Africanidade e pureza
Nos Barracões de Candomblé, a presença africana é percebida em quase todos os detalhes e aspectos. Desde o uso de palavras e, às vezes, o uso da língua de forma coloquial. Nesse caso, o lorubá é a língua mais falada.
Muitos Ogãs e Babalorixás reivindicam para suas respectivas nações a característica de ter o Candomblé mais puro, isto é, de maior conteúdo africano e menores influências de práticas religiosas católicas e espíritas.
Entretanto, levando-se em conta evidências visuais, os Barracões de nações que parecem ter as menores influências não africanas são, primeiro, o Keto, Ilê Tory Ashé Oshalufam, do Babalorixá Alá Jhe By, e, em segundo, o Barracão de Rogério de Iansã, Ilê Vodum Oya Messam Omim, de Nação Angola.
Contraditoriamente à “pureza” reivindicada pelos Barracões de Candomblé, quase todos Zeladores, isto é, Pais e Mães de Santo, com raríssimas exceções, apontam com orgulho sua passagem pela Umbanda.
Nesse sentido, para exemplificar, destacam-se os depoimentos de diversos Zeladores de Santo que informam: “muita gente diz que Angola é uma Umbanda melhorada...” ou “tenho muito orgulho do meu começo na Umbanda quando, ainda criança, recebi minha primeira incorporação com um Caboclo, Seu Sete Flechas”. Ou ainda: “até hoje continuo trabalhando com meu Pai Senhor Oxósse, Caboclo de Umbanda, anterior à minha feitura no Candomblé”. Outro diz que era católico e depois de um sofrimento, passou a frequentar Centros Espíritas Umbandistas, o que perdurou por 13 anos. Posteriormente a isso tudo é que foi para o Candomblé. Dofono de Omulu diz que tem 22 anos de Candomblé, mas esteve na Umbanda desde que nasceu. “Aqui era Umbanda, hoje é Nação de Candomblé”(69).
Isso significa que muitas pessoas foram umbandistas antes de irem para o Candomblé. É claro que há pessoas que nem conhecem a Umbanda ou que nunca tiveram nenhuma relação com ela. Em geral, essas são as pessoas mais novas de Santo.
Muitos Zeladores de Santo do Candomblé, inclusive, têm os seus Congas de Umbanda e afirmam sua fé nos Caboclos e/ou nas Pombas-Giras, os dois mais populares, mas não os únicos. Alguns Zeladores de Santo chegam mesmo a fazer giras de Umbanda em seus Barracões.
Assim, pode-se afirmar que a pureza africana não existe. Há, sim, uma tentativa de, nos Candomblés, buscar uma africanidade perdida. Isso é manifestado pela vontade, explicitada por muitos praticantes, de visitar a África, aprender línguas africanas, voltar a usar frutos, folhas e raízes somente de plantas africanas, resgatar, enfim, o conhecimento da África e, assim, dar mais “fundamento” e mais segurança aos “trabalhos”.
O Candomblé, tal como outros fenômenos sociais, sofre modificações. As diversas nações interferiram e interferem umas nas outras e já não se pode dizer que elas se diferenciam e têm especificidades que as caracterizem de forma inconfundível. Na realidade, uma nação copia as práticas de outras. “Os assentamentos no ferro ou no Otá, pedra, acabaram sendo muito parecidos, O Otá não é símbolo, é o próprio Orixá assim como Ori, cabeça, para uns de certas nações. Para outras nações tudo é representação...” Essa é a forma como um praticante tenta demonstrar a tendência à uniformização dos cultos das diversas nações(70).
Atualmente já não existem muitas diferenças entre os cultos das nações. A maior diferença está na linguagem e cores dos Orixás. Mesmo os diversos troncos do Angola que tinham a especificidade do uso da “Bandeira de Tempo”, perderam essa característica exclusiva, pois atualmente algumas nações “não angolanas” usam-na, inclusive até mesmo alguns Terreiros de Umbanda. Assim, Tumba Juçara, Muchicongo, Mussurumim etc são nações Angola. Mas o que as diferenciam? Parece que maior diferença são as características que as igualam... O toque dos atabaques com as mãos é característica Angola e o toque com banquetas, isto é, aguidavi, é Keto. As toadas, isto é, as músicas ou pontos, ou melhor, as zuelas ou xirês ou corinkã Orixá, cantados no Angola, são mais em português. As cores de Angola são mais firmes.
