A loja e a agência – Por Jair Corrêa
A loteria ficava ao lado do Mussi Chimelli. Não era ali na Praça João Pinheiro, para onde eu a mudei depois. Era próximo onde, depois, foi instalado o Banco Mineiro. Era ao lado da casa do Mussi Chimelli. Depois foi construído o prédio do Jairo — edifício Justo de Assis — e eu mudei a agência para lá. Fui o primeiro inquilino dele. Aluguei, então, aquela loja. A agência já se chamava "Leão da Sorte".
Aí o Jaime Barros tinha uma casa de negócios também no edifício do Jairo e quis vendê-la. Ele tinha uma lojinha ali. E, então, eu fiz negócio com ele. Eu e outro rapaz resolvemos comprar aquilo do Jaime. Era eu e o Acácio, que foi o meu sócio. Então o Jaime deu um balanço na loja e nós compramos a loja com pagamento parcelado. Ficamos com o estoque dele. A loja do Jaime tinha umas prateleiras pequenas e fui eu que mandei, depois, fazer aquelas prateleiras todas, os balcões com vitrines. Eu mantive o mesmo ramo de negócio que o Jaime tinha lá: armarinho, aquelas coisas. Depois é que eu ampliei colocando à venda outros artigos.
Mas eu não gostei da sociedade com o Acácio, não. Passados uns dois ou três meses eu estava achando que ele estava meio esquisito e, então, eu propus a ele: "Olha Acácio, vamos fazer um negócio: ou eu ou você fica com a loja. Se você ficar você me indeniza; se eu ficar eu lhe pago". "Então você fica", disse ele. Aí eu apanhei a parte dele, paguei e fiquei com a loja sozinho. Foi aí que eu mandei modificar, fazer as prateleiras e todas as outras coisas.
Nesse ínterim, o Alcino vai para Aimorés. Ele tinha, mais ou menos, uns 11 ou 12 anos. A Chiquinha conversou comigo e eu disse: "Pode mandar o Alcino para cá, ele vem morar comigo". Então ele passou a morar comigo e a trabalhar na agência. Isso era, mais ou menos, em 1941. O Jairzinho nasceu em 1944, mais ou menos uns quatro anos depois. Talvez um pouco antes. Eu acho que o Alcino chegou lá um pouco antes. Mais ou menos em 1941. Depois que o Alcino casou é que eu fiz a sociedade com ele e ele passou a ser meu sócio. Até então ele ficava na agência e eu na loja, e nós nos revezávamos.
Aí nasceram os filhos. Ana Maria, Jairzinho, Maria José, José Carlos, Maria do Carmo. A Ana Maria foi estudar em Belo Horizonte, no Sacré-Coeur. E a Diná foi morar lá em casa. Ela conheceu o Fábio morando lá em casa. Na primeira agência que abriu do Banco do Brasil em Aimorés, o Fábio foi para lá. E quando o Fábio conheceu a Diná, ela estava morando lá em casa. Aí ela ficou noiva dele e eles casaram lá em casa. E ele morou em Aimorés até ser transferido para Paranaguá. E moraram lá em casa, também, a Maria de Lourdes, a Mariquinha, a Áurea.
Em Aimorés eu me meti na política, aquela política brava de lá. Fui vereador quatro vezes seguidas, fui vice-prefeito. No meio daquele inferno, aquele "pega pra capar" que não tinha fim, nem tinha jeito. Eram os comícios, e Álvaro Sales, e as ameaças de morte, de espancamento, de perseguição e a gente ali no meio do fogo.
Lá na loja mesmo, uma vez, esteve um bandidinho do Álvaro Sales que atirou na vitrine. O Alcino estava lá na hora. Foi um tal de Alípio. O Álvaro Sales mandou o Alípio lá para me matar. Eu estava na agência. Era meio-dia, mais ou menos. Eu estava na agência quando escutei uns tiros lá na avenida. "O que será isso?", pensei. Aí botei o revólver na cintura e encontrei o Alcino que vinha de lá. Ele já tinha quebrado a esquina e disse: "Titio, titio, o Alípio quer matar o senhor". E eu disse: "Então está na hora, vamos lá". E o Alcino: "Ele deu uns tiros lá na loja". Eu respondi: "Não tem importância não, vamos lá ver".
