A Lanterna do Itabira – Por Maria Stella de Novaes
Encerrava algo de misterioso aquele sítio distante, junto ao Itabira, em Cachoeiro do Itapemirim, porque invariavelmente, às dezenove horas, um fogo, — dizia-se, andava pequeno trecho e estacionava em determinado ponto. Tratava-se de uma penha imensa, que se perdia no abismo, à sombra de vistosa e delicada fronde, que parecia mirtácea anosa, testemunha, em silêncio, deste romance, ou mistério de tragédia.
Em conseqüência do acesso, o lugar era solitário. Para chegar ao Itabira, teria o viajor de percorrer a Serra do Maquiné e subir o Monte Olivete, em mulas ou burros adestrados. Mas, situado fronteiro à Cidade, a emoldurar a curva do Itapemirim, permitia a algum morador apreciar o movimento urbano.
Decorria o tempo.
A lanterna enigmática percorria sempre o mesmo itinerário. Notavam apenas os que a seguiam, de longe, a lentidão graduada, na marcha cotidiana. As vezes, parava. Atingia, porém, sempre, o mesmo lugar.
— Era a alma do Itabira, — diziam as mucamas supersticiosas.
— Qual, sinhá, — explicava o Jacob, velho entendido, — é algum espírito que está penando. Virou boitatá.
— Não é Saci-Pererê, — considerou, certa vez, a Catarina, vendedora de mandioca-puba. Saci anda pulando, num pé só, e vive debaixo da gameleira, na várzea; não gosta de morro pelado e pontas de pedra, onde caem raios. Sô Jacó tem razão, é alma penada ou jiquitiranabóia enfeitiçada. Cruz, Credo! (Benzeu-se).
Correu a notícia de que se extinguira o fogo assombrado.
Uma zeladora de Irmandade, ao regressar da Novena de Santo Antônio, afirmara à vizinha que vira o facho apagar-se, antes de chegar ao ponto de origem. Foi o bastante, para que fervilhassem comentários e se reavivasse a lenda sobre a alma penada. Mas, ardendo em curiosidade, alguém resolveu excursionar pela Serra do Maquiné, e atingir o sítio misterioso. Partiu, na madrugada seguinte, e rompeu escarpas abruptas, ladeiras e caldeirões, até que se viu obrigado a renunciar à sela e prosseguir a pé, na ascensão perigosa.
Tudo era solidão, naquela parte belíssima da Terra Capixaba! Ouviam-se apenas o gorjear dos pássaros e os estalos dos ramos, quebrados pelos animais, na retirada célere.
- Que iria encontrar? Feitiço? Caveiras? Talvez algum tesouro acumulado. E, assim, pensamentos tétricos surgiam-lhe à mente, trabalhada, agora, pela imponência do meio lendário.
Subiu, subiu..., até que laranjeiras enxertadas e cacaueiros alinhados denunciavam o trabalho e o zelo de algum habitante, naquele ermo cercado de blocos de granito. Mais uma rampa... e o Itabira se lhe apresentou colossal, a dominar a magnificência do conjunto de rochas. Parou. Sentou-se numa pedra. Retirou a palha e o fumo. Torceu um cigarro e saboreou-lhe a essência, enquanto contemplava as espirais, que atirava para o alto.
Restauradas as forças e acalmada a imaginação, examinou a espingarda, para certificar-se do seu funcionamento. Sim. Tudo ia bem e não havia motivos de receio. Mais uma rampa e divisou um plano extenso, até o gigante, — o Itabira. Lá, estava um rancho coberto de caixilhos, ou tabuinhas. Uma passiflora crescida, parede-acima, prendia--se, ao enroscar das gavinhas, nos interstícios do telhado, e dava à rústica vivenda aspecto de caramanchel natural. Roseiras entrelaçadas, craveiros, margaridas, açucenas, flocos e outras plantas floridas transformavam o recanto, em belíssimo jardim, ao passo que as cercanias ostentavam craveiros-da-índia e árvores frutíferas. A porta estava fechada.
Em ligeira pesquisa, o visitante encontrou, detrás do casebre, um espaço ocupado pelos cortiços: — "Abelhas e flores".
