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A Herança dos Movimentos Negros Urbanos e o Capital Político e Cultural Transmitido pelo Professor Cleber

A herança dos Movimentos Negros Urbanos

Na primeira metade do século XX surgiram no meio urbano as primeiras organizações de movimentos negros, constituídas por setores da pequena classe média negra, denunciando as situações de expulsão dos descendentes de africanos da terra e sua exclusão dos meios formais de geração de emprego. Uma das primeiras dessas organizações foi a Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em 1931. Conforme se verifica em Moura (1989), a fundação da FNB se inspirou em um conjunto de jornais editado sobretudo na cidade de São Paulo que ficou conhecido como a “imprensa negra”, que teve início em 1915. Essa “imprensa” influenciou de maneira significativa a formação de uma identidade étnica negra. A mesma “imprensa” pautou-se pelas denúncias contra o racismo e serviu de “veículo organizacional dos negros” (MOURA, idem: 70-71).

A FNB reivindicava os direitos ao respeito e ao espaço para o negro na sociedade, na política, na carreira militar, na educação e no mercado de trabalho. Tratava-se de uma luta política, que desejava ver o descendente de africano reconhecido como cidadão brasileiro. Em 1936, a FNB chegou a ser registrada como partido político, mas, depois de deflagrado o golpe de Estado de Getúlio Vargas, em 1937, e da implantação da ditadura do Estado Novo, todos os partidos, entre eles a FNB, foram dissolvidos (MOURA, idem: 72-73).

Em 1944, a partir da ideia de ”quilombismo“ de Abdias do Nascimento deu-se a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), enquanto um projeto de organização das expressões artísticas e de luta contra o racismo no Brasil. O projeto “quilombismo” do TEN pretendia levar os descendentes de africanos ao poder político (democrático) no Brasil (NASCIMENTO, 1980:272). O mesmo projeto, posteriormente, foi a base para eleger Abdias como deputado federal (1983 a 1987) e senador da República no Brasil (1997 a 1999, quando assumiu a vaga após a morte do antropólogo e senador Darcy Ribeiro).

No final da década de 1970, o movimento político dos descendentes de africanos no Brasil ressurge com o nome de Movimento Negro Unificado (MNU), novamente como movimento de denúncia e de luta contra o racismo. O Quilombo de Palmares e seu líder político, Zumbi, são considerados pelos criadores do MNU símbolos das lutas políticas que o movimento se propõe a travar. O Quilombo de Palmares era entendido pelo MNU como uma república e “uma autêntica democracia racial”. Segundo um documento do MNU citado em Nascimento (1980), a tentativa de constituir uma sociedade democrática sempre estivera presente nos quilombos.

Neste contexto, o professor Cleber Maciel se tornou um agente de transmissão cultural e política, estimulando a consciência de cidadania de vários alunos da Ufes, principalmente os negros, como veremos nas entrevistas que realizei com alguns deles.

Eu comecei a me tornar cidadão a partir da consciência sobre a questão racial, e não o contrário. As conversas com o professor Cleber Maciel, que tinha paciência de ouvir e conversar com a gente como pessoa e professor universitário, favoreceram o surgimento dessa consciência de cidadania. E isso ajudou a me posicionar e ter um discurso para ampliar o horizonte da minha cidadania. Na verdade, eu não me sentia um cidadão. A consciência da minha cidadania veio junto com a consciência étnico-racial. Eu não estudei com o Cleber, porque eu era da área UM, que era a área de Engenharia e Matemática, mas fui convidado no Restaurante Universitário a ouvi-lo fora da universidade. Na década de 1970 era muito difícil e raro ser negro na universidade. Estar junto ali, um grupo de negros da universidade e se posicionando como negro era uma coisa nova. Na verdade, para chegar na universidade, a gente tinha passado por um processo de perda cultural em relação ao ser negro e de branqueamento. Como o convívio diário em um espaço estranho ao ser negro, que era o espaço da universidade, ocorria um certo afastamento de nossa cultura. Por isso, estar junto era uma forma de afirmar a nossa negritude (Heraldo Gonçalves Fogos. Vila Velha, 28/04/2012).

Essa parte do texto é resultado de conversas e reflexões desenvolvidas em diálogos com lideranças atuais de diferentes organizações de movimentos negros urbanos, sobretudo com aquelas que conheceram e conviveram com o professor Cleber da Silva Maciel no final da década de 1970 e no decorrer dos anos 80. Este texto é um produto de memórias relatadas por lideranças atuais, muitas das quais, quando conheceram Cleber, eram estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo e estabeleceram seus primeiros contatos com as ideias do professor sobre a questão da negritude. Essas lideranças foram inspiradas por tais ideias a assumirem sua identidade negra e a entrarem na luta pela igualdade racial e pelo acesso aos direitos civis para os segmentos sociais afro-brasileiros. Essa foi uma época que em Vitória, em sintonia com o que vinha ocorrendo em outros estados brasileiros, principalmente em São Paulo, estava surgindo o Movimento Negro Unificado (MNU).

