A campina do ouro - Por Maria Stella de Novaes
O Oficial de Milícias Inácio Pereira Duarte Carneiro não havia ainda rasgado a estrada para a Capitania de Minas Gerais, — a famosa Estrada do Rubim, depois, São Pedro de Alcântara. Aventuravam-se apenas os colonizadores a algumas entradas, para a descoberta de minas auríferas e pedras preciosas. Dirigiam-se, porém, quase todas, para o Castelo e o Rio Doce.
Findava o Século XVIII.
Fugido para os lados de Taquari, um escravo chamado André chegou ao sertão, posteriormente denominado Santo Agostinho, certo de alcançar um dos numerosos quilombos, que se multiplicavam, até o Timbuí. Andou... Andou... Exausto, adormeceu, recostado a uma grande laje. Despertou, à guarda atenta de um velho índio, que parecia estranhar-lhe a cor e a figura, diversas de um branco. Não trazia arma de fogo, para atacar sua tribo.
— Seria um habitante da selva, talvez, "parente do macaco"?
Possuía apenas um espelho, que lhe causou admiração. Sorriram simultaneamente. Eram de paz. Confrades no sofrimento: — um, perseguido, no próprio domínio; outro, escravizado, à vontade dos prepotentes, que o arrancaram da sua terra distante! Sim, a dor, na fraternidade das almas, incutia-lhes instintiva revelação de suas vidas, independente da expansão verbal. Justifica-se por que se entenderam, pelo simples olhar. Passaram, depois, à mímica.
Ardiloso, com a prestidigitação do espelho, André conquistou, logo, a simpatia do aimoré. Colheu notícia de que sua tribo vivia num lugar bonito, cercado de matas, e onde existia uma "poeira cor do Sol", distribuída aos jovens, pelo morubixaba, a fim de que a espargissem nos cabelos de suas noivas, na festa nupcial. Retirava-se, — explicou-lhe, desde os seus avós, de um lugar onde a tribo erguera sua taba, — uma grande campina.
Tal notícia interessou ao escravo, perito bateador, nas minas do Caieté, antes que um comboieiro o vendesse, numa descida para o Espírito Santo. Por isso, sempre jeitoso, concordou em ficar e acompanhar o novo amigo, até o reduto silvícola, sob o juramento de ali permanecer.
Eram magníficas as matas, que margeavam o rio Santa Maria da Vitória, e não menos soberbas as de Santo Agostinho, que foram varadas pelo escravo, de olhos vendados, até a entrada num verdadeiro Éden: — extensa planície, na moldura esmeraldina e bela da floresta virgem, densa e opulenta. Haviam, ali, os índios, erguido suas ocas, em volta de um fosso coberto de rede marchetada de pedrarias e pepitas. Brilhava, quando refletia o luar; reluzia, aos esplendores do Sol. Apresentado ao murubixaba, foi o escravo devidamente iniciado, nos hábitos da tribo. Gostou, a princípio, da vida, na selva; aprendeu a moquear a caça; pescar, à mão; defender-se do guarapu e das serpentes. Assim, passou muitas luas. Aspirava sempre conhecer o segredo da Campina. Já preparava as setas e manejava o arco. Finalmente, conseguiu o seu objetivo: — "Rio de Tupã, entrado na Terra", explicou-lhe o pajé. E contou-lhe, então que, certo dia, o fogo do Céu (o raio), caído na mata, incendiou-a. Abriu-lhe extensa clareira, que os índios limparam e, com o decorrer do tempo, cobriu-se de vegetação rasteira. Uma rocha pontiaguda foi o lugar atingido pela centelha. Fendeu-se estrondosamente, em vários fragmentos, cujo interior brilhava, como "poeira do Sol". Removeram os blocos e encontraram, na base, um fosso que "tragava a chuva". Escavaram-lhe as bordas e retiraram bolinhas brilhantes (pepitas). Moeram-nas e conseguiram a poeira linda, para os cabelos das noivas. Resolveram, por isso, cobrir o lugar, de modo que não fosse "profanado" pelos animais. E concluiu, incisivo: — "Qualquer da tribo, que revelar ao homem branco a existência do lugar, será torturado e morto; entregue ao fogo do Céu, sobre um penedo, em lugar ermo... Bem distante!
A Campina era o seu paraíso!
Estarrecido, André ouviu a tremenda ameaça. E, após invernos, em conta já perdida, aprendeu a orientar-se pelo Sol, e planejou safar-se daquele segundo cativeiro. Saturado estava da monotonia de uma vida quase inativa, constante alimentação de caça, frutos silvestres, raízes e mel. Ensinou às mulheres a plantar e moer o milho; fazer angu, para o desjejum matinal. Repugnavam-lhe, porém, a carne, o peixe e outros alimentos completamente insossos.