Eu ainda vi o sujeito lá na frente e eu gritei: "Ei, Alípio, vem cá me matar". Mas ele caiu fora. E eles não tomaram providência nenhuma.
De tarde eu estava na loja e o Florisvaldo apareceu lá. "Jair, vá para casa", ele disse. "Eu não vou para casa coisa nenhuma. E não me amola não. E você também sai da minha frente. Eu vou é ficar aqui", respondi. Mais tarde, o delegado foi lá. "Ei, "seu" Jair. O que é que houve aqui?". E eu respondi: "Nada, não". "Não houve nada?", ele perguntou. E eu: "Não, não". "Mas me falaram aí que atiraram dentro da sua loja...", comentou. "Não, não",me limitei a dizer.
Então ele começou a me encher muito e eu disse: "Capitão, você está se fazendo de besta, de bobo? Você sabe que foi o capanga de vocês mesmo que veio aqui atirar, não sabe?" "O senhor não pode falar isso com uma autoridade", ele disse. "Eu não posso falar assim com uma autoridade? Mas não há autoridade aqui em Aimorés... A autoridade aqui é essa" e mostrei o revólver. E ele: "O senhor não pode me afrontar com um revólver". E eu respondi: "Eu não estou afrontando não, eu estou é me defendendo de vocês".
Aí o Américo, que era deputado estadual, estava lá e interferiu na conversa e disse para o delegado: "Dê um jeito nisso que isso não pode ficar assim".
E quando chegou mais tarde, eu estava lá na loja, lá pelas sete horas, o delegado chegou para mim e disse: "Olha, já prendemos o Alípio". E eu disse: "Não fez mais que sua obrigação. Eu pago imposto é para manter polícia que existe para manter a ordem. Vocês aqui só mantêm desordem." E ele: "Agora só falta o senhor ir lá para dar a parte". "Tá certo, pode deixar que eu vou dar a parte". respondi.
No outro dia, de manhã, mandei preparar a parte. Falei com o Dr. Aníbal e ele preparou a parte e quando eu cheguei na delegacia estavam o delegado e o Alípio sentados numa mesa, conversando. O nome do delegado era coronel Alcebíades. "O, Alcebíades, olha aqui a parte. Você disse que era para dar parte desse sujeito e ela está aqui". "Mas isso é verdade?", ele perguntou. "Alcebíades, a verdade escrita aí e está assinada por mim. Eu não costumo ser mentiroso vocês que são "acobertadores de bandidos", respondi. E apontando para o Alípio eu disse: "Esse aqui não vale nada, não. Só tem costas quentes".
Então correu o processo e o Alípio foi condenado a dois anos.
Mas na véspera da condenação ele fugiu. Fugiu. Talvez fosse carcereiro. Fugiu. Foi embora. Foi lá para Juiz de Fora.
Eu tinha até um amigo meu, um pistoleiro, que me disse que "Jair, eu vou liquidar com o Alípio". "Não, não precisa não, respondeu "Vamos sim, vamos liquidar com ele", ele insistiu. "Não, não precisa não", eu disse. Esse rapaz chegou a seguir o Alípio até Juiz de Fora. Mas eu encerrei a conversa: "Não faça isso não. Se alguém tivesse que fazer alguma coisa com ele, seria eu". Aí acabou o inquérito. Mas luta continuou.
Florisvaldo, nessa época, era candidato a deputado. O Américo Martins da Costa já era deputado. Ele foi deputado e presidente da Assembléia. O Américo não era de Aimorés, mas formou-se médico e ficou em Aimorés. Foi prefeito no tempo em que Benedito Valadares era governador. Nessa época dos tiros do Alípio, o prefeito era o Polastri da serraria. O Polastri esteve lá na loja, também. O Polastri era do nosso partido, mas o Governo do Estado, que nomeava o delegado, era do PSD. Era no tempo do Juscelino. Juscelino era o governador e o Álvaro Sales era deputado. Era um inferno. Mas muitos deles já foram e eu estou aqui.