Os contatos dessas lideranças entre si e com o professor ocorriam no Restaurante Universitário no centro de Vitória, local onde posteriormente surgiu a Casa da Cultura, que se tornou um lugar de reuniões e instalações-sedes de algumas organizações culturais e de movimentos negros, como Associação Gamga Zumba, Centro de Estudos da Cultura Negra (Cecun), Associação dos Artistas, grupos de teatros etc.

Após os primeiros contatos, os encontros ocorriam nas casas de simpatizantes e militantes da causa da negritude. Essas casas se tornaram lugares e territórios demarcados culturalmente por esse segmento étnico negro, locais para onde os militantes se dirigiam com suas vestes coloridas, seus eketés (ou filás) na cabeça e as mulheres com seus penteados que demarcavam o pertencimento à negritude. Essas casas de encontro eram locais de afirmação da identidade negra, pois ali ouviam e cantavam músicas consideradas negras, preparavam pratos típicos das culinárias africanas e afro-brasileiras para as festas que traziam outras pessoas para ”a causa da negritude“ e realizavam leituras coletivas de textos sobre as histórias, lutas e culturas dos países e personalidades africanas e afro-brasileiras. Os textos de leituras coletivas, que faziam parte de uma prática compartilhada pelos militantes do MNU, eram emprestados aos alunos pelo professor ou preparados por ele em mimeógrafos. Esses textos remetiam àslutas de líderes negros, como Amílcar Cabral (7), Agostinho Neto (8) e Samora Machel (9).

Os locais de encontro de Cleber Maciel e seus alunos eram as casas do próprio professor; das irmãs Márcia, Vilma e Vandira Nascimento, e de Miriam Cardoso e Adilson Vilaça (no Morro do Quadro em Vitória). Esse casal, então militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), fundou no Morro do Quadro o núcleo negro de mobilização e reflexão Eliziário. O núcleo recebeu esse nome para manter viva a memória de Eliziário, devido ao fato de o mesmo ter sido um dos líderes revolucionários da Insurreição de Queimado, ocorrida no então município de Vitória e atual município da Serra, em 1849 (10).

Além de dar início a um processo de reconstrução da memória negra por meio da nomeação dos lugares de encontro, esses militantes também retomaram um movimento de recuperação e recriação de nomes próprios para seus filhos, atribuindo aos recém-nascidos nomes de lideranças negras do passado e do presente. Foi nesse movimento de renomeação que, desde então, passou a ser uma prática compartilhada entre as lideranças das organizações de movimentos negros, desde o MNU, a atribuição de nomes de personalidades políticas negras aos seus filhos. Desse modo, Miriam Cardoso e Adilson Vilaça atribuíram ao seu filho o nome de Amílcar, em homenagem à memória do Amílcar Cabral. O mesmo nome foi atribuído ao filho dos militantes negros da Associação Cultural Gamga Zumba Alcebíades Cabral e Luciana. Nesse movimento, militantes negros ligados ao universo religioso dos Agentes de Pastoral Negros (APNs) passaram a realizar cerimônias de casamento e de batismo em um estilo denominado ”afro“, como foi o caso do casamento de Edson e Márcia, com documentário filmado e editado pelo professor Cleber Maciel. O mesmo casal teve um filho e uma filha: o menino recebeu o nome de Edson Mandela, herdando o primeiro nome do pai e o segundo em homenagem ao líder negro sul-africano. A menina recebeu um nome que revela bem a hibridização das identidades dos APNs, Noemy Dandara, um nome bíblico do universo hebraico cristão, e, outro, Dandara, que era o nome da mais expressiva liderança feminina do Quilombo de Palmares. Outras lideranças seguiram o mesmo movimento de atribuição de nomes africanos e afro-brasileiros aos seus filhos, como Ayscha, Amady, Khalfan, Dandara, Makeda e Luanda.