As pinturas (bolas, pontos, riscos) dos “iaôs”, isto é, iniciantes, também são/eram bem diferentes entre as nações, da mesma forma que também eram/são diferentes pelas plantas e pelas folhas usadas. Finalizando, destaca-se que a Nação Angola incorporou quase tudo das demais nações. O que significa que Angola realmente faz o sincretismo das diversas nações(71).
As nações estão ficando distantes das tradições porque têm que acompanhar a modernidade e já não há condições de serem feitas todas as coisas como deveriam. Por exemplo, uma comida que deveria ser feita em fogão de lenha, é cozida em fogão a gás. O uso de chão de terra é substituído pelo cimento ou pelo asfalto. Muitas plantas sagradas já não existem mais. Dessa forma, muitos rituais foram simplificados ou reduzidos(72).
Uma diferença entre Angola e Keto ainda bem evidente nos dias atuais é o toque ritualístico dos atabaques. Antigamente, uma nação podia ser reconhecida apenas pelo toque dos atabaques, mas atualmente isso é mais difícil, já que as nações fazem os toques característicos de todas.
Também algumas modificações introduzidas pelas novas gerações têm sido fatores de eliminação das diferenças entre as nações e de afastamento das tradições. Entretanto, algumas diferenças entre as nações podem ser ainda percebidas nos ritmos, danças, feituras e línguas faladas.
Outro detalhe importante que exemplifica as semelhanças entre as diversas nações é o fato de que, com o tempo, muitos Orixás de uma nação foram sendo adotados por outras nações. Por exemplo, o Orixá Tempo era inicialmente só dos Angolas, porém acabou sendo adotado por outras nações. No Keto, ele corresponde ao Orixá Irôco e no Efom, a Azauane. Como havia princípios semelhantes, acabaram sincretizados em um que dominou(73).
Muitas partes da tradição da Nação Jeje foram perdidas e, por causa disso, é comum ver-se ali grande influência Keto.
Finalizando, conclui-se que, por um lado, embora muitas tradições estejam preservadas nos Candomblés, as diferenças entre as diversas nações tendem a desaparecer, porque uma nação vai incorporando as tradições da outra. Mesmo assim, algumas são mantidas. Por outro lado, a modernidade imposta às novas e velhas gerações pela sociedade de consumo também funciona como fator de desaparecimento de muitas dessas tradições e eliminação de características específicas.
NOTAS
(69) Alá Jhe By em entrevista dada ao Projeto Práticas Culturais Afro... Documento em vídeo... fita 7. Em entrevista dada ao jornal Iluaché. Janeiro de 1988, p. 7, e em entrevista dada ao projeto Práticas Culturais Afro... Documento em vídeo... fita 13. Rogério de Iansã, Babalorixá da Nação Angola, em entrevista dada ao Projeto Práticas Culturais Afro... Documento em vídeo... fita 5. Além de vários outros Babalorixás, em entrevista dada ao Projeto Práticas Culturais... fitas 21 e 22
(70) Gelson de Xangô Airá. Depoimento durante o Seminário... Documento em vídeo... fita 22.
(71) José Vicente. Entrevista dada ao Projeto Práticas Culturais Afro... Documento em vídeo... fita 9.
(72) Fragmentos de falas de diversos Babalorixás durante debate entre os representantes de diversas Nações no Seminário... Documento em vídeo... fita 22.
(73) Ialorixá Iadolamim, não podendo comparecer, encaminhou uma carta à Organização do “Seminário: Candomblé e Umbanda no Espírito Santo” respondendo a uma série de questões que lhe foram formuladas. Esta carta constitui-se em valioso documento fonte de informação para se compreender a história do Candomblé capixaba.
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Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Osvaldo Martins de Oliveira. –2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016
Compilação: Walter de Aguiar Filho, junho/2021
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