Barra do Rio Doce - Por Rubem Braga (1949)
O homem de binóculo focalizava a bandeirinha que se agitava lá em terra lá em terra, no pontal sul, perto do farol. O próprio comandante estava na roda do leme; e o chefe de máquinas, oficial da Marinha de Guerra aposentado depois de fazer duas guerras, estava no telégrafo das máquinas.
- Que é que a bandeirinha diz?
- Bombordo! Toda a força a bombordo!
O timoneiro obedece – e olhamos em silêncio para a proa. A corrente está fortíssima, e a maré inda está baixa. Em nossa frente o Rio Doce despeja toda sua massa de água cor de lama, de um quilômetro de largura, em um estreito canal. Temos de passá-lo.
- Bombordo!
A proa hesita um instante – e depois, lenta, implacavelmente, vai-se voltando para boreste. Os mil cavalos de nossos dois motores se esbofam à toa.
- Para trás!
- ...
- Marca assim!
Avançamos outra vez, penosamente. “A proa é esta!” Pode ser algum espadarte que deseje ir desovar na lagoa de Juparanã; quando a nós vamos em cima de um banco de areia. Bonito. Ouvimos aquele ruído triste do casco na areia. As ondas assanhadas pelo nordeste ensaiam abordagem perto da proa. O chefe das máquinas está em silêncio mascando seu toco de charuto. O caboclo que é considerado prático na barra adota esta atitude não muito eficiente, mas em todo caso justificável no momento: coça a cabeça. A bandeirinha, lá longe, manda recados muito salutares, mas inócuos, como um sargento que berrasse ordens para um recruta paralítico.
Leio trechos seletos de ilustres e antigos viajantes. O senhor príncipe de Wied Neuwied, em 1815: “A foz...nunca é navegável; as grandes embarcações não podem entrar por causa dos baixios e dos bancos de areia...” Saint-Hilaire, em 1818: “O canal muda muitas vezes de lugar.” Charles Frederick Hartt, 1866: “A barra... é tão má que chega praticamente a impedir a entrada de navios...as ondas se quebram furiosamente... É sempre difícil a algumas vezes durante semanas consecutivas é impossível entrar no Rio Doce...e muitos navios se têm perdido ao tentarem-no.” César Augusto Marques, em 1878: “A sua embocadura...é perigosa.”
Tudo isso está num livro que o Sr. Norbertino Bahiense nos conta o naufrágio do cruzador Imperial Marinheiro por aqui em 1887. Um livro muito bem documentado, de que falarei outro dia; mas no momento ficamos sabendo que...”entre os destroços do naufrágio, onde as vítimas ainda se apegavam, e a terra defronte, estavam as ondas cada vez mais encapeladas, e sobre o dorso das quais, de quando em vez apontavam as antenas periscópicas e ameaçadoras dos tubarões.”
Não me agrada muito essa imagem de “antenas periscópicas”, pois na época ainda não havia submarinos, que de resto não possuem antenas periscópicas, e os tubarões também não deviam ser tão aperfeiçoados em 1887. Mas me agrada muito menos o quadro em si.
Uma das máquinas a toda força para a frente; outra a toda força para trás. O L.C.T. adaptado consegue afinal safar-se. Mas depois de três tentativas resolve fundear atrás do pontal – e só no dia seguinte conseguirá entrar na barra, mas não avançará pelo rio mais de trezentos metros. Vamos, um grupo, na baleeira, para terra. É a antiga Barra do Rio Doce, depois Regência Augusta, em homenagem à Princesa Isabel; hoje apenas Regência, sem o adjetivo, que a República tirou. Tudo isso quer dizer umas quarentas casas e um rio que ameaça comê-las – mas é assunto para outra crônica,naturalmente.
Fevereiro,1949
Fonte: Crônicas do Espírito Santo, 1984 - 1ª Edição
Autor: Rubem Braga
Nota: Livro doado a Casa da Memória de Vila Velha por Jonas Reis, abril/1985
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2012
Nota: Tiragem de 5.000 exemplares , 3.000 se destinam a distribuição gratuita, pela Secretaria da Educação e Cultura do Estado do Espírito Santo
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