Pequena horta bem tratada e, numa rocha isolada, um pombal, completavam aquela miniatura do Paraíso. Mas..., o proprietário? Onde estaria?, — cismou o intruso. Lembrou-se então da trajetória seguida pelo fogo do Itabira e resolveu procurar esse caminho. Acompanhou algumas pegadas, na grama alternada de pedregulhos, até aproximar-se da árvore recurvada sobre o abismo. Parou. Sentiu arrepios... Pareciam-lhe rígidas as pernas. Deu mais alguns passos. Mas, para aumentar-lhe a justificada ansiedade, pelo fim da aventura, percebeu o ganir doloroso de um cão. Isso lhe compensava, entretanto, o terror da solidão; animava-o a prosseguir, na aventura. Aproximou-se da árvore e divisou o animal, em guarda, junto a um velho desfalecido. Na ânsia instintiva da dedicação, apoiava as patas dianteiras, no braço esquerdo, e farejava-lhe a fronte, como se procurasse transmitir-lhe um hálito conservador da vida! Ao pressentir a presença de alguém, ergueu a cabeça e olhou o desconhecido, como se lhe inquirisse as intenções. Levantou uma pata. (Sinal para a espingarda?) Foi deposta a arma, na grama. E, mais uma vez, manifestou-se o instinto, naquele amigo leal: — veio mansamente ao estranho; segurou-lhe a calça; puxou-o, até junto ao seu dono, que ainda respirava.
— "Vivo, — disse o outro. Graças a Deus!"
Tomou-lhe o pulso. Procurou água. Junto às colméias, encontrou uma grota. Numa folha de arácea, trouxe o líquido, que derramou na fronte ardente do ancião, cujos olhos, amortecidos pela fraqueza, descerram-se lentamente.
— "Vamos, amigo, aqui estou, para tratá-lo".
— "A... mi... go?" — balbuciou o asceta, enquanto indicava uma chave presa ao cinto. Terminou: — "Sul-tão!"
Logo, o animal estendeu o focinho, segurou a chave e dirigiu-se à porta do rancho, onde a depôs.
— "Tudo enigma!" meditou o investigador. Partiu uma laranja. Destilado nos lábios entreabertos do solitário, o caldo reanimou-o e deu-lhe forças para indicar, no outro lado do cinto, uma bolsa de prata, modelo "Coração", com a gravura de um monograma indecifrável e, no verso, o nome Lenie.
— "Abre-o, amigo!"
Um retrato de mulher, delicadíssima pintura, num disco de madrepérola, revelava o talento artístico do seu autor. Dir-se-ia perfeita gravura. Completava a relíquia uma tira de papel, com uma frase, em tinta vermelha, apagada pelo tempo.
— "Amigo", prosseguiu o velho, mais confortado, pela ingestão do alimento. (Arrastou-se para o tronco da mirtácea, onde se recostou). Recebe a história de uma vida, antes que o anjo da morte me liberte para a mansão da perene ventura". (Indicou um canudo de taquaruçu, preso à pitangueira).
O outro retirou do escrínio umas folhas de papel, escritas com tinta de urutu. Leu: — "Era jovem. Gozava a inutilidade de uma existência fútil. Pintava as paisagens cerúleas dos lagos da Itália e das montanhas nevadas e belas da França. Procurava debalde modelos para fixar a expressão da figura humana, segundo o meu ideal. Faltava-lhes uma revelação da Alma, no semblante, seu espelho imaculado. Mas, certa manhã, quando o Sol, fraco ainda, reanimava uma encosta dos Alpes, divisei, ao longe, um vulto de mulher, a perturbar, com o seu movimento, o esboço de um quadro. Parecia aflita. Imaginei que se teria tresmalhado alguma ovelha do seu rebanho. Fui-lhe ao encontro, e cooperei na captura da fugitiva.
— "Não o esperava, neste desterro, disse-me polida-mente. — Como poderia manifestar-lhe minha gratidão?"
— "Só uma coisa desejo, — respondi-lhe. — Entre estas montanhas geladas, ensine-me a descobrir a Vida"...
Enleada, naturalmente confusa, ante o pedido original, absurdo talvez, a pastorinha meditou..., sorriu ingenuamente, retirou do seio este relicário e, numa expressão de candura indefinível, abriu-o, deixou-o cair em minhas mãos, ao passo que, enlevado e estático, eu desdobrava o contido e lia: Vive pelo coração, o turíbulo do Amor, fogo divino, deslumbrante, que nos ilumina o caminho da Vida!
"Descemos a montanha. Casamo-nos."
"Vendemos algumas telas e encetamos viagem ao Brasil, porque desejávamos animar os meus quadros, com a luz intensa dos trópicos e o colorido cinéreo das montanhas, ao crepúsculo, ou esmeraldino, ao raiar do dia. Na viagem, ao contemplar Lenie, tracei-lhe automàticamente o perfil. Ainda a bordo, procurei revelar, na irisação do nácar, a expressão deliciosamente sincera do meu único ídolo. No Rio de Janeiro, pintei os recantos da Guanabara, cheios de poesia, e os encantados sítios da Tijuca. Numa vitrina qualquer, atraiu-nos um postal — ITABIRA — "Lindo, disse-me Lenie, — aponta-nos o Infinito!"
