Mercados de Vitória – Vila Rubim
Aqui
tem
Há duas maneiras de se ir ao mercado. A mais prosaica
é “ir de compras”: cesta na mão,
bolsa preta pendurada no ombro com o dinheiro grosso e o trocado
e, chegando lá, lerdar no passo olhando com olhos críticos
os coloridos montinhos de tomates vermelhos, pimentões,
alfaces de saiotes franzidos, laranjas cor de laranja, abóbora
cor de abóbora, jabuticabas que parecem olhos de menino
travesso.
A outra maneira é ir de intrometida, na base do folclore,
procurando o inusitado.
Quando criança, ir ao mercado da Vila Rubim com mamãe
era um programa dos mais interessantes. Para mim, ao menos.
Ela ia de cesta na mão, bolsa preta pendurada no ombro
com o dinheiro... eu ia “de folclore” –
descobrir aquele mundo de cheiros estranhos, a colher avidamente
raras sensações. Um mundo singular! Como defini-lo?
Era um cheiro de salsa, de escamas de peixe, rumorejo de vozes,
bater de utensílios, um amontoado de caixotes, crianças
correndo, músculos suados, cachorros sarnentos, bêbados
arriados em beira de calçada. Era um lampejo afiado
de facões, cascas escorregadias pelo chão, rastro
de mexerica em sopro de brisa, soberbas barrigas de avental
manchado, pregão, falatório, gritos que entravam
por um ouvido e saíam pelo outro, papagaio, pato, galinha,
pipilos canários, pintinhos, boteco animado em pagode
improvisado – de tudo pra se comprar.
No ano de 1994, quando o mercado pegou fogo – eu vi
de longe – foi um susto em Vitória. Coração
apertado, como se um incêncio pudesse devorar, não
apenas os barracos, mas toda uma história; a história
de todas as vidas que habitaram e se cruzaram nesse intestino
da cidade onde circulam donas de casa, criadas, vendedores,
mequetrefes, prostitutas, carregadores, vexatórios
cães em assalto a uma esquálida cadelinha...
e como se não bastasse, apanhadores de papel com seus
atulhados carrinhos que têm a peculiaridade de estar
sempre atravancando caminho.
O incêncio, numa casa de fogos de artifício –
show pirotécnico não planejado – fez-me
lembrar um dos divertimentos de minha infância que era
ir ao mercado pela mão de tio Gô para comprar
bombinhas, estrelinhas (delicados chuvisquinhos de ouro),
pimentinha e trac-trac. Por alguns dias entretinha-me a dar
sustos nos adultos com as pimentinhas que espoucavam a seus
pés e trazia dedos e unhas gastos e cheirando a pólvora,
de tanto raspar trac-trac no degrau da escadinha de trás.
A lembrança me trouxe a certeza de que mesmo que o
fogo devorasse o mercado inteiro, nada seria capaz de destruir
sua história a viver no saudosismo de cada um. (...)
Ontem resolvi rever o mercado. Ih! Há quanto tempo
eu não ia por lá?! Não foi bom. O grande
prédio já não existe mais. E o mar? Cadê
o mar? Empurraram pra bem longe. Já não o abraça
com ternuras de mãe. Todo o mercado encolheu –
mirradinho... Reconheci quase nada. Pouca coisa ainda resta
nas poucas vielas estreitas e sombrias, de paralelepípedos
tortos e irregulares: as cestas... a tenda do candomblé...
cadê as bruxinhas? Não as havia. Não pude
abraçá-las com ternura de mãe.
Já vinha embora decepcionada – quem mandou ir
lá? O incêncio do progresso é o veradeiro
destruidor das coisas singelas (ou fui eu que me distanciei
da inocência?), as elucubrações só
atrapalham; antes eu tivesse ficado só no saudosismo.
Mas, quase ao despedir-me (para sempre), deparei com uma tenda
onde um curioso anúncio, escrito em irregular letra
de mão numa longa tira de papel, chamou-me a atenção.
À quem interessar possa, aqui vai, reproduzindo tintim
por ipisis líteris. Pode ser de grande serventia:
“AQUI TEM-
- Cêbo de carneiro
- Poaia
- Castanha mineira
_Vinho casal dos velhos
- Bandarra
- Figa de Guiné
Também tem
REMÉDIO PAPÔTÊNCIA
- Canela sassafrás
- Catuaba
- Marapuama
- Nó de cachorra
- Trepa moleque
- Esquadra de Quati
- Pau de resposta
- Levanta cadáver.”
O homem garantiu que funciona.
É; o progresso está engolindo, espremendo, encurralando
o mercado, mas um secreto encanto permanece latente: nas crendices,
nas garrafadas milagrosas, nas receitas infalíveis
de medicina popular misturadas em doses certas com o curandeirismo
mágico. Nas tranças das cestas onde ainda brincam
os ágeis dedos artesãos, nos exóticos
odores das ervas, dos legumes, das frutas que ainda trazem
a palpitação da terra generosa.
Fonte:
Escritos de Vitória (11 – Mercados e Feiras)
- 1995.
Autora: Marilena Soneghet, nascida em Vila Velha, escritora
e pedagoga
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