da rua do Ouvidor, antiga rua da Praia, que, nem ao longe,
pelo aspecto modesto, podia fazer lembrar a sua homônima
da Corte, e a rua do Piolho...
As casas, em grande parte assobradadas, algumas com janelas
de vidraças em cores, balcões de madeira e portais
de pedra, entalhados em Portugal, trazidos como lastro dos
navios, casas ou choupanas, cabriteavam em desordem a encosta,
repousadas em esteios suplementares, em estacas, ou sobre
velhas bases de alvenaria.
Nos telhados limosos, telhas em canoas, e nos seus beirais,
chilreavam as cambaxirras, revoluteavam as andorinhas, cresciam
plantas audaciosas, adubadas pelos urubus (os mais eficientes
“funcionários” da Limpeza Pública),
que se postavam a cavaleiro, no convexo das cumeeiras, abrindo
as asas para se requentar ao sol.
A vista da baía era sempre agradável, especialmente
quando postado o observador mais de longe, para abarcar o
conjunto emoldurado pelo verde da vegetação;
o extenso mangal da preamar; as fruteiras das chácaras
e dos pomares e a mata que vestia os elevadiços.
Desembarcava-se no Cais das Colunas, situado abaixo do Palácio
da Presidência; no da casa do Azambuja; no Cais Grande,
onde atracavam as sumacas; ou no Cais do Santíssimo,
do Batalha ou o Porto dos Padres.
Em plano de destaque, projetava-se a principal construção,
o antigo Colégio dos Jesuítas, grande quadrilátero,
liso, de dois pavimentos, adaptados para Palácio da
Presidência. Comportava a respectiva Secretaria; um
colégio de instrução literária,
o Liceu; a Tesouraria da Fazenda; a Administração
do Correio; o Armazém de Artigos Bélicos e a
Biblioteca Pública; mas estava em estado deplorável:
telhado esburacado e cheio de goteiras; teto, pavimento e
paredes muito sujos; portas sem chaves e móveis estragados.
“Pareceu-me, quando entrei por ele – relatou o
Presidente Veloso – que era uma casa desabitada, há
anos, está impróprio para ser ocupado por qualquer
pessoa que tenha tido um pouco de educação...
O edifício da Alfândega, cuja renda, por sinal,
era pequena, realçava em modestas proporções.
Mas eram as igrejas, pelas posições sempre em
destaque, que constituíam os melhores pontos de referência
à mirada panorâmica. A de S. Tiago, embora de
arquitetura de medíocre interesse, contígua
ao Palácio, marcava, com o zimbório curvilíneo
da sua torre maior, o histórico e venerável
local do sepultamento do taumaturgo Anchieta. À sua
frente, situava-se a igreja da Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia, o único hospital em toda a Província.
Não muito afastadas, nos pequenos largos e praças,
além dos conventos franciscano e carmelita, outras
igrejas salpicavam os morros.
Já Marcelino Duarte, ao rever aquela terra natal, escrevera:
“...Surgindo da flor d’água lentamente
Vai a linda cidade da Vitória,
Que vista pitoresca!
Um montão de edifícios
Cobre a rasa colina!
De sobre os edifícios se levantam
Quatro torres da alegre perspectiva
Parece ver ao longe
As famosas cidades
De Tebas ou de Tróia”.
Quanto às condições de vida e higiene,
desnecessário se faz referir à abundância
do peixe, pois havia uma indústria da pesca desenvolvida,
com duas dezenas de lanchas que iam pescar em alto-mar, nos
Abrolhos e em Cabo Frio, demorando-se dias para regressar
ao porto trazendo os peixes salgados. A carne verde, porém,
escasseava, pois as reses sacrificadas nunca satisfaziam o
consumo. Havia uma padaria explorada por um cidadão
francês, o Sr. Penaud, mas o pão do pobre, não
dizer, o lastro da sua alimentação, era a farinha
de mandioca ou o fubá de milho.
Farmácias só havia três, geralmente mal
sortidas, sendo uma da Santa Casa. O “safa-onça”
eram as boticas homeopáticas, dos curiosos.