Fora da Ufes aconteciam vários outros encontros. (...). Conheci naquele momento, um processo de tomada de consciência. Nós, negros, percebemos que sozinhos não éramos nada dentro da universidade. As nossas discussões eram sobre o tipo de mobilização que deveríamos ter para conquistar o nosso espaço: deveríamos migrar pelos bairros populares ou conquistar os espaços no meio acadêmico? (...) O grupo de Miriam Cardoso e Adilson Vilaça, por ter um viés mais do PCdoB, fazia toda questão de se afirmar nas lutas populares e tendeu para elas. Naquele momento, não se falava da sociedade negra brasileira, porque os livros de Sociologia eram traduções norte-americanas. Em síntese, quando paro para lembrar, vejo que éramos um grupo para a construção da identidade negra, pois vivíamos num processo de descaracterização, e os encontros a partir da Ufes foram um momento de resgate de subjetividades e tivemos comportamentos diferenciados. Após a tomada de consciência, comecei a trabalhar com um padre de visão progressista que trabalhava com mulheres. Para irem às reuniões, as mulheres eram privadas pelos seus maridos. Nisso, conheci três irmãs de caridade que trabalhavam com a mobilização das mulheres, e o MNU continuou com a perspectiva da construção da identidade negra. Eu enveredei para essa via católica sem ter nada de afinidade. Fui parar em Santana, Conceição da Barra, ficando lá do final de 1979 até 1984, 1985, trabalhando o lugar que os jovens ocupavam naquela sociedade. Nós éramos formadores de opinião e continuávamos exercendo esse papel, discutindo as questões raciais. Cléber implantava isso, o espaço de intervenção dele era a universidade, onde dava a contribuição dele. Chegávamos sem a consciência da questão social e racial e ela foi despertada por Cléber. Ele despertava a consciência para que ela passasse por estágios de desenvolvimento, tornando-se uma consciência mais consciente das questões sociais e raciais (Sônia da Penha, Vitória-ES, 03/05/2012).

Para essas lideranças, estar juntos era uma forma de afirmar suas identidades negras, falando sobre si e estimulando os que ainda não estavam na universidade a entrarem nela.

Do ponto de vista das mulheres, Cleber era um homem muito bonito e elegante, que exercia um fascínio sobre suas alunas. Quando o víamos passar, ficávamos olhando e ele percebia isso. Com isso, ele marcava a pessoa para se aproximar. Era um homem muito bonito, e naquela universidade não havia muitos homens bonitos. A beleza e o charme dele funcionavam como um atrativo para as mulheres, para o debate sobre a negritude. Ele tinha paciência no jogo de conquista de adeptos e era bem menos fleumático na causa, comparado aos outros militantes que eram mais agressivos. Cleber tinha um comportamento bem estável e equilibrado. A gente era a cara do movimento negro. Todos se reuniam, se juntavam e andávamos juntos. Era impactante para o restante das pessoas da universidade. Éramos tímidos pela diferença social e racial. Cleber adotava a estratégia da acolhida, mapeando o universo dos diferentes cursos e convidando a gente para as reuniões. Eu mesma não era do curso de História, onde ele lecionava, mas do Serviço Social. Ele disponibilizava materiais mimeografados, porque as referências bibliográficas eram bem limitadas. Ele fazia isso no sentido de estar informando e formando os alunos. Até o momento em que Cleber entrou na Ufes, ali tinha poucos professores qualificados como ele. Ele e outros professores chegaram com novas ideias, que criticavam aquela estrutura funcionalista, implantaram novas literaturas e bibliografias não oficiais, em um momento de ditadura militar. Até aquele momento, os professores privilegiavam o mundo e as pessoas de fora. Cleber faz o sentido contrário, saiu da Unicamp e veio para a Ufes. A produção teórica dos integrantes do movimento negro não tinha aceitação na Ufes e ele quebrou essa resistência. (...) Ele tinha suporte teórico e psicológico para enfrentar a resistência (Sônia da Penha, Vitória-ES, 03/05/2012).

(7) Amílcar Cabral foi um dos mais carismáticos líderes africanos cuja ação não se limitou ao plano político, mas desempenhou um importante papel cultural tanto em Cabo Verde, quanto na Guiné-Bissau. Natural da Guiné-Bissau, Amílcar fundou em 1956 o Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), que lutou pela autodeterminação daqueles dois territórios. Ainda em 1956, Cabral, ao lado de Agostinho Neto, fundou o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA). Em 1973, Amílcar Cabral, que assumira em 1962 a liderança do PAIGC, é assassinado na Guiné-Conacri.

(8) Nasceu em 1922 e faleceu em 1979. Foi médico angolano, formado em Lisboa, bem como intelectual e ativista político e cultural em prol da libertação de Angola, sendo um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos e Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), que tinha finalidades culturais e políticas orientadas para a afirmação da nacionalidade africana. Foi várias vezes preso político, motivado por sua luta em favor de Angola.

(9) Nasceu em 1933 e, posteriormente, tornou-se líder do movimento de libertação de Moçambique por meio da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), organização ligada à política socialista da União Soviética. Em 1975, tornou-se presidente de Moçambique e 11 anos depois morreu em um acidente aéreo na fronteira de Moçambique com a África do Sul.

(10) Para maiores detalhes sobre a Insurreição de Queimado, ver Maciel (1994).

 

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Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Osvaldo Martins de Oliveira – 2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2022

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