Emagrecia.
Fome!...
Compreendeu, finalmente, a realidade: — melhor, de certo, o estômago nutrido que a liberdade, sem sal e sem o café quentinho, de manhã. Além disso, crescia a vigilância dos índios, quanto às suas mulheres. Percebia o escravo que, mesmo entre os silvícolas, existia o preconceito contra a raça infeliz. Jamais, portanto, conseguiria uma esposa e o carinho de um filho, nas horas intérminas da solidão. Aconteceu, nesse ínterim, que a primogênita do morubixaba adoecesse, presa de "tremedeira", na linguagem do tempo. Folhas medicinais foram aquecidas e aplicadas na sua testa; chás, sangria, com a ponta de sumaré; coberta de areia quente e outros recursos da medicina indígena, tudo estava falhando.
André observou que se lhe apresentava a suspirada oportunidade, para agir. Lembrou ao pajé que, na Vila, se encontrava uma casca milagrosa, para debelar a "tremedeira". Poderia buscá-la, com a palavra de honra e o juramento a Tupã. Mandasse escoltá-lo, até a pedra, onde fora encontrado, porque ignorava o caminho e temia encontrar outros índios e animais bravios. Cumpria às sentinelas aguardá-lo, na mata, às ocultas dos brancos.
À visão de perder a filha estremecida, transido de dor, o morubixaba acatou a lembrança do negro. Despachou-o, com dois flecheiros devidamente equipados. Assim, precedido pelos guias, André foi mupicando, às ocultas, com o seu canivete. Teria, portanto, o roteiro da Campina do Ouro, e talvez a liberdade.
Na Vila, relatou sua odisséia. Imediatamente, circulou o boato que o promoveu a herói de uma aventura, fato que o libertou dos açoites, ferros e outros castigos reservados aos negros fugidos.
Sua demora, porém, inquietara os índios, que resolveram castigá-lo, enquanto os flecheiros se quedavam desconfiados, perante indícios de incursão de colonizadores, entre o sertão de Santo Agostinho e o Vale do Santa Maria da Vitória. Isso porque Duarte Carneiro, instruído pelo Governador Francisco Alberto Rubim, realizara os estudos preliminares da futura estrada.
Não resistiu a doente à força da febre. Sucumbiu, antes que o negro voltasse, com o remédio, — a casca de quina moída, usada pelos escravos, contra as terçãs e quartãs. Então, à ordem do morubixaba, reuniu-se a comunidade, para os funerais e...o devido castigo ao homem-macaco. Envolta em rede polvilhada de ouro; coberta de flores agrestes e penas finíssimas e belas, foi a jovem sepultada, com todos os seus pertences, na base da montanha, que ocultava a Campina do Ouro, da trilha observada pelos guardas de André, — o traçado da estrada, que seria decantada pelos brancos e detestada pelos índios. Um ranchinho assinalava a campa. E, diàriamente, durante muitas luas, a tribo ali depositava alimentos, certamente, saboreados à noite, pelos animais.
E André?
Mal se aproximara da pedra, caiu, varado de flechas. Arrastado à penedia fatídica, antes de expirar, viu, ao longe a Campina do Ouro, cujo roteiro, levianamente, divulgara, na Vila da Vitória, para safar-se dos Capitães-do-Mato. Lá, foi entregue ao raio, — o fogo do Céu, para os índios.
Jamais, entretanto, a Campina do Ouro pôde ser explorada, pelos colonizadores, porque providenciaram, logo, os aimorés a cobertura e o disfarce do "Rio de Tupã entrado na Terra". Transportaram saibros e barro, que ali depositaram. Com o tempo, desenvolveram-se algumas árvores, no lugar, e um vigoroso ipê coroou de flores doiradas o ponto privilegiado, pela existência da "poeira do Sol".
NOTA: Em "A Província do Espírito Santo", diz Basílio Daemon que, a 19 de agosto de 1812, chegou à Capitania do Espírito Santo uma divisão de Tropa de Linha, mandada pelo Conde de Palmas, instruída em seguir para o Oeste. Descobriu, entre soberbas matas, uma grande planície, que os antigos denominavam Campina do Ouro, segundo tradições existentes. Regressou, com amostras de ouro e pedras preciosas. Dessa Campina do Ouro consta ter havido um antigo roteiro, que descrevia o lugar, no sopé de uma montanha aurífera, na mata que separava a Estrada de São Pedro de Alcântara da de Santa Teresa.
Com a colonização e o descaso pelas tradições, desapareceram o roteiro e a Campina. Resta-nos a lenda, que nos transporta à beleza e à poesia do Passado.
Fonte: Lendas Capixabas, 1968
Autora: Maria Stella de Novaes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2017
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