A água do abastecimento, de boa qualidade, captada
em mananciais da ilha, vertia nas fontes da Capixaba e Lapa,
situava onde se cruzam hoje as ruas Coronel Monjardim e outro
no Largo da Alfândega.
Assim as cantou o mesmo poeta:
“... Bebo as águas puras da Capixaba e Lapa.
Bebo o santo licor das duas fontes,
Que a natureza formou e inda conserva;
Não bebo as águas nascidas
Das patas do cavalo”.
Além de outra, havia ainda a Fonte Grande, que se situava
onde se cruzam hoje as ruas Coronel Monjardim e Sete de Setembro.
A iluminação pública era feita com sessenta
e oito lampiões com candeeiros a azeite de sebo, azeite
de “carrapato” ou óleo de peixe: insuficientes
para bem servir às trinta e uma ruas, sete ladeiras,
oito becos, quatro praças e outros tantos largos, formados
pelos trezentos e setenta sobrados e setecentas e tantas casas
térreas. Valia como um esforço da administração,
a qual despendia soma muito além do orçamento,
subindo as despesas acima de oito contos de réis por
ano.
Acendiam-se os lampiões pouco antes do anoitecer (pelo
regulamento, um quarto de horas antes) e nas noites de lua,
sob pena de multa de um mil réis por lampião
apagado, também por um quarto de hora devia ser mantida
a iluminação, até que o luar aparecesse...
O correio para a Corte era feito de cinco em cindo dias tornando-se
mais regular com o estabelecimento das linhas de vapores das
Companhias Espírito Santo e Mucuri. Dois paquetes:
São Mateus e Mucuri, realizavam viagens mensais ligando
Vitória, Caravelas e Rio de Janeiro, com paradas nos
portes de atracação intermediários. Quarenta
mil réis pagavam o preço de uma passagem em
camarote ou à ré, podendo-se fazer acompanhar
das mucamas e escravos, abrigados no convés ou em camarote
à proa, pela metade dessa quantia, e das crianças
de menos de cinco anos, sem pagar passagem.
Os divertimentos da cidade, a despeito da índole pacífica
e folgazã do povo, rareavam. Verdade é que não
faltava, nas casas dos caboclos e dos índios civilizados,
uma viola para as modinhas e os desafios e os pretos escravos
não perdiam os lundus e jongos, ou uma oportunidade
para amortecer o coaxar dos sapos com batecum do ticumbi,
levado até os ancoradouros quando chegava um vapor.
Já a classe média se entediava com mais facilidade
e procurava contribuir para a animação das festas
religiosas que, em certos meses, como o de maio e junho, eram
muitas. Festas do Divino Espírito Santo, de São
Benedito dos Caramurus, de N.S. dos Remédios, do Santíssimo
Sacramento, de N. S do Carmo ... tantas em uma só quinzena!
Na rua da Praça Nova, nº 3, havia a tipografia
Capitaniense, de Pedro Antônio d’Azeredo, onde
era impresso o bissemanário – Correio da Vitória
– (saía às quartas e sábados).
Tiragem diminuta, por isso as suas preciosas coleções
se perderam.
As pessoas de cultura davam o seu apoio ao teatrinho 7 de
julho, influência do capixaba João Manuel de
Siqueira e Sá, estimulando os amadores na encenação
de peças, enquanto a assistência superlotava
a pequena e sufocante sala de espetáculos. Ms, por
vezes, se consideravam como exilados, mesmo o presidente da
Província, o Dr. Pedro Leão Veloso, o qual escrevia
no seu primeiro relatório: “...tenho gostado
acho-a sumamente atrasada em todos os sentidos; vive-se mal
porque sobre ser a vida muito cara falham todas as vantagens
de um país civilizado”.
Em tais circunstâncias, é fácil imaginar
com que alegria e entusiasmo foi recebida a notícia
da anunciada visita de Suas Majestades Imperiais ao Espírito
Santo.
Links Relacionados:
Fotos antigas de Vitória
Visita
de D. Pedro II ao Espírito Santo
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