O Álvaro Sales já morreu. O Florisvaldo não, esteve aqui há pouco tempo, mas não anda bem de saúde. Ele se aposentou como oficial de Justiça. O Florisvaldo se elegeu deputado duas vezes. E acabou ficando em Belo Horizonte. Agora ele está morando no Triângulo Mineiro. Ele foi deputado duas vezes e depois perdeu.
O Américo Martins da Costa morreu uns três anos depois de ser deputado. Ele não morreu novo, não. Ele já casou com muita idade. Ele casou com a filha do Amaro Pereira já com mais de quarenta e tantos anos.
* * *
As compras para a loja eu fazia no Rio e São Paulo. Eu ia sempre fazer compras, umas quatros vezes por ano, às vezes mais. Comprava também dos viajantes que passavam por Aimorés.
Apresentação do Livro “Os Caminhos por onde andei” – Por José Carlos Correa
Foi durante as conversas que sempre tenho com meu pai que nasceu a idéia desta entrevista. Sempre gostei de fazê-lo recordar as passagens da sua infância e da sua juventude. É que percebi que essas recordações são por ele guardadas com muito carinho. Com admirável riqueza de detalhes ele descrevia os fatos, as datas, os cenários, os diálogos. E quando repetia alguma história meses depois, o fazia com notável precisão, com depoimentos rigorosamente iguais. Esse detalhe mostrava, com clareza, que suas recordações eram verdadeiras, rigorosas, fiéis, sem exageros ou omissões tão comuns nas conversas coloquiais.
Inicialmente planejei apenas gravar suas histórias. Queria guardar uma fita com aqueles casos mais conhecidos da vida de meu pai, que eu já tinha ouvido algumas vezes mas tinha sempre receio de esquecer algum dia. Ali estaria a sua voz, o seu jeito característico de falar, as suas memórias mais importantes, suas lutas, seus ideais. Seria, para mim, uma lembrança preciosa a guardar junto com os meus álbuns de fotografias.
Tudo combinado, passamos uma tarde inteira de um domingo de junho de 1988 a conversar diante do gravador ligado. E a medida em que ele falava, mais me convencia que estava diante de um documento importante. Porque enquanto a fita rodava, papai narrava com desenvoltura toda a sua vida, fluentemente, sem pausas, sem vacilações, sem o menor cansaço. E o que seria uma conversa despretensiosa, passou a ser uma entrevista comovente. Papai abriu seu coração, mostrou-se de corpo inteiro como realmente ele é: um homem de coragem, que viveu intensamente a sua época, que construiu uma vida de trabalho que é um exemplo e um orgulho para todos os que puderam compartilhar dos seus dias.
Quando ele colocou um ponto final na gravação, a noite já descia sobre Vila Velha. E ao acender a luz do seu quarto, onde conversamos, eu já sabia que tinha feito a entrevista mais importante da minha vida.
Foi então que decidi passar tudo o que havia sido gravado para o papel. Quem sabe, reescrever as histórias, rearrumá-las dentro de uma seqüência de mais fácil leitura e passar um exemplar para cada filho. E por que não também para os netos? Para as pessoas mais chegadas?
E comecei a transcrever o material. E quanto mais transcrevia mais percebia que a seqüência estava correta. Papai se mostrava um perfeito e competente contador de histórias. Até algumas idas e vindas, a citação de um fato mais recente antes de um mais antigo, um comentário perdido adiante referindo-se a caso já contado, até todas essas coisas tomavam a leitura mais agradável. E resolvi transcrever a sua fala até o fim.
O resultado é o que aqui está. Não foi preciso reescrever coisa alguma. Não foi preciso rearrumar nada. Bastou ouvir e passar para o papel.
A comemoração dos 80 anos de papai me dá a ocasião perfeita para fazer essa homenagem. Uma homenagem que, certamente é dirigida mais a nós, filhos e netos, do que a ele. Porque, em verdade, é ele quem nos dá esse presente no dia do seu aniversário. O presente de deixar, para cada um de nós, um pouco de sua vida, das suas lembranças, da sua emoção. O presente de podermos sentí-lo bem pertinho. Para sempre.
José Carlos Corrêa
Fonte: Os caminhos por onde andei, Capítulo IV A loja e a agência - 1989
Autor: Jair Corrêa
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2018
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