"Viemos para a Terra Capixaba. Quando a imponência do pico se refletia nas águas mansas do Itapemirim, eu pintava o crepúsculo. E fixava as cores da aurora, quando ele se despia das brumas e surgia, radioso, a penetrar no azul imenso do espaço...
"Atraídos pelo conjunto destas belezas naturais, andamos, subimos e armamos nossa tenda, resolvidos a viver, aqui, o nosso idílio perene". (O amigo interrompeu a leitura, enxugou a fronte do ancião e deu-lhe mais um gole de caldo de laranja. No fundo róseo da tarde, o aceno longínquo das palmeiras indicava a despedida do tempo.) "Lenie sentava-se à sombra desta pitangueira, enquanto eu pintava o cenário da Cidade. Gostava de sentir o contato das florinhas, que se despetalavam e cobriam-na de um manto perfumoso e tênue. Certa manhã, porém, na colheita de frutos, perdeu o equilíbrio e rolou, no abismo!... Louco de dor, bati picadas, desbravei caminhos, errei em volta, gritei, clamei, até que, exausto, aturdido, cheguei à borda de um fosso profundo. Assaltou-me a atração do abismo. Levei a mão à jaqueta, para desvencilhar-me desse obstáculo... Toquei ia bolsinha... Senti um frêmito indecifrável, ao contato com o escrínio do nosso amor. Seria verdade? Delírio? — Sentei-me no tapete de folhas mortas, pisadas, como todas as fibras do meu ser! ... Procurei reerguer-me. Faltaram-me forças... Pela manhã, despertei, ao sentir o amparo de alguém. Era um preto lenhador, compadecido, que me julgava talvez um réprobo, foragido da Justiça. Ante minha aflição de prosseguir nas pesquisas, disse-me, como supremo conforto: — "Reze, patrão, Deus a terá na Glória!" Abri desmesuradamente os olhos... Realidade? Revelação? Desvario? Voltei a cabeça, num esforço irrefletido, derradeiro e distingui apenas o extremo do pico fabuloso. Parecia animar-se, romper o azul do firmamento. — Lindo! — murmurei. Mostra-nos o Infinito!
Passou, desde então, o lenhador a constituir minha única ligação com o mundo. Nunca lhe perguntei o nome. De tempos em tempos, aparecia e trazia-me o indispensável ao sustento, em troca de verduras e frutos do meu sítio. Cumpria ordens expressas de não revelar minha existência, nem trazer visitas ao meu desterro.
(As trevas envolviam a Cidade. Brilhavam as primeiras luzes e o murmúrio dolente do rio acentuava-se na quietude da Natureza).
O intruso dobrou o papel, enquanto o solitário volveu o olhar para o rancho oculto na escuridão das pedras e disse-lhe: - "Eis o mistério, amigo. Jamais poderia desprender-me deste retiro mágico. À tarde, quando se perdiam nestas brenhas as vibrações plangentes do Ângelus, eu me dirigia tumba imaginária de Lenie. Permanecia com a relíquia na mão, imerso na oração da saudade! Pela manhã, na festa aurora, recolhia flores que, ali, atirava, como se ofertasse ao meu ídolo, a carícia do meu afeto! — Abandonei o pincel e quebrei a palheta; não descri, porém, da beleza da Vida. Ela tem harmonias e viravoltas! ... Cumpre-nos admirá-la, como um painel onde a Providência traçou a vereda, que devemos trilhar, iluminada pelo Fogo do Amor. Quanto a mim, cumpri o meu fadário: — Viver pelo Coração e difundir, no silêncio austero desta montanha, a suavidade singular e única de uma Lenda de Amor".
O tempo que passa, na sua faina destruidora, arrasou o sítio e apagou a lembrança do Fogo do Itabira. Hoje, somente alguns antigos se recordem talvez desta lenda romanceada, que recolhemos, em nossa infância, nos relatos de um Pai-Velho e uma Didi carinhosa. A majestade da pedra, entretanto, continua a penetrar no azul do espaço, inspiração de artistas, irradiação de beleza!... A despertar, nas almas, a idéia sublime e deliciosa do INFINITO!
Fonte: Lendas Capixabas, 1968
Autora: Maria Stella de Novaes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2015
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